IMPRESSÕES NUM QUARTO DE LEITURA

Por qual sentido arde o pensamento que desencontra sua precisa definição? E de qual signo trafega o poder de animar o compasso preciso dos contornos anímicos? Pode assim trair a palavra que reveste em éter o basalto do olhar? Ah, vida... Vida são dois olhos mendigos pedindo para serem relanceados. Num, o azul oceânico nos pede, com formoso carinho a dizer: siga-me. Noutro, de igual penetração, um caminho tênue para se perceber; graceja o juízo e a sensibilidade, equilibra as cores da emoção cética e védica, e prepara em seu castanho, o corante da incerteza.

Apenas um livro sobre a cabeceira (destes que lemos ao sussurrar torto do tempo) tremia os ecos do vazio. Sem pudor, embaracei-me a perguntar se captava airosamente as florestas mentais do escritor ou se criava densidades a partir das sensações que aquele momento, poderosamente circular, propiciaria. A prosa sentida esconde a dispersão e afivela o fatalismo do encontro do ser com o horizonte que não lhe pertence. Adiante espreita o universo que qualquer retratista de olhos apeados no cotidiano deixaria escapar. E depois nos encaixota na validade imprevista tinindo verdades.

Ali, apenas vestia palavras no prazer estoico que a pouco teria de relatar ao meu caderno de esquecimentos. Quase a justificar a monotonia do desencontro perpétuo do sujeito que mede a seda dos lírios com o movimento de uma negativa. Quedando da sobrevivência nos salões das personagens caprichosas, as minúcias sobre as parcelas enfileiradas no todo do sentir, beijava o fardão do assim seja, resmungando cantigas camponesas por sobre a textura do texto.

Numa faísca de sentir em todas as dimensões veladas pelas páginas, o chão de minhas palavras errantes nas lufadas definições, estrepitava sua presença nos tarôs silenciosos do pensar. Em menos ritos, sou-me o romance que pedia leitura penetrante, esperando que uma partícula tentação acolhesse-me o personagem que ali volteava a alma sinuosa. Mas tomado pelas rimas do pensamento que nem bem carregou o centro de sua forma, mergulhei meu espírito nas origens ininteligíveis, cofiando os pelos que a fonte de águas desconhecidas eriçou.

Leio na primeira página: “A cada momento em que não somos iguais, pois que iguais jamais poderíamos ser na unidade do ser que estranha essas divisões exigidas pela forma, também somos iguais.” Visamos topos tão obscuros à nossa unidade pressentida que, tão logo hasteamos uma bandeira original, os ventos do desconhecido nos limam outra direção. A natureza ri-se gostosamente das coleções de porcelanas criadas a cada desconforto. Numa manhã, ao sabor do sol nirvânico, estamos prontos para universalidade serenamente envelopada no infinito. Na tardinha, a contabilidade pede caneta, régua e óculos. Quando a noite se avizinha, vê-se qual é o bolero das estrelas. A Natureza não se esteia em sadismos, mas sabe bem das arquiteturas cinematográficas; um rio nada mais é do que um rio; vê-lo nas alturas da metáfora, é da alma humana. Seu chamamento é chama, é o número da vitalidade; escuta quem pode, e nada é tão estranho para a imagem de si, que a naturalidade de esquecer a prática dessa imagem em ação.

Por que parara no ato da expressão? Meu sorriso, que desenhava vírgulas, fechou-se em aspas. Nos vértices interiores, comunicava-me de maneira angulosa, sem os fatalismos que dão ao fermento das modas, o sintoma da certeza. Vivi a leitura de um capítulo longo, no entanto pousara atenção neste pequeno parágrafo... Reli muitas vezes e, por capricho ou temor, quis perdê-lo. Vi nas sensações um pensamento longínquo se manifestando, e no pensamento das coisas imediatas, sensações esguias. Olhar-se como se transparente fosse, perturba a quem espera o motim do silêncio. O enredo da impermanência, ao homem moderno, fileira na seção das ficções perturbadoras. Porém, deslocava observações singulares da mente do desejo, enquanto o eclipse no deus ex-machina escrevia as mesmas receitas para os sintomas do a vai para b.

