Capítulo 1 – Erupção

O gatilho do revolver dançava entre os dedos de uma mão, enquanto na outra sustentava um cigarro quase no fim que ocasionalmente levava a boca. A pólvora ainda estava no ar, agora se misturando com a fumaça do cigarro. No chão, quase morto um homem suplicava perdão. Ali, naquele quarto imundo de hotel ele beijava o chão e a recitava seus últimos pedidos de salvação divina ao mesmo instante em que uma poça de sangue cresce embaixo de sua cabeça. Ele não tem nem mesmo trinta segundos e sua vida se esvai rapidamente em um último suspiro.

Lá fora fazia um calor desumano e o mundo parecia em erupção. De certa forma estava. Transeuntes sem expressão se aglomeravam nas calçadas a passos arrastados em direção alguma, trajados com suas melhores gravatas e vestidos enumeravam em vozes roucas e embargadas suas melhores qualificações profissionais, como em uma entrevista de emprego fantasma diziam a si mesmos e a pessoa alguma porque deveriam ser contratados. Nos olhares apagados e vazios sobressaltava uma veia de desespero mudo que era sufocado quando as lágrimas não vinham e a própria confusão se apossava sem avisar. Olheiras cada vez maiores completavam o visual assustador. Nesta hora do dia as mentes brilhantes e ambulantes começavam a entrar em deliberada combustão e tão logo chegaria à fúria iminente, presente em suas raízes mais primitivas e era neste exato momento que virava a esquina daquela rua um desfile de carros grandes, pretos e luxuosos do Governo, prontos para acalmar os ânimos. De vidros fechados e blindados, nunca se soube quem eram os homens comandantes e responsáveis pela diária fumaça de gases que mantinham bem adestrados humanos em colapso nervoso. Era dos escapamentos, projetados para serem maiores que de costume, que o “gás da felicidade”, como era conhecido, chegava ao oxigênio cinza respirado todo tempo. Uma vez misturado a contínua respiração acelerada dos trabalhadores, era imediatamente desarmado qualquer perigo de guerra entre as máquinas humanas sempre prontas ao trabalho que transitavam de volta para casa. O gás da felicidade foi totalmente desenvolvido para entorpecer confortavelmente e desligar circuitos do sistema nervoso dos cérebros que poderiam lutar para se libertarem e reagirem contra o sistema.

Enquanto apaga o que restou do cigarro na mesa, o assassino do quarto de hotel resolve, enfim, escrever suas memórias antes do próximo ato que planeja. A mão trêmula o engana por vezes ao começar até se render e formar a primeira frase. Tenta, por vezes, segurar os olhos abertos, mas pesados, marejados e doloridos seus olhos se recusam a ajudar assim como sua mão; os fecha em busca de concentração e descanso e tenta lembrar como era, quem era e o que ansiava antes de tudo lá fora começar, no instante seguinte volta a abrir os olhos e mais calmo risca a primeira frase que dizia como a rotina o corroía duramente. Recomeçou:

A quem interessar: Meu nome é Eduardo Peixoto Oliveira, tenho hoje 27 anos e sou um dos sobreviventes da Era Já. Não resta muito de nós ainda conscientes dos fatos ou vivo. No momento estou só na minha caminhada, mas já estive a companhia de muitos e se em algum momento o mundo voltar a despertar e alguém chegar a ler isso, saiba que fiz o meu melhor na pior das situações. Quero contar a alguém do futuro, alguém que se salve quem fui e o que sou agora.

Comecei muito cedo em uma empresa de advocacia assim que terminei a faculdade e sonhava alto em abrir uma empresa só minha e “fazer fortuna” como dizia meu pai – que foi um grande advogado - não medi esforços e trabalhei dia e noite em busca de reconhecimento e nesta linha de pensamento não cheguei realmente a aproveitar o fim da juventude. Fui honesto em tudo até o dia em que percebi que essa não era uma das qualidades buscadas do meu tipo de emprego, foi então que percebi que era motivo de chacota dos colegas nos momentos de lazer. Não era realmente necessário acreditar veemente na inocência do acusado que defendia para ir ao tribunal, você apenas defendia e pronto. Afrouxei os ombros quando percebi que não era bem justiça que estava em jogo e passei a me voltar para hobbies de outrora e uma namorada que sempre tive desde a escola. Chamava-se Barbara e era perdidamente ingênua em suas afirmações sobre como eu deveria levar minha vida de advogado assim como fui tantas vezes durantes tantos anos. Gostaria de fazê-la minha esposa tão logo fosse promovido, mas o sonho se arrastou por longos dois anos e nunca realmente aconteceu, embora tenha tido um aumento considerável à medida que me tornava mestre na arte do cinismo e colecionava amigos para futuros favores.

