A EPIFANIA DE ESTHER

Esther demorou cerca de trinta minutos para chegar no hospital. Já passava da meia-noite. A mulher não sabia se acreditava na sua visão, mas se fosse verdade, estaria morta em poucos minutos. Estacionou o carro, e sem ao menos tirar a chave da ignição, saiu e entrou no seu tão conhecido local de trabalho, mas não sem antes ver várias enfermeiras em grupo a fumar. Passou por companheiros perguntando onde estava o cirurgiãochefe. Até que o encontrou, parado lendo um exame com uma prancheta nas mãos. Com um rosto pensativo, o médico virou a face para frente e viu Esther. Os dois ficaram parados, olhando um para o outro. Esther respirava forte.

- Esther, você está bem?

- Eu amo você. – O médico ficou estático. Os olhos de Esther encheram-se de água.– Obrigada por tudo. Desculpe por ter sido tão boba e fútil no começo. Se eu pudesse, eu voltaria ao passado e tomaria decisões completamente diferentes das que tomei.

Um silêncio tomou conta do ambiente. Até que o médico falou:

- Você tem consciência o quanto me machucou?

- Eu sei, eu sei. E estou muito mal com isso. O que acontece é que na verdade eu me machuquei ao mesmo tempo em que machucava você. Eu quero mudar isso.

- Acontece que você não pode. Não adianta falar isso agora. Eu dei a devida importância para as suas palavras, Esther! Uma palavra vinda da sua boca pode fazer um mal irreversível em mim. Podia no caso. Porque eu te amava e, agora, não sei se sinto isso mais. - Esther sentiu uma flecha gelada entrar no seu peito. – Eu já quis muito lhe ajudar, mas não quero mais. Já senti muito amor por você, hoje não. Você precisa passar por isso. Talvez, quem sabe, não se torna uma pessoa melhor.

E o médico saiu andando. Esther chorou disfarçadamente. Enxugando cada lágrima que caía dos seus olhos. Então, era aquela a dor que o cirurgiãochefe sentiu? Era horrível. Nem as dores do câncer machucavam tanto. Esther sentiu-se muito mal por fazer alguém que tinha carinho por ela sentir-se daquela forma e, um desejo extremamente forte de morrer tomou conta do seu espírito. Mas, nesse mesmo instante, uma mão tocou o seu ombro.

Ao virar, Esther viu o médico...

Que a segurou pelos ombros...

Acariciou a sua face com as costas das mãos...

Aproximou-se levemente...

E a beijou...

Um beijo intenso...

Bom...

Apaixonado...

Vivo...

Esther fechou os olhos...

Quando os abriu de volta, viu o médico em sua frente com os olhos cerrados, ainda saboreando o beijo a tanto desejado.

Mas, Esther tossiu.

O médico disse alguma coisa que a mulher não pode ouvir.

Duas...

Três vezes, tossiu.

A visão começou a ficar turva.

Esther pôde ver o relógio da recepção marcar meia-noite e vinte e cinco.

O ar faltou.

As pernas ficaram bambas.

Caiu.

Sentiu o chão gélido e viu algumas pessoas correndo em sua direção.

Viu o rosto de pavor do cirurgiãochefe.

Segurou a sua mão.

Com força.

E depois fechou os olhos...

Esperando nunca mais abri-los.

O ar fresco entrou pelas suas narinas. Uma leve brisa de outono. Esther sentiu o seu corpo pesado e, deveria estar deitada sobre algo extremamente duro e desconfortável. Tinha medo de abrir os olhos e descobrir onde estava, mas, criou coragem e assim o fez.

Estava deitada sobre um solo arenoso de cor marrom bem escura. O céu era negro com nuvens azul-marinho e uma ou duas estrelas vermelhas. Esther levantou, descobrindo onde se encontrava. Era um cemitério sem fim, com túmulos e cruzes com detalhes redondos e covas abertas. Sem esforço via-se caixões roxos abertos. Esther pensou se estaria no inferno ou algo parecido. Procurava alguma forma de vida, mas nada. Passeou os olhos pelo cemitério e um medo começou a tomar conta dos seus sentidos. Suas mãos tremiam, a sua pele estava gelada, suas palavras pareciam ter sido engolidas, sua audição era apenas, agora, um sibilo, como um apito grave ao longe. Seus olhos não acreditavam no que viam. Olhando em 360 graus, Esther encontrou algo que fez o seu coração parar. Aliás, estaria o seu coração batendo?

