Entrevista com Márcia Tiburi, Filósofa e escritora, publicada na edição 464, março de 2016.

 

 

Quem representará as mulheres?

 

Entrevista com Márcia Tiburi, publicada na edição 464, março de 2016.
Entrevistada: Márcia Tiburi, Filósofa e escritora.    marcia.tiburi@terra.com.br    

 

Mulheres são 52% dos votantes, mas ocupam menos de 10% das cadeiras no Congresso.

 

A mais recente obra de Márcia Tiburi, o livro “Como conversar com um fascista? ” é um verdadeiro reduto contra o ódio. O autoritarismo que já transcendeu a mídia e hoje alcança não só as ruas, mas o Congresso Nacional, reina também nos machistas, que negam enxergar as mulheres como iguais. Segundo a autora, o fascismo é, justamente, essa negação do outro. Para combatê-lo, ela encoraja o diálogo, forma máxima de ativismo filosófico. Enquanto eles gritam certezas, Márcia, como boa filósofa, planta a dúvida: quem representará as mulheres?

 

    No que diz respeito à política, qual o papel da mulher? Que lugar ela ocupa?

    No cenário da política, o Congresso brasileiro é machista e retrógrado. Há até mesmo fascismo no nosso Parlamento. Essa é, aliás, uma característica que vem crescendo entre nós, tanto no âmbito da política quanto no da esfera pública. Nesse caso, a gente chama de fascismo o sistema dos preconceitos espetacularizados. Não é pura e simplesmente o preconceito, mas algo que se exterioriza na base da expressão, em nível de gritaria, grosseria, de expressões desavergonhadas, ofensivas. Assim, as mulheres têm sido sub-representadas ou mesmo não representadas. A participação das mulheres na política é de cerca de 10%, o que corresponde a uma representação inexpressiva, já que mais de 50% dos votantes são mulheres.

 

    Como reverter isso?

    Hoje existem diversos programas mundiais, da ONU e vários grupos, justamente tentando colocar a questão das mulheres na política, reforçar sua presença, chamá-las para que se filiem, se candidatem, se posicionem. O feminismo, na forma como temos visto se expressar, tem crescido muito entre todas as idades. Isso pode, no futuro, sinalizar para uma outra política, uma politização das mulheres, o que já tem se mostrado em coletivos, movimentos, expressões na internet, o esforço que nós fazemos para participar. No futuro teremos outro cenário, e é bonito que o feminismo, como busca pelos direitos das pessoas excluídas, sobretudo das mulheres que representam um contingente imenso de pessoas excluídas da política, promova a luta por protagonismo e ensine muito para a política como um todo. Se a gente não fizer política, está agindo contra a politização do mundo e contra os direitos das pessoas que implicam justamente a participação na esfera dos poderes e transformação de poder.

 

    Temos muito que avançar no sentido de libertar o pensamento do patriarcado?

    Sim, e não podemos cair no que chamo de armadilha biopolítica: a crença de que uma pessoa, em função da sua configuração de gênero, necessariamente terá uma posição política condizente. Pois, às vezes, esperamos ingenuamente que as mulheres sejam feministas porque são mulheres, o que seria desejável, já que a mulher é uma heteroconstrução do patriarcado. Então, a gente teria a expectativa de que esse sujeito-mulher percebesse sua opressão e desse uma guinada política, se transformando em feminista, mas isso não acontece. Algumas, inclusive, são usadas pelos homens nos partidos políticos, pelo poder, e isso só pode ser desmontado a partir de uma análise e de uma crítica.

 

    E, no caso da presidenta do país, por que ela é difamada para além de suas competências políticas?

