Tentativa de início do cap. 1 de um romance de gênero. O que acha?

Completou a descida desembocando na longa alameda onde, à esquerda e mais à frente, situava-se sua casa. Embora um dos lados da rua fosse o seguimento infinito de quarteirões com residências populares, antigas e em sua maior parte reparadas, o outro lado se destacava por ser a extremidade de uma grande extensão de cultivo ambiental, com a vegetação abarcando ali no bairro bom pedaço de terra, o pulmão da cidade.

Nas árvores das beiradas e nas que mais se erguiam, contudo, mostravam-se aparentes os danos que a estiagem duradoura causava à região. As copas à mostra, espetando o ar, o capim seco. A penumbra da mata com o tom enfraquecido pelas luminosidades trespassando-a.

Início de novembro, e os longos dias sépios em Goiânia eram seguidos por noites secas sem brisa. A umidade do ar muito baixa provocava maus sintomas; o número de pacientes diagnosticados com viroses, dengue, no serviço de saúde — diversos morrendo devido falhas no atendimento público — em crescimento. Fora elaborada uma apresentação na abertura das Olimpíadas deste ano sobre os danos ecológicos, o derretimento das geleiras continentais, e o nível do mar alagando ilhas e litorais habitados (as maiores metrópoles) como consequência do aquecimento na atmosfera. O estádio Maracanã como um disco-voador noturno que pousara no Rio, produzira efeitos de projeção e conscientização. Coisa necessária lembrar as pessoas que sua raça, seus descendentes, vão acabar tendo apenas um trapo de planeta para viverem se não nos importarmos, e depois só Deus sabe. Triste que ainda não inseriram tal ideia de dever aos hábitos.

Escutou o canto da cigarra vindo do tronco de uma sucupira-preta na reserva ambiental. Concordava com ele, capaz.

Caso o fosse teriam sido suas queixas ouvidas: lá distante, para além da ponta da alameda e acima dos contornos duma caixa-d'água industrial longiqua, uma porção de nuvens arroxeadas se fundiam nos fundos do céu. Não saberia dizer se chegava hoje. O restante do céu era de azul-celeste e mormaço que David pensou que não — mas também não ia demorar.

A trivialidade o intrigou. Agora há pouco seu supervisor lhe obrigara a assinar um medida disciplinar injustamente, o que fez com que ficasse remoendo o incidente com um carrancudo pessimismo na volta para casa, suando sob o sol, pressupondo sua demissão por conta disso. A visão do nimbo tempestuoso aliviou a imaginação de pesar.

Olhe lá, cigarra.

Foi andando com a intenção de mostrá-lo a Estefani; quase todos os dias quando David chegava neste horário, ela estava ali sentada na sacada do sobrado ao lado. Já repetira que com todo aquele calor suas gordurinhas a mais no corpo faziam-na suar feito uma maratonista. David a chamaria para a nuvem como que para um fenômeno, ela confirmaria a benção, sorrindo seu sorriso-de-tia-de-todos.

Entretanto, ao se aproximar, notou sentada na cadeira de fio de Estefani uma outra mulher, absorvida no conteúdo de um livro grosso. Devia ser alguma parenta dela.

Subiu na calçada. Era ali que vivia David, há quase oito meses, nos fundos do bairro da Vila Redenção defronte ao Jardim Botânico, para onde mudara-se a propósito de ir a pé para a agência de telemarketing onde trabalhava, sem precisar usar o desrespeitoso transporte público. Tinha uma tampa de boeiro na sarjeta que quando veículos passavam produziam barulhos que David se alertava do quarto, a princípio, mas acostumou-se. O gramado da frente, com uma árvore crescendo num dos lados e pedras calcárias do tamanho de ovos de avestruz o ornamentando, era algo singular naquela localidade. A trepadeira verde alastrada no muro também dava um aspecto diferente à residência convencional. As outras construções tinham apenas o cimento pavimentando a porta e fachadas empalidecidas. Achava o lugarzinho adequado ao seu gosto.