Um declive no terreno do cemitério. Uma depressão. Abaixo das covas, a médica via um partenon todo feito em ouro. A construção brilhava. Uma súbita sensação de segurança fez com que Esther seguisse em direção ao local. A mulher caminhava sem olhar para os lados, com receio de ver algum corpo desalojado em alguma cova.

O apito grave continuava.

O vento frio batia e fazia sua espinha arrepiar. Esther desejou um abraço do médico. Desejou estar debaixo de cobertas assistindo um bom filme na televisão. Desejou um beijo quente. Mas naquele momento, naquele local, essas eram coisas impossíveis. Por um momento, a mulher acreditou realmente estar morta. Só poderia estar. Onde mais encontraria um local como aquele. A única pergunta que a fazia pensar duas vezes em sua desencarnação, era o fato de estar sozinha naquele lugar. Onde estariam os outros mortos? Com certeza não era a única a morrer. Quem sabe encontraria alguém no templo que desse, aquela resposta? Quem sabe encontraria Deus? Finalmente saberia se era verdade. Se existia um homem que olhava por toda a humanidade.

Ao aproximar-se da construção, a mulher viu o quão alto era. As duas torres que partiam para o céu pareciam não mais acabar. Não havia porta também, e quando entrou, viu que tudo ali dentro era vermelho: os bancos, o tapete que cobria o chão, e o altar. Não havia nenhuma estátua ou imagem, a não ser o balcão em relevo. Esther caminhou em direção a ele, e nada encontrou sobre. Mas, por trás, uma escada levava para baixo. Uma escada também de cor dourada que parecia ser tragada por muita luz. Esther decidiu caminhar em direção a ela.

Não precisou descer muito e, quando desceu, pensou que tudo aquilo deveria ser um sonho. Nem em filmes, Esther viu algo tão belo. Uma árvore de natal tão enorme que parecia não ter fim. Presentes embrulhados em sacas vermelhas e azuis forravam o solo branco como uma nuvem em uma manhã de verão.

Esther caminhou pelo salão, passou pela árvore prestando a máxima atenção a cada detalhe de enfeites e presentes do local. Quando passou por tudo isso, seus olhos pararam sobre um senhor sentado. Usava um suspensório e calças vermelhos e uma camiseta branca com estampas em verde. Ela sabia quem era aquele homem. E instantaneamente, não segurou a emoção. Era o mesmo homem que tinha a maior alegria de viver que a médica já conhecera em toda a sua vida.

O mesmo homem que todas as noites, dentro do seu quarto na UTI, pedia a benção a uma mulher que não conhecia milagres. Esther caiu de joelhos. Foi como se uma força descomunal repousasse em seus ombros e ela perdesse toda a força de seu corpo.

- Já conheceu a maravilha da vida, Esther?

- ...Como...- Esther soluçava, mas precisava falar. -...Eu não acredito.

- Pode acreditar. Muitas coisas acontecem no mundo. Não há nada irracional, doutora.

- Ontem à noite, eu deixei o senhor e logo depois veio a noticia de que tinha falecido. E agora vejo o senhor aqui.

- Estou aqui, Esther. Sempre estive aqui. O ponto é que você nunca me procurou. Você sempre veio atrás do paciente, e nunca da pessoa.

- Fui uma tola.

- Não é tolice...Está bem, talvez seja um pouco. – Isso ele disse pela expressão no rosto de Esther. Expressão de quem reconhecia as bobagens que um dia fez. – O que importa é que todos nós estamos em algum lugar para aprender, não?

- Onde estamos?

- Você? Bem, você está na mesa de cirurgia e seu corpo está lutando pela vida, mas a sua alma...está aqui.

- E onde é aqui?

- Onde todos nós podemos estar. Onde você quer estar agora, Esther?

- Eu não sei onde quero estar.

- Ah sabe sim. Todos nós sabemos.

- Eu quero viver.

- Está bem. Mas quer viver para o que?

- Como?

- Você não quer voltar a viver para sobreviver, não? Diga-me que você quer viver de verdade. E não, se agarrar a uma mentira qualquer e...Bem, você sabe.

- Estou ficando gelada.

- Então temos pouco tempo. Esther...- O senhor levantou da cadeira e caminhou em direção da mulher ajoelhada. E colocou a mão direita sobre o seu ombro. -...Eu preciso que você me convença a deixa-la voltar.

- Você é Deus, não é? Fingiu ser um paciente só para me testar, não foi?