    Isso sempre acontece. A figura da mulher, historicamente, não faz parte do poder. Então, quando ela chega no poder, é humilhada, sofre uma espécie de bullying, como se estivesse num lugar impróprio para ela. No caso da nossa presidenta, penso que ela não teve chance de bancar uma agenda feminista, conforme havia prometido, em função das negociações que acontecem no nível da governabilidade. Aliás, é uma posição das mais infelizes nesse cenário da política brasileira, uma mulher no poder máximo, pois paga um preço por ser mulher, que todas nós pagaremos enquanto não desconstruirmos a questão de gênero. Isso significa não apenas lutar por direitos, mas também questionar esses estereótipos, nos quais fomos condenadas. Temos de buscar uma transcendência: pensar mais, sair desse lugar secundário, subalternizado, não essencial, que as mulheres ocuparam.

 

    Que direitos são negados e ferem a sua identidade?

    O direito da voz, por exemplo, as mulheres têm de ter esse direito, além da expressão. Não só mulheres, mas todos os sujeitos que assumirem essa identidade, que, por mais que se possa usar para fazer política, dizendo "eu sou feminista porque sou mulher e sou mulher, portanto, sou feminista", isso faz parte do momento histórico, mas precisa ser superado, porque a gente pode pensar o feminismo de maneira mais expandida. O feminismo não precisa ser só uma luta pelos direitos das mulheres, mas uma luta pelos direitos de todas as pessoas excluídas do acesso ao poder. Hoje, dá para a gente pensar para além do gênero, além do sistema binário, a questão transgênero, transexual, travestis etc. Mas tudo isso é muito complexo para uma sociedade que está limitadíssima em termos de debate. Precisamos mesmo fazer uma guera no âmbito poético: melhorar nossa forma de pensar, libertar o pensamento, o corpo dos jugos capitalistas, dos jugos todos que vêm sendo produzidos dentro de um sistema de poder.

 

    Como identificar o que são discursos de ódio, especialmente diante das questões de gênero?

    Usa-se o termo gênero, por parte dos neofundamentalistas, donos dos meios de comunicação e de algumas igrejas, para demonizar aquilo que historicamente sempre foi demonizado: o lugar das mulheres, seu desejo, seu poder, sua presença pública. Gênero foi um termo usado desde os anos 1960, para desconstruir justamente esses papéis estabelecidos, dos quais uma sociedade fundamentalista depende (macho, fêmea, mãe, mulher, homem). O próprio termo homossexual, a questão foi durante muito tempo estigmatizada. Hoje se fala em ideologia de gênero, mas quem inventou essa expressão foi um grupo, detentor do poder, que funciona a partir de falácias e que comanda (pastores, por exemplo, que têm um espaço, uma voz que grita e que convence as massas menos informadas). A gente está revendo uma luta do esclarecimento e da crítica. E é uma luta que vem e vai, que se renova ao longo da história, contra os poderes obscurantistas. É a luta da lucidez contra a superstição, da crítica contra o conservadorismo, do pensamento reflexivo contra o dogmatismo. Parece novidade, mas não é. Antes, vivíamos uma situação mais amena em termos de mentalidades, ou seja, não estavam sofrendo intervenções tão radicais, sobretudo pelo grande poder que administra os discursos, que sãos os meios de comunicação de massa. Ou seja, não estaria acontecendo essa gritaria geral, fascista, se não existisse essa gerência pesada sobre a população

 

    Que mensagem você tem para a juventude, neste contexto?

    O grande ensinamento que a gente adquire na nossa experiência para a vida no tempo da juventude, é que esse é um tempo da invenção. O futuro é abertura, potência, criatividade, é o que há de vir e o que a gente pode construir. O futuro é invenção. E os jovens precisam saber que estão sendo inventados pelo mundo, pela família, pela escola, pelo Estado, pela televisão, pela internet. Os jovens estão sendo lançados dentro de processos de subjetivação. Isso é o que significa você ser inventado de fora para dentro. Cabe ao jovem tornar-se lúcido, consciente disso, perceber que ele vai ser o inventor da sua própria vida também. Ele tem que tentar descobrir, para reagir, fazer alguma coisa de si. E nisso vai se constituir a sua abertura para o mundo, sua liberdade de existir, e talvez a vida se torne mais interessante, a vida se abra para a produção de uma felicidade maior, e com um sentido ético e político, que é o que está faltando diante desta felicidade plastificada, publicitária, que a gente vive hoje. A gente tem que trocar por uma felicidade filosófica, política, que vá nos colocar numa outra relação com a existência.

