Conto Nublar #048: UMA ESCOLHA MUITO SÁBIA
A INCRÍVEL HISTÓRIA DE DUNKAN THÔR DUE TUTO
Ficção
DUNKAN THÔR DUE TUTO, ou simplesmente Du Cantor, era um cantor fora de série.
Incrivelmente, era capaz de cantar em dueto.
Não me perguntem como, pois nem mesmo a Ciência sabia explicar. Cantava, diga-se de passagem, numa afinação pra nenhum crítico botar defeito. Mas isso nem sempre foi assim. Incrível sua capacidade de, mesmo em solo, fazer dueto, diga-se passagem, com uma impecável afinação. No princípio, tinha o maior trauma para cantar porque sempre que tentava saía um som semelhante a uma flauta quebrada; uma voz de taquara rachada.
Certo dia, cantando no chuveiro, descobriu-se entoando um mavioso e harmônico dueto. Com o passar do tempo, conseguira chegar à incrível façanha de duo vocal em terças maiores e menores com em quintas justas, diminutas ou aumentadas e até sextas. Algo fenomenal, mas, apesar dessa exclusividade de poder cantar em dueto, lamentavelmente sofria a desventura de nunca poder fazer um solo, um uníssono solo. Compulsoriamente, por mais que quisesse, jamais cantaria noutro estilo, senão em “dual vox”, como já antes explicitado. Se teimasse em cantar em uma única voz o mínimo que conseguiria seria um desastrado desafino.
Não demorou muito, sua fama correu mundo afora. Um amigo fez um vídeo viral, publicou na Internet e, em pouco tempo, virou "top hit". Um fenômeno! Não é difícil imaginar como os caça-talentos de plantão logo quiseram tirar proveito do raro dom do Duetuto. Zeca Sá L'Afrário tratou logo de registrar a marca "Duetuto, o Fenômeno”. O próximo bote foi convencer o pobre Dunkan Thôr assinar um contrato com uma interminável agenda de shows, entrevistas e apresentações em teatros e nos diversos meios de comunicação. Quanto mais a fama crescia, mais e mais o pobre homem era explorado. Não tinha tempo nem pra se coçar.
Logo, logo, sua fama também chegou aos olhos e ouvidos dos cientistas que, além de curiosos, queriam decifrar, à luz da Ciência, o fenômeno 'Duetuto', pois, até aquele momento, era impossível um indivíduo cantar simultaneamente em dueto, seja em que intervalo fosse, embora todos tivessem duas pregas (cordas) vocais.
Queriam porque queriam, “para o bem da Ciência, dissecar vivo” aquele “avis rara”, o "dueto in uno". Tanto insistiram que o Duetuto cedeu à pressão dos médicos cientistas, submetendo-se aos exames que fossem necessários para que a Ciência desvendasse o mistério do “Dueto em Um”, Du Cantor.
Exames realizados, nenhum resultado foi elucidativo para justificar o dom do jovem Duetuto. Uma análise acurada das pregas vocais deu sinal de que o dom do jovem poderia ser antes um grande problema, em vez de um raro talento. Um discreto cisto na prega vocal esquerda foi o ponto de partida para exames mais aprofundados e mais acurados. Uma tomografia computadorizada e uma ressonância magnética da orofaringe foram solicitadas para melhor diagnóstico. Para complementar, uma biopsia do cisto vocálico também foi enviada ao laboratório. Suspeita confirmada, a hora da verdade:
- “Você está com um carcinoma invasivo, num estágio primário na prega vocal esquerda. Isto é o que motiva a dualidade vocal que suas cordas emitem. Até ao falar, discretamente percebe-se uma voz em estéreo como se duas pessoas falassem simultaneamente a mesma coisa. Vamos submetê-lo a sessões de quimioterapia e após três meses reavaliaremos o a evolução ou não do seu estado.”
