Conto Nublar #008: A INSURREIÇÃO DO CAPINZAL
UM APÓLOGO
Havia um capinzal ameaçado de extinção. Naquele ano chovera abaixo da média de todos os tempos e sobreviviam precariamente apenas algumas raízes soterradas, quais esporos esperando o momento exato para eclodirem. Foi assim que, à chegada dos novos inquilinos na chácara, a paisagem foi aos poucos se transformando. Com a aguagem e a irrigação através de levadas, as plantas foram reverdecendo e os capins, aos poucos deram sinal de vida. Primeiro, alguns filetes verdes aqui e acolá, davam lugar às suas viçosas folhas enquanto começaram a lançar suas raízes em busca do precioso líquido a fluir quase que perenemente pelas levadas.
A aridez da estiagem era causticante. Era de abalar a fé de qualquer planta. Foi nesse contexto que um esquálido pezinho de capim teceu um acanhado comentário:
-“Posso ter um minuto de vossa honrosa atenção”? Falou humildemente. Ao receber o sinal de aprovação do capim líder, ele prosseguiu:
- “Tive uma ideia e gostaria de compartilhar com vocês. Tenho visto diariamente essa água descer, levada abaixo para irrigar outras espécies mais abaixo de nós, mas, no final da tarde, seca, retornando somente na manhã seguinte. Muito me alegro quando revejo nossa esperança brotar a cada amanhecer. Mas, e se não houver reposição amanhã? O que será de nós? Só Deus sabe o quanto durará essa estiagem. Então, tenho um plano". E fez uma longa pausa.
- “Diga logo! Você nos deixou curiosos!”, vociferou o capim líder.
- “O plano é o seguinte. A raiz de meu avó faz-me saber que, se colocarmos nossas radículas no leito da levada, e depois nossas raízes, vamos reter a areia que desce na correnteza, ciscos, folhas ou qual outra coisa. Isso vai aos poucos, represando a levada, que resultará numa pequena lagoa. Assim estaremos garantidos com água fresca ao nosso dispor. Quanto aos outros, sinto muito, mas prefiro manter viva nossa linhagem do que me preocupar com os outros. É problema deles e não nosso”.
Aquilo soou como uma tirada genial. Aproveitando a aragem que soprava naquele momento, aplaudiram com seus filetes, num audível e suave farfalhar. Então, puseram em prática logo o seu plano. O próprio autor da ideia se encarregou de lançar suas radículas dentro da levada e começou a se multiplicar. Outros o imitaram. Agora já é visível um leve manto de pelos esbranquiçados, à lembrança de uma peruca. Desse feixe de raízes começaram a surgir novos pés de capins e o capinzal inteiro festejava.
Aos poucos, o basculho, folhas mortas e a própria areia que descia com a correnteza foi assoreando a levada até chegar à fonte. Esta, por sua vez, para desempenhar o seu papel supridor, procurando outro meio de escoar seu precioso veículo, encontrou umas pedras aliadas que gentilmente mostraram-lhe um novo caminho, dando origem a uma linda cascata que lembrava um véu de noiva, onde o passaredo descia para refrescar suas línguas enquanto invadia o ambiente com polifônico, bucólico e harmônico madrigal. E o novo leito recém-criado encontrou mais embaixo o seguimento da levada que voltou a irrigar as outras sedentas plantas. Às suas margens, ladeavam pequenos arbustos que cuidavam para que as ribanceiras fossem mantidas e impedissem novo assoreamento. Assim, não só as plantas marginantes estavam bem supridas, mas todas as demais espécies usufruíam daquele gesto comunitário.
E o capinzal: Ah! O que é deles? Ficaram a princípio inebriados com a abundância de água que nem percebiam o mal que causaram aos mais debaixo. Até que procurou água em suas raízes e não mais encontrou. Tarde demais. O sol voltara a torrar a pastagem e não houve mais jeito para aquele capinzal. Só na próxima estação chuvosa as coisas voltariam a se normalizar. Mas tem gente que nunca aprende nem com seus erros, muito menos com o dos outros. Somos mais beneficiados quando servimos uns aos outros. O egoísmo é a arma mais bem sucedida de autodestruição.
Qualquer semelhança com a vida real esteja certo que não terá sido pura coincidência.