- Eu não finjo, Esther. Eu realmente estava lá. E precisava mesmo de cuidados. E você fez bem o seu trabalho. O que eu preciso, é que você volte e viva. Não há o porque mandar você de volta para nada. Você me entende?

- ...Eu vi o meu tio...- Esther começou a chorar. – O meu tio. Eu achei que nunca mais fosse vê-lo. Ele me abraçou. Foi aí, que eu me toquei. Nunca fui abraçada de verdade depois que cresci. Preocupei-me tanto em salvar vidas. Ajudei tanta gente. Mas esqueci de me ajudar. Eu quero voltar para me ajudar. Eu quero voltar para viver...Papai Noel.

O senhor sorriu. Um sorriso enorme, com dentes brancos. Esther reparou como os olhos do velho brilhavam. O papai Noel foi até a mesa e pegou dois sapatinhos pequeninos, que Esther reconhecia muito bem. Ele mostrou-os para ela, e sorriu uma vez mais. De repente, tudo começou a tremer. O senhor desapareceu. Esther começou a ouvir vozes. Os enfeites de natal caiam da árvore e se quebravam no chão. A própria árvore tremia e parecia prestes a cair. Esther saiu correndo, esquivando-se da chuva de objetos. Saiu da gonga, partiu para o alto da colina. As tumbas afundavam no solo. E a igreja sucumbiu ao tremor. Primeiro as torres caíram com um alto estrondo. Depois ela toda desabou. O vento soprava mais forte do que nunca. Mas desta vez, era morno. Esther estava desesperada.

- Ela não está respondendo. Ela não está respondendo!

- Pegue o desfibrilador.

Esther entrou em pânico. No horizonte, uma mancha verde surgiu. Um grande buraco, quase como uma passagem. O vento soprava dele.

- Vamos Esther. Não me deixe sozinho!

- Senhor...não há mais o que fazer.

- Esther, vem! Não me deixa sozinho.

- Eu não quero te deixar sozinho! Eu não quero!

- Vem para mim, Esther!

- Eu quero ir!

Dito isso, o buraco verde explodiu. E uma luz forte e extremamente clara tomou conta dos olhos da médica. Pensou ter cegado. O apito grave tornou agudo. E depois, tornou-se um bipe, emitido a cada dois segundos.

Esther viu sua mãe sobre ela. A lua iluminava o seu rosto, deixando a face da mãe prateada. Seria aquilo mais uma visão? Ela olhava para o seu rosto. E seus olhos estavam vermelhos. Sabia que sua mãe chorara muito. Queria dizer para ela que a amava, mas tudo voltou a ficar negro.

Agora, seu tio caminhava com a menina de branco pela igreja dourada, que, desta vez não tinha teto. Esther olhou para o céu sem o menor sinal de poluição e contou cada particular estrela. Sentia-se mais magra também e, sem forças. ‘Por que levei tudo tão a sério’, pensou. E fechando os olhos, a médica sentiu a morte bem de perto.

O enfeite de natal sorria para ela. Esther namorava. As crianças brincavam de roda e um ser com uma longa capa negra ficava parado no meio, fazendo sinal para a mulher brincar também.

Um pacote, soro fisiológico. O alto dos céus.

O cirurgiãochefe segurava sua mão com força. Ele passava as costas da palma em sua testa. Esther queria dizer que o amava. Quase conseguiu. O homem levantou o rosto e seus olhos arregalaram-se.

- Esther...Esther está me ouvindo?

Mas tudo escureceu novamente.

A chuva torrencial impedia que os entediados buscassem refúgio na boêmia da cidade. No hospital vazio de interesses hipocondríacos, a única luz que iluminava o local era a de uma árvore de natal, e o computador iluminando o rosto marcado pela experiência da recepcionista. Através dos corredores de exames, pacientes, acompanhantes e o som irritante de um local onde as pessoas são cuidadas por agulhas geladas e, líquidos mágicos...De todas as salas, nós paramos na sala com a placa da Doutora Esther. A sala vazia, a luz apagada. Os objetos de trabalho agora largados e sem vida: o estetoscópio sobre a mesa, o jaleco pendurado na parede, os exames e pastas no balcão. Tudo parecia ter perdido o sentido. A tristeza, no sentido mais literal de sua existência, inundou o estabelecimento. Era um luto adiantado, uma tragédia anunciada, uma notícia que ninguém queria ver no telejornal, uma previsão que todos preferiam não acreditar. No quarto de unidade de terapia intensiva, a médica estava reclusa em seu próprio habitat. Pelo andar da carruagem, iria morrer onde, antes, várias mães, pais, filhos e amigos deixaram de viver. Como um coveiro que trabalhou a vida inteira acreditando que nunca estaria no outro papel da peça.

