Vício solitário

Apesar da poeira que cisma em branquear a estante marrom da sala, do bolor que já recobre o pão- de- forma da semana passada ou dos envelopes de correspondência desleixadamente amontoados, da xícara de café de ontem ainda sobre a bancada com os farelos de biscoito ao redor. Ou da torneira do banheiro que goteja porque precisa ser trocada há meses. Embora pareça solidão, são apenas vestígios. Pequenos rastros que saltam aos olhos. A solidão real, a que faz lembrar das ausências, é falar e rir sozinha pela casa de tanto que tenho a dizer para ouvidos que não encontro. É o vício de achar que alguém ainda terá vontade de escutar. É essa mania que está se tornando pensar em voz alta. Esse hábito de ter a cabeça em rebuliço reflexivo, o coração prestes a explodir num abraço que não acha outros braços que retribuam e um sorriso solícito e bem disposto que é distribuído a esmo na esperança de reencontrá-lo em outros lábios. Dizer-me solitária? Não, dizer-nos. Computar a culpa na superficialidade alheia é bem mais fácil do que admitir que, em outros apartamentos, a mesma poeira do meu enegrece, talvez, um móvel branco de outro alguém que também se viciou em conversar sozinho. Como encontramo-nos se os rostos nem mais ousam chegar à janela?

Solidão verdadeira é ter a alma empoada; por isso, me varro todos os dias.

Luciana Gouveia
Enviado por Luciana Gouveia em 19/12/2015
Código do texto: T5485460
Classificação de conteúdo: seguro