Atuante em sua área desde 2008, o professor Leonardo Campos foi entrevistado por Emerson Miranda na ocasião do lançamento de Rizomas do Brasil: As Leis 10.639/03 e 11.645/08 na Sala de Aula, evento realizado no Instituto Steve Biko, em 2018, encontro mediado pela professora e pesquisadora Sandra Souza. Resgatamos o conteúdo atualizado, com inserção de mais algumas questões revisadas. Acompanhe e depois, compartilhe, combinado?
A questão parece óbvia, mas é necessária. Qual a importância de se discutir as leis 10.639/03 e 11.645/08 na escola?
Leonardo Campos: As leis objetivam reparações históricas e identitárias. Os negros e os indígenas foram dizimados durante o processo de colonização do Brasil e ainda hoje são alvos de preconceitos e estereótipos. Li há alguns anos numa entrevista que as propostas da lei 10.639/03 podem ser uma das propostas de intervenção social para ajudar no impacto que o racismo exerce no Brasil. É importante, entretanto, compreender corretamente as leis, pois não são documentos díspares, mas complementares.
Então há uma confusão neste processo?
Leonardo Campos: Sim. Recentemente uma palestrante falava sobre o assunto e como parecia apressada, haja vista a prestação de contas para o Ministério Público no que diz respeito à aplicação das leis em sala de aula da instituição em questão, a profissional disse que a lei 10.639/03 era sobre o uso da cultura afro-brasileira e a 11.645/08 tratava da cultura indígena. É preciso compreender que a lei 10.639, de 2003, ganhou acréscimos em 2008, dando espaço para a lei 11.645, documento que incrementava a cultura indígena como tema obrigatório nas atividades curriculares das instituições educacionais, já que em cinco anos antes, apenas a cultura afro-brasileira era obrigatória.
Por ser uma lei e constar como “obrigação”, a aplicação pode ser prejudicada?
Leonardo Campos: Depende. Nós temos uma cultura que acredita ser chato o cumprimento dos deveres, mas gritamos bem alto quando estamos diante dos nossos direitos, não é mesmo? Observe as leis de trânsito: numa estrada há uma placa que diz ser 60 km/h a velocidade máxima a ser alcançada, muitas vezes ultrapassamos estes limites. Se não houver risco de multa, a situação é ainda pior. Precisamos nos conscientizar de que há questões importantes em nossas agendas que não devem ser sanadas apenas quando somos pressionados ou obrigados a realiza-las. Muita gente torce o nariz para a lei por considerar “mi mi mi”. Outros acham que basta ler O Guarani, Iracema e Ubirajara, de José de Alencar, ou passar trechos de algum filme sobre racismo, sem ao menos contextualizar, programar, ajustar ao conteúdo em questão.
Qual o papel do professor neste processo?
Leonardo Campos: Pesquisar. Professor é e sempre será um pesquisador. Não digo os professores medíocres, mas os bons professores, preocupados com um processo de ensino e aprendizagem que seja mais significativo. Sempre estamos evoluindo, lendo coisas novas, reaprendendo metodologias e derrubando teorias ultrapassadas para se adequar aos novos rumos. Se o professor depende apenas do livro didático e dos conhecimentos que aprendeu durante a faculdade, as suas aulas estão fadadas ao fracasso.
Parece que a escola também tem responsabilidades...
Leonardo Campos: E como tem! Nós professores não somos apenas expositores de conteúdos em sala de aula. Lançamos notas, preenchemos diários, fichas, cadastros, avaliamos seminários, elaboramos provas, etc. Há uma boa porcentagem administrativa em nossa vivência em sala de aula e a escola/universidade precisa compreender e respeitar isso, nos dando o suporte necessário. A instituição não deve apenas “cobrar” do docente, mas pavimentar em conjunto os caminhos para ações assertivas. No caso em questão, evitar, por exemplo, a aplicabilidade da cultura afro-brasileira e indígena não apenas no 19 de abril ou na Semana da Consciência Negra. É conteúdo para ser parte da tessitura curricular, sem funcionar apenas como cumprimento de uma cota.
Opinião sincera: sem o estabelecimento da lei, você acredita que as instituições aplicariam as leis em suas atividades?
Leonardo Campos: Não há como ser exato. É importante lembrar que a lei é uma luta de nós professores, pois muita gente confunde isso. Nós lutamos e exigimos isso até conseguirmos o mínimo de representação, que neste caso, se reflete nas leis. É porque da forma como se aborda por aí, parece que a luta é do Estado, numa lei que vem de cima para baixo e nos obriga a fazer algo. Não é bem assim. A presença da cultura indígena e afro-brasileira nos livros, projetos e atividades curriculares é uma luta que une forças de diversos pontos desta “comunidade imaginada” chamada Brasil. Então, respondendo melhor ao que perguntou, há escolas com professores politizados, outras que só utilizarão quando autuadas pela justiça, etc. A sua resposta poderá ser parcialmente respondida se você mergulhar bastante nos estudos acadêmicos, ler artigos, acompanhar as últimas notícias, assistir documentários e narrativas ficcionais, além de conferir, sempre que puder, gráficos de pesquisas sobre o assunto.
E o que dizer dos professores de outras disciplinas? Dá para usar a cultura afro-brasileira e a indígena, por exemplo, nas aulas de matemática?
Leonardo Campos: Sim. Depende do professor. Da sua boa vontade, sabe? Se houver interesse, qualquer disciplina se adequa. Gráficos, jogos, projetos interdisciplinares, painéis, tabelas. E se não for assim, um momento reflexão e leitura, afinal, será que a aula de matemática e física é feita apenas de fórmulas complexas espalhadas no quadro? Precisamos melhorar cotidianamente as nossas propostas pedagógicas em sala de aula, numa evolução que acompanha o movimento do mundo, sempre em mudanças vertiginosas.
Como professor atuante, quais são as suas sugestões?
Leonardo Campos: As leis focam no ensino de Literatura, História e Artes, mas como dito, podem ser utilizadas em outros campos do saber. Como graduado e mestre em Letras, me considero um historiador da literatura. E as Artes estão sempre próximas. Busco sempre ler os livros do cânone, pois é importante descontruir através da construção do estereótipo. Um exemplo: para compreender determinados preconceitos, é preciso estudar os clássicos. As apropriações da cultura indígena realizadas por José de Alencar na trilogia Ubirajara, Iracema e O Guarani. Não são livros ruins, tampouco José de Alencar é um escritor medíocre. Eles são produtos de uma época, por isso, devem ser analisados diacronicamente para logo depois, serem transportados ao contemporâneo, problematizados e comparados. O cinema é também é um forte aliado, sou suspeito, faço crítica de cinema desde 2003.
Com o contexto em que vive a educação atualmente, você considera o uso do cinema para educação sociocultural necessária?
Leonardo Campos: Sim, o cinema é um poderoso suporte para intermediar os conteúdos que estudamos em sala de aula. Nas aulas de Literatura, Matemática, Geografia, História, Artes, etc. Não há restrições, contanto que o professor seja mediador e o filme não seja exibido gratuitamente. É preciso mediar, discutir, elaborar tópicos de análise, haja vista a necessidade de relacionar com os conteúdos solicitados pela disciplina, bem como demonstrar ao estudante qual a reflexão que se pretendeu obter diante da obra selecionada. Para trabalhar as propostas das leis 10.639/03 e 11.645/08, o cinema pode ser um forte aliado.
Leonardo Campos é professor, escritor, pesquisador e crítico de cinema. Informações sobre literatura e cultura podem ser conferidas em @leodeletrasecinema e leodeletras@hotmail.com