Na recepção, a família de Esther reunida após a noite mágica de natal. Quem diria que na madrugada seguinte, estariam esperando por noticias de uma mulher tão próxima. De uma menina que se perdeu ao crescer, mas que sempre foi encontrada quando menor. Não era justo. Não era justo perder Esther tão jovem. Todos se aproximavam de sua mãe e tentavam conforta-la de alguma forma. Mas a angústia é marca registrada na face de uma mãe que vê o filho em perigo. Mas, por volta das duas da manhã, Esther abriu os olhos. Uma enfermeira veio correndo avisar a família.

- Eu vi uma igreja, mãe. – Sua mãe já estava no quarto e a família inteira via pela janela. As crianças ficavam nas pontas dos pés, buscando enxergar a adulta. – E eu vi um paciente meu, que até a véspera de natal estava nessa mesma cama. Ele disse que eu poderia escolher voltar. Eu decidi vir, mamãe. Eu quero viver.

- Eu sei, filha. Eu sei disso. – E beijou a testa da filha.

- Eu te amo, mãe.

- Eu também te amo, filha. – Qualquer mãe sofreria muito ao ver a filha tão fraca e com tanta dificuldade em pronunciar as palavras. Com a mãe de Esther não foi diferente. Ela chorou, um choro contido. Não queria soar fraca para a filha. – Fico muito feliz em ouvir você falando isso.

- Eu sei, mamãe. Desculpe não ter dito antes.

- Que isso, meu anjo. - Esther viu o cirurgiãochefe no canto da porta. E sorriu para ele. A mãe, reparando, disse. – Bem, vou tomar um pouco de café, daqui a pouco volto, filha. Amo você.

- Também te amo, mamãe.

A mãe deixou o quarto e Esther não retirou o olhar do médico, que também fez o mesmo.

- Esther, eu...

- Eu amo você. – Esther disse isso e ficou olhando séria para ele, ansiosa, sem saber o que ouviria em resposta. Seus olhos encheram-se de água, até que as lágrimas começaram a cair. Após um longo silêncio, o médico falou.

- Esther, o tumor aumentou. Ele passou para outros órgãos. Você tem muito pouco tempo.

Esther permaneceu quieta. As lágrimas aumentaram e seu rosto, por fim, se contorceu de dor. Era como um banho de água fria. A esperança de sair com vida de tudo aquilo desapareceu, foi como se alguém tivesse a atingido no estômago com uma espada extremamente gelada. O por que então daquelas visões? Por que passou por tanta coisa em tão pouco tempo? Não era certo morrer daquela forma. Mas, nesse pensamento, Esther fechou os olhos. Tinha passado anos longe da mãe, magoara tantas pessoas e já aprendera a conviver com a morte. Na sua cabeça, Esther sabia que era inevitável. Ela já vivera. E se estava naquela cama de hospital daquela forma, era por sua total responsabilidade. Lembrou do tio. Do enfeite de natal. Do anel de ouro branco. Do caixão de marfim. A médica sabia que sua epifania estava chegando ao fim.

- Feche as cortinas, por favor. Não quero que as crianças me vejam assim. – O médico as fechou. – Não era bem isso que queria ouvir.

- Eu sei. Existe algo que eu possa fazer?

- Deixe-me sozinha um pouco.

O médico saiu do quarto. Esther chorou, se contorceu de dor, batendo no travesseiro e com a boca aberta em um grito mudo horrível. Machucou muito saber que o seu corpo perdia as forças tão rapidamente. Ela queria sair correndo e desaparecer, mas, quando abriu os olhos, parada ao lado de sua cama estava uma menina. A mesma menina que havia lhe dado um copo com leite e um pedaço de bolo com chocolate na noite anterior.

- Oi, Esther.

- Oi...- Esther tentou se recompor. Não queria que nenhuma criança a visse daquela forma.

- Você não precisa ficar triste. Não vai doer nada.

A médica olhou bem fundo nos olhos da menina.

- O que não vai doer, linda?

- A sua morte. Não dói nada.

- Eu...- Esther não sabia o que falar. -...Eu não vou morrer. Quem te disse isso?

- O papai Noel. Ele que me enviou para cá. E eu preciso levar você embora.

Esther sentiu-se amargurada.

- Como assim?