Nestas receitas ágeis, tentáculos segurando o braseiro dos segundos curvos, rezavam a cada microscopia em mim, outras imagens não menos cubistas que as que lhes deram a forma atual. Aguavam em dizer algo de sim, pesando algo de não. Nas calçadas do mundo, infeliz daquele que carrega um nem sim ao lado de um nem não no corpo das coisas que a opinião jornaleira precisa estampar em linha reta. Nessa lousa de ânimo, convalescia em minha têmpera de ter; algarismo estranho de uma macabra aritmética de indefinições crescentes. Nunca, de maneira alguma, lingotes de visões tão cultuadas no totem visceral do para sempre, se mostraram arcas recheadas de mofo e gordura. Eram desenhos tribais lançando seivas ao rochoso high tech; pressentia essas coisas de há muito: o que pode o sono saber sobre a vigília?

Diversas pausas cabiam na respiração enquanto ansiava o final do capítulo. O temor do sono dourava as sobrancelhas levantadas bramando além. Não me importava tanto com o ar azedo ao fim do almoço, se tais possessões de iluminuras figurassem claras nas cúpulas do olhar. O sentimento do tempo construía seu leque multicor. Deixava de escutá-lo badalar apontamentos errantes. Por trás dos serões da imaginação nos umbrais das formas, imitava festas pagãs pela colheita jubilosa. Consumido pelo andaime do presente, tocava a madre-pérola da capa do livro qual se fora marfins num ofertório. Da janela miúda espremendo gordos lances de brisas, os sussurros percebidos transmutavam-se em melodias venusianas. O delta formado no chão por alguns filetes de Sol, deixava o gosto da arquitetura maior. Ao me estar no instante, nada pode ser, e apenas nesse instante, pude ser.

Talvez uma sombra copada numa tarde extenuante? Talvez. O contorno daquele arcano maior viu-se invadido de vozes subterrâneas no ato pleno. Conformei as divisas preparadas nas essências raras, para delas me despedir? Ao tatear a oitava da unidade, o colosso do passado extrai as minas fecundas do Demiurgo, a apresentação de mapas seguros daquilo que por dentro vive, mas incerto naquilo por dentro é. Se me aproximo desse intocável, se experimento e não posso concluir com metros exatos, vejo cúmplice do labirinto humano, um nome ancorado ao absurdo.

Ainda atormentado pela fixidez em minha fé na leitura, apressa-me desvendar nas tochas da crença, o carvão restado. Pois não digo sorrisos para as lonjuras onde meus olhos ficam destronados – os cristais finos e sincopados ao húmus dos quintais. Quisera Elíseos encantados nos cantos e recantos do tempo bramânico. Ah, embora encarnando o x intrometido do si-mesmo, titubeio senti-lo em sua polpa suculenta. Nele, apenas sossego o instinto de parecer afortunado antes de sentir o chão gelado ou o aroma das papoulas. Seria belo dizer o contrário, mas de tal forma necessita a alma humana a verdade que lhe acotovela o zênite bibliotecado, que se sobrevivesse um pólen ao hálito das supremas necessidades hiper-ultra-pós-modernas, algo do cavernícola poderia ser suspeitado.

Personagem irritante de enredo blasé! Quem me emprestou este livro? Faz um bom tempo que estava nas poeiras e traças... Quando encontramos personagens com as quais menos somos exteriormente, mais interiormente nos desconhecemos? Quem conta sua história acredita ouvir do outro a verdade com medo de escutar a si mesmo. Ri. É como a dúvida saída da pergunta que já contém a resposta quatro lances além do que poderia ser respondida? Se cada um de nós, no cordel das expressões, tivéssemos de destilar um personagem principal, que chão além da neblina jogada no tempo e reconstituído nos braços da lembrança, seria? Iria mesmo, ser?

Penso esquecer essas personagens enfadonhas, ó epopeia, cala-te! Nada passa oculto se o símbolo algema os espectros negados frente aos princípios de onde as manifestações se arrastam. Tingem-se nos óleos do mundo oculto, as páginas alvas e inquietas do agora. É o parágrafo reprimido com o rápido passar para outras páginas, ulcerando o veleiro do paraíso perdido nos atracadouros devaneados. Vai-se uma locomotiva, os olhos ardem para congelar a paisagem borrada na janela. E depois dizemos com pouca graça: o tempo voa.