Tirou a chave do bolso, fitava a desconhecida sem muita curiosidade. Ela subitamente virou os olhos para o rapaz. Eram verdes, magnéticos como olhos claros o são, puxando ou repelindo em seu contanto.

— Boa tarde — David cumprimentou-a lá encima.

— Olá. Tubo bem? — respondeu-lhe com meia gentileza. Ao oposto de Estefani, tinha o rosto quase côncavo, agradável na meia-idade. Logo retomou sua leitura.

Destrancou o portão sem frestas e entrou em casa. Tinha um espaço para até quatro pessoas morar, porém morava só, sua família ficava no interior, a noventa quilômetros a sudoeste de Goiânia. Sentia-se meio bicho-do-mato, alienado, mas teve uma experiência desagradável ao dividir o aluguel de um apartamento com outro rapaz, ano passado, e não o incomodava a solidão do lar.

O lote cotinha espaço para criar até mais de um cachorro, porém David limitara-se a apenas um gato que pra variar desaparecera há poucos meses.

Sua marcar ficou. Sempre que regressava para casa sentia o coração embrulhar na ausência da esfregação nas pernas, o miado racional em pedido. Era só uma criaturazinha de manchas amarelas quando David o encontrara miando numa praça, à noite, dentro de uma caixa de sapato vulnerável a ataques. Trouxe o remelento para casa praguejando contra quem teve a coragem de fazer aquilo, e o chamou de Juliano. Impacientado, David teve de limpar as cacas que o filhote deixava por trás dos móveis, ou por cima deles, descobrindo que aquelas eram as mais fedorentas fezes de todos os animais. Deu leite na chuquinha para ele, mais tarde lhe arremessava os pedaços de carne crua enquanto os cortava para o próprio jantar, e nunca o esbofeteou quando nas brincadeiras Juliano perfurava os dedos do dono com garras-anzóis que causavam dor venenosa.

E do nada, de repente, o gato o some, quando por fim ficava vistoso. Não gostava de se lembrar. Apelara com o pai ao telefone, quando ele sugerira que não ficasse triste pois gatos eram bichos aproveitadores.

Sem a recepção de Juliano foi para o quarto se trocar. Dali para o banho. Antes tomou água na cozinha e o desânimo o tomou quando viu o amontoado de louças que tinha para lavar depois. No mp3 do celular Segue o som era cantada por Vanessa da Mata. ... Dramas são sempre enrolados, tome mais cuidado, não vá sem razão... Korn havia sido a banda favorita de David mas hoje preferia menos estrondo, indignação. Apesar de Korn ainda enquadrar bem suas nostalgias mais emblemáticas dos 14 aos 17 anos.

A campainha zuniu elétrica sobre a canção, fazendo-o sacolejar. Quem teve a ideia estranha de colocá-la ali no banheiro? Desligou o chuveiro, gritou já vai, pôs uma bermuda e uma camiseta, ajeitou de lado com a mão mesmo o cabelo escuro cortado baixo, e foi atender quem quer que fosse. Sabia que não era Ludimila porque esta chegava gritando seu nome.

Ao abrir o portão, a mulher esguia, com uma saia preta de corte reta descendo aos tornozelos, deixou de observar a mata do outro lado da rua, e virou-se para David. O sol descia, espreguiçava as sombras e tornava avermelhado o mundo.

Com uma simpatia desorientada, tornou a cumprimentá-la. Ela indagou:

— Você que é o David?

Um lampejo de agouro se insinuou com a pergunta. Temeu algo ter acontecido a Estefani.

— É, sou eu.

— Eu sou Betina, sou irmã da Estefani. Ela teve que fazer uma viagem de urgência e me pediu para falar com você.

— Ah, sim, prazer — David estendeu-lhe a mão. — Ela aluga a casa aqui pra mim.

...

...

Daniel Vincente
Enviado por Daniel Vincente em 11/09/2016
Reeditado em 11/09/2016
Código do texto: T5757785
Classificação de conteúdo: seguro