UM VÍRUS NO DIVÃ

Toc, toc...e mais uma vez bateram àquela porta.

-Pois não "senhor", sente-se, por que me procura?

-É a minha vez de pedir socorro.

-Identifique-se.

-Dizem que sou o SARS-COV2, cognominado como um novo Coronavírus, uma cópia bizarra dum novo e dramático quase nada.

Qual um plasma que infecta tudo. O mundo todo está atrás de mim. Preciso voltar para minha casa.

-E como se sente?

-Uma antítese perseguida em crise existencial.

-Ora, por que se sente assim, tem alguma ideia estruturada?

-Não tenho consciência, existo complexamente amorfo, insignificante...mas cruel. Minhas espículas coronárias são indecifráveis!

-Quando começaram seus sintomas?

-Desde que, acidentalmente, deixei a Terra em luto.

-E então?

-Fui obrigado a olhar para mim.

-E o que encontrou?

-Uma essência reveladora do tudo que sou... sem nada o ser.

-Sente-se confuso?

-Sim, minha sensação já é bem conhecida, é aquele " ser ou não ser"...o de sempre.

-Eis a questão, então...(!)

-E sem solução, até agora.

-Solução para quem?

-Para mim e para o mundo!

-Não sabe quem você é... e nem para que veio?

-Sim, eis o x da questão! E ninguém me desvenda nos meus verdadeiros propósitos. Sem o querer...gero o pânico, tranco os pulmões, interrompo os fluxos, sorvo o oxigênio, roubo perfumes, nego batons aos lábios, ceifo sorrisos, interrompo os toques, isolo as vidas...e desafio a ciência.

Repito, preciso voltar para minha casa, reencontrar o meu lugar.

-Mais alguma sensação que julga importante para tal?

-Incomodo os donos do mundo...

-Poderia explicar melhor?

-Imobilizo Nações. Ativo disputas. Escancaro o passado, encarcero o presente e algemo o futuro na incerteza.

-Sente algo mais grave?

-Interrompo tenros sonhos e projetos iniciados-eu sei!- descortino o caos das diferenças das indiferenças, quebro economias, humilho os mentirosos , descortino as inverdades, relativizo o poder financeiro, esmigalho egos, vaidades e arrogâncias, aciono as ideologias nas perenes guerras silenciosas da Humanidade, torno todo o grande poder ridiculamente menor que as pequenezes do meu âmago, todavia, agigantadas quando comparadas às do vasto Planeta sem norte. Sou injusto. Ceifo vidas inocentes. Eu não queria tudo isso sobre minhas espículas, tudo é muito pesado para mim, microscópico que sou...

-Se sente poderoso, então?

-Na minha ínfima quase inexistência somática...eu me sinto culpado dum macro cenário grave...e nunca procurei por esse poder destrutivo. Repudio meu trono! Meu patético reinado de espículas que causam dores várias como os dos Homens! Sou uma nova doença notória sobre tantas outras...já catalogadas.

E tem algo a mais que me angustia.

-Sim?

-A minha maior contradição existencial.

-Qual seria?

-Coloco e mantenho obrigatórias máscaras num mundo todo...já totalmente desmascarado por mim. Não aceito esse paradoxo!

-Então, por um lado, você seria...um mascarado remédio visionário?

-Amargo talvez...para a consciência entorpecida.

-Acredita que você tenha cura?

-Não sei, isso é muito louco...por isso estou aqui. Coloquei a ciência em guerra por minha causa. Todos querem palmas...a encontrar o melhor remédio sem enxergar o principal.

-O principal?

-Sim, a Humanidade nunca aprende.

-Sobre?

-Sua arrogante participação em todas as doenças.Quanto a mim, até hoje não sei o que procuram, se o meu extermínio em prol das vidas ou a falsa glória dos tantos púlpitos.

-Não vê nada de útil em você, então?

-Haveria?

-Talvez?! Nada existe ao acaso, não?

-Sinto que apenas acionei a saudade de todo o simples...como o respirar sem medo.

-"Apenas"? Pense nisso. Acha pouco?

-Como assim?

-Ora,talvez nem tudo esteja tão perdido!

-Quem sabe...então eu ...

-Quem sabe você...conclua!

-Seja eu ...uma parte da solução!!

-Sente-se melhor, agora?

-Sim, aliviado, algo posicionado no meu todo tão apequenado agora visivelmente agigantado.

-O que me diz, então?

-Que não há existência alguma sem a consciência dum propósito definido. E que nenhum desperdício há em se existir.

-Ora, mas que maravilha...

- Agora entendi. Que toda a ansiedade existencial cessa quando encontramos o nosso porquê...

-E agora,o que sente?

-Sim,que é chegada a minha hora ...a de jogar fora mais uma coroa inútil e então, finalmente, voltar para casa para simples e plenamente existir.