Ana

Ana acendeu um cigarro e se endireitou na cama. Tragou em silêncio, contemplando o teto apenas parcialmente iluminado pela luz que entrava pela janela vinda da rua. Sua ansiedade era tanta que quase não saboreou o fumo. Aquilo servia apenas para aquietar seus pensamentos e trazer-lhe um pouco de serenidade. No escuro, tateou pela cama até achar o violão.

Roçou os dedos levemente pelas cordas, sem tirar nenhum som, apenas como acariciasse o sensualmente instrumento. Um verso escapou de sua boca, e ela quase que naturalmente se lembrou dos acordes correspondentes. Foi tocando baixinho, uma música que dizia, entre outras tantas coisas, um pouco do que sentia.

e entre suas maiores angústias, ser mulher era o seu maior prazer, ser mulher de ninguém, ser mulher de si mesma, e ocasionalmente ser mulher de alguém. Intensamente, sempre, mas com pouca duração. A posse ameaçava o seu conceito de felicidade. Posse era foda. Negativamente falando.

Ana conseguia ser feliz, sim. Mas não aquela felicidade emburrecedora, de quem vê o lado positivo de tudo e vive sorrindo. Ana guardava seus sorrisos para os melhores momentos e as melhores pessoas.

O sexo? O sexo de Ana vivia aflorado. Se tocava, era tocada,

se permitia, apenas, uma seletividade quase perfeccionista, quando se tratava de entrega.

A poucos tinha se entregado. A poucos se entregava.

O amor? O amor de Ana era fácil, vivo, desvairado.

Ana amava a si, e a tudo que era particular. Amava sua casa, sua quebrada, seu bairro, sua cidade. O horizonte de Ana não ia muito além dos parques onde crescera. E via e revia, todo santo dia, as bocas e os corpos que beijara, os rostos, as ruas, as calçadas,

e pra Ana... quase todo dia... era dia de poesia.

Mas não era o caso do momento. O sabor do cigarro ficou em sua boca, como um marco da sua esterilidade criativa. Restava a música para atravessar as madrugadas. Era a música que lhe distraia dos pensamentos que não queria ter. Das lembranças de tempos passados,

de braços e abraços que não podia ter consigo.

Largou o violão e deixou-o de lado.

Resolveu se entregar.

Lágrimas desceram pelos olhos e se acumularam em sua face.

Derrotada em sua resistência Ana foi vendo o sono se aproximar e a dor pareceu cada vez menor.

Amanhã, tudo ia estar no lugar... de novo em paz..

Rômulo Maciel de Moraes Filho
Enviado por Rômulo Maciel de Moraes Filho em 09/02/2017
Código do texto: T5907093
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