De grão em grão [70]
[CONTINUAÇÃO DO GRÃO ANTERIOR]
Clarice Lispector nos revela o processo da concepção da ideia do conteúdo: “O que vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim. Tenho é que me copiar com uma delicadeza de borboleta branca. (...) O fato é que tenho nas minhas mãos um destino e no entanto não me sinto com o poder de livremente inventar: sigo uma oculta linha fatal.”
Ela diz o que escreve “é acompanhado pelo rufar enfático de um tambor batido por um soldado”, dando a ideia de uma inspiração incontida e perturbadora, e que “no instante mesmo em que eu começar a história – de súbito cessará o tambor.” É preciso escrever para tranquilizar um coração inquieto.
Contudo, a escritora também nos confessa o seu desafio: “Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espalhados. Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem falar que a história me desespera por ser simples demais. O que me proponho contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e mal vejo. Com mãos de dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama.”
E ainda complementa: “Na verdade sou mais ator porque, com apenas um modo de pontuar, faço malabarismos de entonação, obrigo o respirar alheio a me acompanhar o texto.” Repare que ela usa a concordância da primeira pessoa no masculino, por utilizar-se do pseudoautor Rodrigo S.M.
A revelação mais triunfal talvez seja a que citarei a seguir. Porém, de antemão, sugiro que a sua leitura seja feita sob a ótica de um coração galopante, que precisa escrever “para ser mais do que eu”, e não influenciado pela dose de melancolia naturalmente presente na veia artístico-literária: “Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias.”
Impressionante. Tocante. Reflexivo. A obra transcende a vida do autor, ao mesmo tempo em que lhe é vital. Ressalto o fragmento que elucida o papel da escrita na sua vida: “não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias.” Um verdadeiro curso de composição literária, dramaticamente emocionante.
Finalizo salientando que estas observações não representam uma análise da obra, uma vez que sequer abordam o enredo e os personagens. São apenas recortes advindos de um olhar cuidadoso de uma obra clássica riquíssima de nuances diversas.