Eu e ela, ela e eu

Viajávamos a passos lentos na companhia da infinda escuridão soturna, observando o sangue negro da noite que transmutava tudo num aspecto mórbido e bisonho. A lua, pálida e triste, derramava em nós sua eloquência lacrimal, banhando toda a paisagem num tom branco-acinzentado mudo onde ao encontrar a retina de nossos olhos era impossível as lágrimas segurar. Caminhávamos em torno de paisagens tristes, lívidas, árvores torvadas, nuvens desgrenhadas pelo vento que assoviava por entre as folhas dos arvoredos; e ao longe, nos confins do mundo, ainda se ouvia os corvos e corujas cantarem a canção sepulcral dos mortos moribundos. Arrepiei num espasmo de loucura, a face emudeceu lívida quando o sarcasmo nauseabundo da sinfonia arrepiadora dos seres da escuridão chegava aos meus ouvidos como machadadas de agonia.

Seguimos a caminhar... Eu e ela, ela e eu.

Eu, no calabouço fúnebre de uma mágoa infinda, amarrado as dores latentes das chagas que me roíam, assustado pela escuridão perene, apertava fortemente a mão de minha companheira com medo de perdê-la para as trevas que nos engolia. E ela me acolhia, me abraçava, sussurrava em meus ouvidos, como que sussurrando à uma criança, que tudo aquilo de um sonho não passava. Sua voz serena, doce e angelical, clareava minha escuridão interior como a aurora que vem descortinando os céus para fazer brilhar o sol.

De pouco em pouco parávamos nos caminhos solitários, cogitando um rumo, um destino, e eu, alucinado na magia peregrina noturna não sabia para onde íamos.

Seguimos a caminhar... Eu e ela, ela e eu.

Somente uma estrada deserta banhada pela luz da lua, curvando-se entre os montes, brilhava como se fosse diamante e todo o mais era escuridão vestida pelo manto lívido do luar. Ao lado, um imenso arvoredo serpenteava as curvas da estrada solitária até morrer na ribanceira do horizonte, e nos fundos daquela magistral pintura dois imensos morros se estendiam aos céus acariciando as nuvens, como deuses que assistem a trágica comédia existência humana. Do outro lado da rua havia somente um pasto repleto de morros de cupins que luziam sob a luz da lua como lápides esquecidas. Naquela paisagem formas lívidas se misturavam ao medo que me acabrunhava, imaginando, apavorado, seres mórbidos que se rastejavam na angustia cáustica dos sofredores, vagavam pelos horrores de seus tristes destinos miseráveis.

Seguimos a caminhar... Eu e ela, ela e eu.

A velha lua, mãe das grandes mágoas profundas, deusa da solidão infinda, plangia sua luz lúrida sobre nossos corpos frágeis e moribundos. Eu encarava aquele imenso globo magistral na sede mais insaciável, na mais latente ansiedade de dizer à lua o quanto eu entendia sua dor. Um coiote ao longe se manifestou num som agudo e incisivo, quebrando o silêncio que eu meditava, calafrios emergiram de minha pele arrepiando-me do corpo a alma. A escuridão empreitando-nos à surdina movia-se silenciosa, langorosa, inconformada por não ter uma língua para maldizer seu destino, turbando nossos olhos com sua mortalha nebulosa...

Seguimos a caminhar... Eu e ela, ela e eu.

Na caverna fúnebre, brumosa e esquecida de meu coração, caia das estalactites infindas da consciência mágoas profundas que me acolhiam no horror de seus pavores. Aquietei-me, pois não mais palavras tinha, era tanta dor que sentia que as palavras eram mortas pela angustia antes mesmo que se formassem nos pensamentos. Abracei-me à minha linda companheira, assustado feito uma criança perdida, e senti seus braços me confortarem num calor tempestuoso, despertando-me tamanha felicidade que todos os males que em mim habitavam aquietaram-se como as ondas do mar se aquietam logo após a tempestade. A luz dos olhos de minha companheira luzia a face lívida como tinta numa tela florescente. Era a mais bela obra de arte, a minha obra de Arte, por onde os meus olhos viam aqueles olhos. O meu assim, imóvel fitando os olhos dela a se mover lentamente, como se fizesse pender das estalactites do meu coração gotículas d'água, que por dentro de mim escorriam e aos poucos afogava-me. Olhos aqueles, mais singelos q'eu me rendo, me entrego; e como quem contempla a noite, sento-me no mais alto monte, para que eu possa ter a melhor visão da lua no meio da escuridão, dos astros a atravessarem o espaço pela escuridão daqueles olhos envolventes. E daqui posso ver melhor tudo, às vezes penso estar tão perto que os quero tocar, como se tudo que há no espaço coubesses em minhas mãos. Minha linda companheira tornara-se minha deusa protetora nesta viagem que é a vida...

Seguimos a caminhar... Eu e ela, ela e eu.

Caminhávamos como se estivéssemos sujeitando nossas vidas, beirávamos abismos, vacilávamos em cordas bambas, mas por maior que seja a profundidade do abismo, caímos dançando, sorrindo, chorando, se abraçando... Eu e ela, ela e eu; pois em meio a esse circo de horrores que nos apavora, seguiremos em frente, nessa estrada direta, não sabemos para onde ela nos leva nem para onde iremos. Só sabemos que juntos, continuaremos a caminhar...

... Eu e ela, ela e eu.

Nishi Joichiro
Enviado por Nishi Joichiro em 05/02/2014
Reeditado em 05/02/2014
Código do texto: T4678719
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