DEMISSÃO

DEMISSÃO – DUODÉCIMA DE WILLIAM LAGOS

DEMISSÃO I (2009)

hoje pretendo

dar aviso prévio

a todo amor que traga ao coração

que vá embora depressa esta ilusão

que sem motivo está me perturbando

amor do amor apenas denotando

incomodando acomodando

relatando relutando

cantando ecoando

vou acordar a aurora

à meia-noite

pobre noite pobre noite

sem afoite sem afoite

nem aboite nem aboite

não tendo mais lugar em que me acoite

a noite amiga transformou-se em meu açoite

e o por-do-sol se fez em turbilhão

a rodopiar no interior de meu pulmão

DEMISSÃO II

e na minha lida

incompreendida

busco em vão acordar o por-da-lua

que se ergue apoiada numa grua

por isso quero o sol da groenlândia

seis meses brilha ao norte dessa escândia

islândia eislândia

irlândia eirelândia

laplândia lapolândia

ante as frieiras da geleira ardente

frito meus dedos em gesto onipotente

onipresente onipresente

prepotente prepotente

pente dente

ao meio-dia porém eu quero a treva

ardem caixilhos embaixo da panela

cozendo a carne de minha musa ausente

que ao meu alvitre já não há destino. (*)

(*) arbítrio, escolha

DEMISSÃO III

que assim me impeça

aproximar-me da janela

mas quando ouvir as doze badaladas

sei que não foram por mim desperdiçadas

são doze horas de coagulado canto

que sempre serve como rima para pranto

paraponto paraponto

pesponto pesponto

reponto reponto

fritando os dedos em puro desaponto

por não dispor de gesto onipotente

da gente descrente

indigente delinquente

ardente agente

destinado a construir mil abadias

mil peregrinos salmodiando as homilias

enquanto pensam em outras contingências

de antemão a fazer suas penitências

DEMISSÃO IV – 01 AGO 2010

mas não agora,

tempos depois,

que amor é pássaro em gaiola aberta,

entra e sai à vontade, nessa esperta

malignidade meiga que me acerta

quando menos espero me perturbe

disturbe disturbe

conturbe conturbe

a urbe a urbe

pois é certo que já tentei em vão

inabilmente e sem exaltação

consecução consecução

execução execução

da ação da ação

prender essa ave esquiva na gaiola,

firmando a porta com potente cola

mas ela salta, polichinelo em mola

e as portas da gaiola se escancaram.

DEMISSÃO V

sai o rouxinol

e pousa no farol

com riso cristalino e indiferente

só para mostrar como é potente

e me escraviza em ilusão onipresente

no riso das quimeras que cantaram

abalaram abalaram

bailaram dançaram

araram zombaram

o pássaro do amor o canto gera

meu coração aguarda nessa esfera

antiga era antiga era

e a espera e a espera

já era já era

e me lampeja seus olhos descarnados

a sugerir que amor não leva a nada

se for buscar uma jovem encerrada

na mesma torre que foi de Rapunzell

DEMISSÃO VI

e só uma trança

que assim balança

no horizonte despenteado do crepúsculo

desenfreado desejo desse ósculo

perturbado a despertar pelo dilúculo (*)

olhos grudados pelo lusco-fusco

da madrugada da madrugada

já encarnada já encarnada

em nada em nada

estranho fel contido nessa réstia

no doce mel do gel feito de hóstia

a boca escura a boca escura

se mistura se mistura

na agrura na agrura

do meu anseio por louca comunhão

num rosário a titilar o coração

o próprio sangue servindo de cordão

na desventura sincera de minhas penas

(*) Amanhecer, crepúsculo matutino

DEMISSÃO VII

cinco verbenas

que hoje depenas

numa trapaça todo o malmequer

o carocinho se faz em bem-me-quer

nem a mim mesmo sequer enganando

na merencoriedade confessando

farejando farejando

cheirando cheirando

fungando fungando

as cebolas também atraem pelo cheiro

ou nos repelem em prantear mais agoureiro

do entrevero do entrevero

me abeiro me abeiro

ligeiro ligeiro

quem corta corações é um açougueiro

a carne morta conservando no tempero

um coração partido rinconeiro (*)

que o balido nas ovelhas não conserta

(*) Isolado, que mora no rincão

DEMISSÃO VIII

não que me faça de desinteressado

feio pecado

amor não deve jamais ser recusado

o mal do mundo já está tão espalhado

por ódio e inveja sempre controlado

no espantoso palor desse segredo

mas não concedo mas não concedo

um beijo ledo um beijo ledo

por medo por medo

que ponham em dúvida a masculinidade

e espalhem por aí negra inverdade

sou hétero sou hétero

perpétuo perpétuo

adepto adepto

muito mais fácil que adepto de segredos

ditos arcanos mas não mais que enredos

mas adepto apenas do sexual

que a vida expande de forma natural

DEMISSÃO IX

também queria

ter casa arbórea

triste macaco mutilado de sua cauda

naturalmente a subir por uma escada

sem possuir a habilidade do rapell

talvez pudesse galgar corda de nós

ficamos sós ficamos sós

andando empós andando empós

fortes cipós fortes cipós

outros bocós balançando pelo anzol

na cor furtiva de um falso arrebol

o chão ferido o chão ferido

amolecido amolecido

ardido ardido

percebo as joias na luz das exedras (*)

no rendilhado com que fura as pedras

por entre o verde dos caramanchões

no código secreto do esquecido

(*) Pórtico circular, alpendre

DEMISSÃO X

pela ponta cintilante

das adagas

por entre a relva brota um pé-de-sol

surge outro ao lado em chiaroscuro rol (*)

coral carmim brotando em verde atol

madréporas entre anêmonas crescendo

lutas fatais lutas fatais

em seminais em seminais

portais portais

enquanto a cor se move e dissemina

velhos anais da vaidade que assassina

o sol é touca o sol é touca

que rouca espoca que rouca espoca

e explode louca e explode louca

a recobrir de luz pedras de frio

lã jaldeorange no despertar do cio (+)

dos vulcões explodindo ejaculantes

com suas cinzas a cobrir os viandantes

(*) Claro-escuro, contraste entre luz e sombra

(+) Amarelo alaranjado, adjetivo heráldico

DEMISSÃO XI

antigamente

para manter a fé que cria

eu enfiava a mão no sol nascente

do conteúdo de sabor luminescente

a retirar para mim uma fatia

do bolo pálido descrente em caloria

na melodia na melodia

eu buscaria eu buscaria

magia magia

demonstrando total falta de fermento

talvez o cozinheiro até me acene

com sua colher com sua colher

no meu querer no meu querer

a remexer a remexer

só ele tendo o direito de lamber

os dedos lambuzados de prazer

e que não seja abusado algum conviva

que o mestre-cuca de injúrias assim criva

DEMISSÃO XII

de carne feito

tenho o direito

de pedir permissão a meu carrasco

meus próprios membros a comer nesse churrasco

e a beber o sangue que se escoa

do próprio amor se o coração me doa

e informaria e informaria

minha alegria minha alegria

em harmonia em harmonia

após o estômago ter locupletado

e ser nos intestinos enforcado

porém em vão porém em vão

minha demissão minha demissão

se aceitaria se aceitaria

que amor exige bem maior hemorragia

nessa tortura que chamam de poesia

rubro algodão da mais senil melancolia

a que curvo a cabeça em humildade

William Lagos

Tradutor e Poeta

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com