De repente passei da defensoria de criminosos excêntricos para casos de família entediantes, aparentemente algum filho da chefia daquela espelunca de empresa não gostava do fato de minha crescente lista de casos resolvidos a favor estar sendo notada tão rápido. Não me importei realmente, passei a gostar de abraçar esposas ricas e perfeitas atrizes que pretendiam apenas conseguir dinheiro fácil de maridos velhos e burros o suficiente para casarem com alguém trinta ou quarenta anos mais novo. Elas realmente queriam convencer o advogado e quem mais aparecesse que o divórcio era necessário por uma suspeita sem precedentes de traição ou por acreditarem “não ser mais amadas” como antes. Era divertido observar as mentiras monstruosas e poses de ofendida que faziam na minha sala, mais divertido ainda era saber que elas sempre acabavam ganhando um acordo de confidencialidade sobre os problemas do matrimonio juntamente com uma gorda pensão, imóveis, carros e ações para ficarem caladas por toda vida, apenas porque o advogado do velho marido temia que por serem sempre grandes figuras da mídia ou dos negócios, uma manchete poderia explodir a qualquer momento e manchar a sombra do marido charlatão. Era um trabalho fácil, cômico e vantajoso que estava sempre ao meu favor e eu não esperava mudar para outro setor tão cedo.

Passei a morar com Barbara tão logo percebi que ela exigiria casamento, no entanto, me fazia de bom rapaz ao dizê-la entre um rosto ensaiado que não ganhava o suficiente para a festa de casamento que fazia jus a ela, então só morávamos juntos e desenhávamos o sonho do altar à distância. Ela me abraçava, dizia que entendia quando a olhava daquela forma e prendia o longo cabelo vermelho em coque para depois me chamar para ajuda-la com o zíper do vestido e comparecer enfim na cama naquelas noites chuvosas.

Em dezembro daquele ano as coisas começaram a mudar drasticamente e sem volta para o fundo de que nunca mais sairia. Era um dia nublado, como era normal naquela cidade, acordei assustado ao perceber que perdera a hora, preparei um café para nós dois correndo contra o tempo enquanto dizia aos berros para Barbara que passava das 8 da manhã. Liguei a TV esperando ainda ouvir no jornal matinal qual rua não estava interditada dessa vez por um acidente qualquer como de costume e um intervalo ridículo acabava para então aparecer uma âncora do jornal com seu rosto de sono anunciando entre um sorriso falso e um arquear da cabeça mais uma descoberta incrível da ciência e tecnologia; que por sua vez agora tinham dado as mãos e soprado aos ventos que o conhecimento agora poderia ser adquirido de outra forma, agora, porém, simples e eficaz. Impaciente e atrasado desliguei a TV antes de ouvir a noticia completa que soava desinteressante e completa baboseira naquela hora da manhã. No carro bocejando tentei me lembrar do que parecia estar esquecendo e apenas me veio à mente o caso absurdo que tinha para resolver no tribunal naquela manhã.

Passou-se um mês desde aquela chamada no jornal até que eu realmente precisasse pesquisar sobre aquele assunto. Entrou em meu escritório uma tarde sem fazer qualquer barulho, um cara alto com trajes finos que dizia mais a seu respeito que qualquer outra coisa que ele poderia me dizer. Apresentei meus valores de honorários e gastos variados e até a possibilidade de não chegar a um acordo e levar o caso ao tribunal, assim como o tempo que poderia levar o processo, meus métodos de trabalho, trabalhos anteriores finalizados com sucesso, minha reputação na empresa e por último uma breve analise de meu perfil que é apresentado a cada cliente, tudo o levou a me contratar em instantes. Após avaliar o contrato de confidencialidade e deveres do contratante e do contratado, iniciei a entender melhor quem era aquele cara porque vinha a me procurar, chamava-se Marcos Paulo Cardoso e pela fala totalmente persuasiva faria a mais incrédula das pessoas pular de uma ponte sem questionar, obviamente o tipo de cara que não se deve confiar. Ele me disse quase embrutecido, que tinha conhecimento da traição de sua esposa e queria um divórcio silencioso em que não deixasse absolutamente nada a esposa. Matar e torturá-la loucamente eram seus desejos árduos que me confidenciou sem demonstrar qualquer variação de humor, como se pedisse um copo d’ água, mas perigosamente assustador ele tentou justificar que jamais seria capaz de tal ato e que não poderia chegar a tal ponto desde que era alguém com “um nome a zelar”. Sorri para ele, como aprendera e executara tantas outras vezes e apresentei formas de persuasão para um acordo amigável com sua esposa, assim como disse em uma mesma frase que precisava saber o quanto estava em jogo; ele deveria nomear suas posses, bens conseguidos em conjunto, ações, imóveis e tudo o mais de valor.