- Não vai doer, prometo. Aliás, desculpe pelo barulho no seu quarto ontem. É que eu esbarrei no pé da sua cama.

- Era você então.

- Sim, e eu levei os sapatinhos. O seu desejo era de acabar com tudo isso. Estou aqui para atende-la. Só preciso que você segure a minha mão.

- Desculpe, linda.

- Eu te guardei Esther. A vida inteira. Conheço cada detalhe. O enfeite de natal, as visões que você teve. Eu sei de tudo e, faço parte de tudo.

- Como assim?

- Eu sabia que estava no fim. E no fundo, você também. Agora temos que ir.

- Eu vou morrer.

- Você vai, Esther. E isso não é algo ruim. Não é mesmo. Confie em mim, segure a minha mão.

E Esther estendeu o braço e agarrou a pequena mão da garota. Como nas visões, tudo ficou branco como se um raio tivesse caído ao seu lado.

Esther viu o seu rosto no espelho...

Viu também a sua mãe dizendo adeus com um sorriso incrível...

As crianças festejando a passagem de ano-novo, sem nenhum ser de capus negro por perto...

O cirurgiãochefe encontrando uma mulher que o fez extremamente feliz.

E, por fim...

Viu o tio sentado com sua tia ao lado, em um banco branco. Um grande jardim servia de cenário para os dois que sorriam para Esther...

O tio mostrou com um movimento dos olhos, um outro banco branco e vazio. A tia olhou para ela confirmando o seu pensamento. A médica caminhou até o banco e se sentou. E sorriu. Os três sorriram...Como se tivessem escutado a melhor piada de suas vidas.

O cemitério era coberto por um pôr-do-sol que deixava as pessoas presentes aquecidas como se estivessem com um cobertor por cima de suas peles, em um sábado de inverno. Entre os presentes, parentes, amigos e familiares de Esther. As crianças corriam de um lado para outro brincando entre a tristeza das pessoas grandes, afinal, não entendiam a gravidade da situação e, na verdade, os adultos não entendiam a simplicidade do momento. Claro, que perder uma pessoa especial poderia ser um trauma de proporções devastadoras. Mas, a morte de Esther não foi em nenhum momento triste. Esther deixou esse mundo conhecendo a si mesmo, e não como geralmente acontece, quando um ser-humano morre sem conhecer o que fez, por onde andou e quem um dia foi. A mãe da médica sabia disso. Nos últimos dois dias de vida da filha, viu em seus olhos uma luz de prazer em estar ali. Como quando banharam o cão com tanta felicidade. O cirurgiãochefe sabia disso. Quando ela disse que o amava e pelo beijo que deram no corredor do conhecido hospital. Até o contador de histórias do “Calçadão” sabia disso, quando observou cada sorriso sem preconceitos da mulher. Também sabia isso o vendedor da loja onde Esther comprou a árvore, também o homem do beco onde se vendiam livros, quando a viu agradecendo a sugestão de procurar um médico. O que acontece é que cada pessoa, por menos tempo que passou com Esther nos últimos dois dias, viu humanidade em seus olhos. Assim como a mulher do carro, a jovem que atropelou o homem que não mais queria viver, ou, como o homem que dissera para ela que tudo ficaria bem. E ele estava certo. Por incrível que poderia parecer, tudo estava bem.

As pessoas ficaram em silêncio quando o caixão marfim de Esther se fechou para sempre. Ainda quando o cortejo o levou para a sepultura da jovem mulher. Mas, quando os coveiros desceram o caixão de Esther, todos, começando pela jovem garota (agora com marcas da experiência em seu rosto) aplaudiram. Aplaudiram Esther, e gritaram o seu nome. Porque não era qualquer pessoa que estava sendo sepultada naquele momento. Era Esther. Era a mulher que de alguma forma deixara uma marca em cada pessoa que encontrara. Se era justo Esther morrer nessa história, não sei. O que foi justo e sempre será é que Esther soube ser Esther. E isso bastava para todos ali. De alguma forma, Esther vencera o câncer e vencera a si mesma. Esther conquistou tudo o que quis. Até uma morte tranqüila. E o pôr-do-sol em seu velório confirmava isso. Era como se os anjos estivessem felizes em receber uma alma tão especial. Por isso ninguém chorou de tristeza. Todos choraram de felicidade, pois todos sabiam que nada no mundo é para sempre.

Fim.

Sérgio Siverly
Enviado por Sérgio Siverly em 13/10/2010
Reeditado em 04/08/2014
Código do texto: T2554754
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