Após o prazo determinado, novos exames foram realizados, mas o câncer estava lá, renitente. Enfim, o mais temido veredicto, seu médico fez lhe comunicou:
- “Sr. Tuto! Lamento informar que o fenômeno que lhe proporciona a exclusividade de cantar em dueto não é apenas um dom raro da Natureza, pura e simplesmente, mas um problema do tipo bomba relógio a ponto de explodir a qualquer momento. Por enquanto, o CA ainda está incipiente e pode ser removido com segurança. É evidente que você provavelmente perderá essa rara característica de cantar em dueto consigo mesmo. Em compensação, você terá salvo sua vida que, por certo, é bem mais valiosa que qualquer outro dom natural. Muito supreso e bastante abalado, embora já temesse esse resultado, Dunkan Thôr pondera com a junta médica que o estuda:
- “Mas doutor! Não pode ser! Eu estou com minha agenda lotada de compromissos assumido para os próximos vinte e quatro meses. São contratos que me impõem multa pesadíssimas. Não poderia interromper todos esses shows e compromissos sem ter que pagar muito caro pela quebra dos contratos, tudo por causa desse minúsculo cisto vocal. Estou de pés e mãos atados. Realmente não sei o que fazer. Poderia pelo menos cumprir esses contratos ante e depois me submeter a esse tratamento?
- Senhor Dunkan! Receio que o você não tenha escapatória que não seja a cirurgia. É uma questão de vida ou morte. Um CA já é difícil ser detectado no começo e você teve muita sorte. Essa doença é traiçoeira e cresce assustadoramente contra o relógio da vida. Um mês significa muita perda de tempo e, neste caso, o tempo corre contra você. Imagine daqui a dois anos. Certamente não estará vivo para contar a história. É extremamente urgente que comece o tratamento com quimioterapia imediatamente e que pare de cantar hoje mesmo. Nem no banheiro deve cantar e só pode falar o indispensar sob pena de agravar mais ainda sua situação.
- Mas doutor...!
- Sr Dunkan! Não está estendendo a gravidade do seu problema. Se não começar já o seu tratamento, não só perderá essa prega vocal, mas estará sujeito a perder a faringe com pregas vocais e tudo. E, adeus voz! Desculpe-me a franqueza, mas o você precisa acordar para a realidade. Estamos numa corrida contra o relógio da vida. E ainda poderá também adquirir uma metástase desnecessária e aí é que a foice vence a vida. Você não tem escolha! Escolha a vida que é bem melhor!
- Está certo, Doutor! Vou fazer o comunicado ao meu empresário, mas preciso de um atestado indicando o tratamento para que eu possa tentar suspender os contratos enquanto esse tratamento perdurar.
De posse do atestado, Duetuto procurou seu empresário e este fui simplesmente irredutível. Este não nem um pouco sensível ao momento crítico pelo qual seu cliente passava. Disse-lhe que, se não cumprisse os contratos, não iria sofrer os danos sozinhos, mas teria que dividir os estragos co ele também. Nada conseguiu convencer aquele usurário que moveu uma ação contra o pobre cantor, exigindo por perdas e danos morais a absurda cifra de vinte milhões de reais.
Entre a cruz e a espada, agravando-se mais ainda o seu estado de saúde, Dunkan Thôr constituiu um advogado para o defender nessa ação absurda de pura e visível exploração e falta de humanidade. Não foi difícil vencer essa causa. O juiz deu ganho de causa ao pobre Dunkan Thôr e ainda penalizou ao empresário a pagar as custas do processo, os honorários dos advogados e ainda uma indenização por perdas e danos morais ao pobre enfermo no valor de dez milhões de reais, virando assim o feitiço contra o feiticeiro.
Ao término dos três meses, o Dunkan voltou à junta médica. O resultado dos novos exames não encontraram sinais de qualquer melhora no quadro de saúde do paciente. Mas também o CA manteve-se estável. Marcada foi a cirurgia. Esta foi realizada com sucesso. A prega vocal esquerda foi radicalmente removida pondo também, de forma radica, fim ao fenômeno “Duo in uno”, o nosso raro 'solo dual vox', agora em monaural, Dunkan Thôr Duetuto. É fato que ele continuou sua vida artística cantando somente em solo. Perdeu seu stato de fenômeno. Em compensação, assegurou-se-lhe o direito de viver saudável pelo saldo de vida remanescente.
Uma escolha muito sábia.
SÁBIA