Foi então que Marcos Paulo de, até então, 37 anos se apresentou formalmente como neurocientista do Instituto de Tecnologia EJA, chefe de pesquisas e também diretor-presidente desta enorme e bilionária empresa que, até então, eu desconhecia completamente. Ele afirmou com um maquiavélico sorriso que era dono da “descoberta do milênio” e com uma surpreendente paciência, me explicou seus planos, suas motivações e sua idealização utópica de que a sociedade poderia enfim, com sua descoberta se igualar e a desigualdade social seria um conto velho recitado aos netos depois dele. Intrigado e um pouco cansado daquela conversa louca, questionei entre dentes qual seria a tal descoberta e se ajeitando na cadeira, ele exclamou um pouco alto demais:

- Neuro307 – Segundo sua pasta de registros suas pesquisas tinham se iniciado anos atrás com o pai de Marcos; havia uma grande matriz em algum lugar do pacifico e suas filiais incluíam grande parte da Europa, Barbados, América do Norte e Sul, Ásia, Oceania e chegava timidamente na África, embora eu nunca ter ouvido falar, francamente. Era como estar sentado em frente a um dos homens mais poderosos do mundo em uma sala imunda e sem ar condicionado de uma empresa de advocacia que seria engolida pelos próximos anos e neste quadro não havia nenhuma peça que se encaixava coerentemente. Por que aquele homem enorme no mundo dos negócios teria procurado uma empresa de quinta como aquela em que eu trabalhava? A explicação razoável em que Marcos me deu foi que precisava manter tal história longe de seus conhecidos advogados particulares e que suspeitava que um deles estivesse levando informações a sua esposa. Sendo assim, caminhando pelo bairro decidira após alguma pesquisa procurar uma empresa pouco conhecida, mas que segundo ele dizia para minha descrente reação, a Wilson e Associados estava se destacando pela região como recorde de divórcios felizes. Incrédulo que tal fama pudesse estar se espalhando mudei o assunto para agendar uma próxima reunião em que ele já estivesse discutido com a esposa que a daria apenas uma boa casa na praia e uma vida regada ao silêncio se quisesse ainda ter uma boa poupança.

Ao sair Marcos acenou e fechou a porta em silêncio da mesma forma que entrou. Estático e ainda sem acreditar muito no que aquela figura quase fantasma de branco me dissera, corri os dedos ao teclado de meu computador, digitando rapidamente. Lá estavam listadas suas caraterísticas pessoais, a vida social de Marcos, suas extravagancias, suas esposas, seu dinheiro em caridade, suas fotos, seu rosto pálido, seu site, suas atrozes atitudes ao colegial e sua mais recente e chocante entrevista que indicava uma mente brilhante e com ousada criatividade, “Neuro307” estava em todas as manchetes e sua frase estampada em letras grandes: “a fórmula do conhecimento prático”, embora para um leitor superficial soasse como alguma fórmula maluca de um cientista igualmente maluco, aquela “invenção” não era nada que pudesse ser ingerido pela manhã.

Enfim no site de seu instituto passei a navegar durantes três horas seguidas, horrorizado e mergulhado em saber exatamente o que estava sendo discutido. Na aba de apresentação seu site erguia seu dono em um altar até explicar em poucas palavras que Neuro307 era o nome comercial de Interface Llothus Expander, um microscópio chip biocompatível de oito milímetros revestido de seda que promete não irritar ou gerar cicatrizes no tecido cerebral, pois pode ser dissolvido em biomoléculas inofensivas ao longo do tempo, - criado a partir 307 testes em laboratório, o que obviamente originou seu nome comercial – com pequenos sensores era capaz de provocar estímulos humanos nos músculos do cérebro responsáveis pelo arquivamento do aprendizado adquirido ao longo de anos, seu software capacitado para conhecimentos específicos faria gozar o usuário da mais rica e completa enciclopédia de qualquer assunto escolhido, desde matemática até conhecimentos gerais sobre o mundo até a data de ser inserido. Uma vez acoplado na área de Wernicke, as ondas cerebrais juntamente com seus neurotransmissores preencheriam em instantes conhecimentos que demorariam anos para grandes médicos aprenderem, conhecimentos de prática, conduta e até ética eram ganhos em apenas um piscar de olhos. Você poderia falar francês sem nunca ter estudado a língua ou resolver problemas químicos sem saber nem mesmo o que respira. Era absurdo, inumano e genial. Dentre as centenas de comentários na página haviam vídeos do processo de microcirurgia feito em minutos e com uma pequena cicatriz atrás da orelha. Em outras abas constavam depoimentos de pessoas que viviam a mais de cinco anos com o chip e se diziam satisfeitas e agradecidas por toda vida pelas novas capacidades. Uma penúltima aba no site saltava para o humor e um homem com sorriso e cabelo artificial dizia: “Estudar é chato, não é mesmo? Anos de sua vida perdida em uma formula matemática que resulta em zero, é pior ainda, certo? Você poderia estar curtindo, invés disso está aí sentado, entediado e sem conseguir se concentrar ou dormir, para o que mesmo? Apenas por uma bolsa de mais estudos? Bom, parece que essa Era já passou! Nós somos da Era Já e queremos tudo agora, hoje, nesse minuto. Pensamos em você ao desenvolver essa nova tecnologia. Neuro307. Pare de colar em provas. Acesse nossa aba como “como adquirir” e saiba mais! ”. Era algo feito para descontrair, mas assustava e causava vergonha, aquele cara tinha realmente criado isso aos 17 anos, superando seu pai naquele mundo digital e hoje estava comprovado, finalmente comprovado que aquele chip funcionava e poderia ser adquirido a qualquer momento.