 

    O que é o Movimento Partida e como ele se posiciona na política brasileira?

    O Partida é um movimento espontâneo, que nasceu de mulheres e feministas que consideram necessário unir-se numa proposição nova, que chamamos de "ocupação do governo". Se organiza por municípios, e a partir da singularidade de todas as pessoas que querem fazer parte desse movimento, num contexto de produção de diálogo como caminho metodológico para o poder. É diálogo para a construção de uma potência que implica a singularidade e o encontro, sendo um lugar horizontal, onde as feministas e as diversas pessoas têm se sentido protagonistas e tentam combater esse clima de depressão política que vivemos. Acreditamos que o encontro, a democracia produzida com a mais próxima, a protagonização da outra, é capaz de criar base para a construção de outra política. Somos um movimento que não funciona como partido político, mas talvez um dia venhamos a ser um partido. Hoje, dialogamos com os partidos, sugerimos filiação, candidaturas, queremos que as mulheres se preparem para candidaturas.

 

A polêmica de gênero no Enem

 

No caso de Enem, há dois aspectos a pensar: um deles é a presença da filósofa, Simone de Beauvoir, como conteúdo da prova, o que veio a estarrecer as pessoas que, no Brasil atual, podemos denominar como neofundamentalistas. Na verdade, só se escandalizaram aqueles que podem fazer uso deste alarde com fins políticos. As pessoas do senso comum não estão preocupadas com isso. Foi, na verdade, uma espetacularização do escândalo. Alguns políticos ou detentores genéricos do poder, se ergueram para usar a presença de Simone de Beauvoir como um fato a ser combatido, e nesse momento conseguiram aparecer nos meios de comunicação. Portanto, o escândalo foi produzido por certos políticos que comandam a mídia, e por certo, a mídia usa também desse tipo de produção espetacular.

 

Quanto ao tema da redação, é importante considerar a persistência da cultura da violência contra a mulher brasileira. Esse é um tema urgente e os elaboradores da prova foram muito felizes na escolha de um tema tão fundamental, e que precisa ser pensado em todas as épocas. E nessa época precisa ser pensado ainda com mais cuidado, pois a violência contra as mulheres é uma constante. Portanto, um tema relevante. Poderíamos falar também de outras formas de violência, mas não vejo por que as pessoas não queiram discutir essa questão, pois é uma questão que atinge todo mundo: todas as pessoas têm em suas famílias ou no seu círculo de relações, pessoas (mulheres) que vivenciaram a violência.

 

Hoje, há um empobrecimento da nossa experiência política. Por um lado, as pessoas criam uma negação da política. Por outro lado, aqueles que tomam para si a ação política, produzem uma política do ódio. E daí, sobra uma administração da política com fins antipolíticos, gerando um descaso dos cidadãos pela política. Então, se política é a construção das relações, depende de diálogos, de estratégia de luta. O comportamento antipolítico destrói os laços entre as pessoas, produz ódio, rompimento, separação.

 

Como educadora, me preocupo com a formação das pessoas. É a nossa formação subjetiva que vai definir a nossa potência como seres sociais. Nesse sentido, a educação teria que ser novamente ética e novamente política, para subjetivar as pessoas para que se dessem conta do mundo em que elas estão, e que são parte. Um mundo com alteridade, com diversidade, com relações e, a partir daí, vão produzir um cenário com um regime afetivo e de ação, diferente do que está aí.

 

http://www.mundojovem.com.br/entrevistas/quem-representara-as-mulheres