De grão em grão [75]

[CONTINUAÇÃO DO GRÃO ANTERIOR]

“Essa moça”, como persiste a autora a chamá-la, “não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é um cachorro. Daí não se sentir infeliz. A única coisa que queria era viver. Não sabia para quê, não se indagava. Quem sabe, achava que havia uma gloriazinha em viver. Ela pensa que a pessoa é obrigada a ser feliz. Então era.” (p. 27-28) Porque “não tinha consciência de si e não reclamava nada, até pensava que era feliz. Não se tratava de uma idiota mas tinha a felicidade pura dos idiotas. E também não prestava atenção em si mesma: ela não sabia.” (p. 69)

Ela ainda “sonhava estranhamente em sexo, ela que de aparência era assexuada. Quando acordava se sentia culpada sem saber por quê, talvez porque o que é bom devia ser proibido.” (p. 34) Apesar disso, “ela sabia o que era o desejo – embora não soubesse que sabia. Era assim: ficava faminta mas não de comida, era um gosto meio doloroso que subia do baixo-ventre e arrepiava o bico dos seios e os braços vazios sem abraço. Tornava-se toda dramática e viver doía. Ficava então meio nervosa e Glória [sua amiga do trabalho] lhe dava água com açúcar.” (p. 45)

E a nossa protagonista tinha ainda menos refeições do que personalidade. Às vezes, comia um ovo duro num botequim. “Mas a tia lhe ensinara que comer ovo fazia mal para o fígado. Sendo assim, obedientemente adoecia, sentindo dores do lado esquerdo oposto ao fígado. Pois era muito impressionável e acreditava em tudo o que existia e no que não existia também. Mas não sabia enfeitar a realidade. Para ela a realidade era demais para ser acreditada. Aliás a palavras ‘realidade’ não lhe dizia nada.” (p. 34)

Ainda sobre a sua submissão, “vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser.” (p. 36) Mesmo que de ser nada. E em relação a suas crenças, “ela acreditava em anjo e, porque acreditava, eles existiam.” (p. 40) E “quando ela era pequena, como não tinha a quem beijar, beijava a parede. Ao acariciar ela se acariciava a si própria.” (p. 78-79)

Macabéa representa o “anonimato total, pois ela não é para ninguém” e “nunca tinha tido coragem de ter esperança” (p. 76). O que lhe chamava atenção era algo com que se identificava: “sempre notava o que era pequeno e insignificante.” (p. 71)

E como é que foi o auge da vida de Macabéa? “Grostesca como sempre fora. Aquela relutância em ceder, mas aquela vontade do grande abraço. Ela se abraçava a si mesma com vontade do doce nada. Era uma maldita e não sabia. Agarrava-se a um fiapo de consciência e repetia mentalmente sem cessar: eu sou, eu sou, eu sou. Quem era, é que não sabia.” (p. 84) Nada mais miserável do que não saber quem é ou se ter a consciência de ser o nada absoluto.

Ricas lições para importantes reflexões.

Hélio Fuchigami
Enviado por Hélio Fuchigami em 06/01/2015
Código do texto: T5092767
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