Quem diabos ele pensava que era para criar algo tão ultrajante às pessoas que passavam anos em estudo árduo para ser alguém? Todo mundo agora poderia superar o gênio da sala de aula, apenas implantando um chip? Quem realmente acreditava nisso para ir a fundo? Ou para vender algo do tipo? Ou para patrocinar tal ideia? Em minha ingênua opinião, isso era algo que seria esquecido, não utilizado e forçado a ser retirado do mercado. Com o tempo aprendi que aparentemente era uma das poucas pessoas que pensava daquela forma.

Houve apenas uma longa e ensolarada semana desde aquele episódio até que realmente aquela invenção pudesse começar a me irritar. Naquela tarde de domingo em um programa de alta audiência, Marcos Paulo cruzou suas longas pernas para conceder uma entrevista bem-humorada juntamente com sua ajudante de pesquisas desde sempre, pelo jeito, Paula Aguiar, respondia todas as grandes preocupações que estavam sendo direcionadas a ele, em grandes e-mails do mundo inteiro. Calmo e preciso ele mencionou com um forçado sorriso quantos anos dedicou de sua vida aquela descoberta e todos os 307 testes que haviam sido feitos até então. Houve três riscos de morte cerebral a pacientes que aceitaram serem vitimas de seus testes, felizmente, enfatizava ele, todos os riscos foram sanados com microcirurgias para retirada do microchip. Dentre os casos de sucesso, somavam-se cinco famílias beneficiadas com a descoberta, que levavam suas vidas normalmente e eram grandes estrelas no mercado de trabalho. Um dos casos, dizia firmemente, era sucesso na área de química e demostrava grande aptidão, jamais vista. Para mim parecia improvável que a repórter pudesse acreditar em tais afirmações ou mesmo se interessar por algo tão sem propósito, afinal as pessoas não poderiam ser todas geniais em todas as áreas, porque não haveria trabalho suficiente para todos, afinal o que torna alguém insubstituível em um emprego é justamente o fato te ter estudado tanto, de ter conhecimento avançado em fases teóricas e práticas de qualquer âmbito do conhecimento. Não era possível que poderia haver alguém que dormisse sem saber uma equação de longo cálculo e estudo, para então acordar em outra manhã resolvendo em segundos incógnitas absurdas de matemática. Apenas porque um chip implantado em sua cabeça lhe dizia a resposta.

- Posso afirmar com exatidão que não há qualquer problema de origem física, psicológica ou social que o chip possa proporcionar ao ser humano. Foram realizadas dezenas de testes em diferentes raças e países que concretizam minhas palavras, assim como todo meu trabalho e pesquisas está disponível online em meu site, tudo o que essa grande descoberta pode trazer a sociedade e pessoas em geral é sucesso profissional, pessoal e social. A partir de hoje você pode ter mais tempo para família, para o lazer e trabalhar no que quiser finalmente com uma qualidade de vida imensurável ao alcance das mãos. Todo meu árduo trabalho tinha desde o inicio o plano de igualar a sociedade em uma só, afinal a pobreza e miséria será destruída quando o chip começar a chegar às mãos dos mais necessitados e será comercializado livremente as massas em anos. Será criada uma nova raça de pequenos e grandes gênios disposta a encarar essa nova realidade com prazer, tudo isso foi enfim disponibilizado porque eu acredito em um mundo melhor, mais rico, mais inteligente e mais pronto a encarar qualquer desafio. Foi por isso que dediquei minha vida a essa descoberta e trabalhei incansáveis e inúmeros anos com os melhores e mais capacitados cientistas da área e juntos criamos a revolução deste milênio que se inicia hoje. – disse enfático ao fim da entrevista.

(continua)

Isabela Borges
Enviado por Isabela Borges em 13/10/2016
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