Teu fascínio é meu horror.

Eu gostaria de ser outra garota vivendo em outro lugar. Preferia nunca ter te flagrado a errar o caminho pelas sendas úmidas da cidade.

Desde então, o fascínio de saber-te; o medo de realizar-te e o terror de perceber que talvez eu nunca possa realmente… te conhecer.

Que talvez sejas, por destino, elemento inextrincável do devaneio - material circular para sonhos. Um nome e uma imagem que, narrados apressadamente, principiam a dissolver-se do uso reiterado e sem manutenção a que se prestam (nas minhas poesias, histórias, ficções).

Quando repito a mesma palavra cinquenta vezes, ela se desarticula e deforma. Põe-se ao mundo já outra – uma mentira. Passaste à parte falsa da vida e nem por isso eu deixei de – todos os dias – te amar.

Nunca mais te vi (ou verei, desconfio). Nunca mais.

O medo de te enxergar outra vez e revigorar o símbolo em que te converteste – esse medo não é maior do que o terror de perceber que provavelmente eu nunca mais…

És a metáfora do amor que desconheço. Uma metáfora autocorrosiva e lacerante. Não te culpes sequer em hipótese - não te fustigues sequer no sonho que porventura tenhas dentro desse sonho. Se não houver a projeção do amor, que me resta da mágica - essa mágica que é o único liame entre meu corpo derrotável e a beleza inebriante de existir?

És o pretexto da solidão desarrazoada a que me confio – mas ela vem antes.

Antes da tua ausência está a minha solidão.

Ela decorre do fascínio atávico pelas figuras e fatos perfeitos e intangíveis. Ainda criança, quando descobri em mim essa paixão pela simetria, pelo enlevo delicado dos instantes, pelas criaturas perfeitas.

Já sei que deus não existe.

Cerca de 7 bilhões de pessoas pisam - por consequência perversa do acaso - a face do terceiro planeta a contar do Sol.

O Sol é metaforicamente belo e perfeito; à sua imagem e semelhança inventamos nossos mitos.

Meus pais têm duas filhas e um acúmulo de histórias no ventre de várias décadas.

Minha turma na faculdade – noventa alunos e sete professores.

O curso de teatro que frequento: vinte inscritos, um mestre.

Meu ex-namorado já namorou três outras garotas depois de mim.

Ontem me descobri deitada sobre um sofá desconhecido, vendo um filme enquanto alguém tomava banho. Não conseguia me ater ao enredo e, na confusão dos pensamentos - fábulas e fatos -, não lembrava quem realmente orquestrava a torrente líquida do chuveiro.

Um filme de terror.

E no banheiro, quem?

A luz se apagou. A mocinha, desorientada, apalpava a mobília e as paredes.

Eu tentava ler o percurso da água pelas formas incógnitas quando o barulho estancou.

Minhas mãos apertaram o seio da almofada aveludada. Não estava preparada.

Alguém sorrateiro assomou às nossas costas. Parou na porta. Nada disse, mas me olhava - eu sabia.

Apenas a concretude sentida daquela presença amorfa; e nenhum nome que àquele corpo se associasse seria mais decididamente brutal do que a simples constatação de que não correspondia ao teu.

Teu nome – cinco letras combinadas em melodia.

E não corresponderia - disso eu também sabia. Pois teu destino diverge do meu na parte em que realidade e ficção não se enlaçam.

Eu gostaria de ser outra garota vivendo em outro lugar. Ou talvez preferisse não ser uma garota, mas um marujo a velejar para sempre o infinito do mar – a perder-me por ofício, e não catástrofe.

No relógio – doze horas. Da noite, do dia… isso eu não sei.