Opinando e Transformando: JOÃO RASTEIRO

Nome: JOÃO RASTEIRO

Biografia: Coimbra, 1965. Poeta e ensaísta. Licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Universidade de Coimbra, é Vogal de Direção do PEN Clube Português. Tem poemas publicados no Brasil, Itália, França, Espanha, Finlândia, Hungria, México, USA, República Checa, Argentina, Chile, Nicarágua e Colômbia. Em 2010 obteve o Prémio Literário Manuel António Pina e em 2012 foi finalista (poesia) do Prémio Literário Portugal Telecom.. Publicou 18 livros (Portugal, Brasil e Espanha), que vão de, ‘A Respiração das Vértebras’, 2001 a, ‘Levedura’, 2019. Organizou antologias de poesia portuguesa contemporânea, em Espanha e Colômbia. Traduziu poemas de vários poetas de língua castelhana. Publicou alguns contos e escreveu algumas letras para a ‘Canção de Coimbra’ (fado). Vive e trabalha (Casa da Escrita/CMC) em Coimbra.

Em sua opinião, o que é cultura de paz?

A cultura da paz é talvez a única e última resposta que os seres humanos têm e terão para que este mundo actual em que vivemos não caminhe em definitivo para o abismo que se adivinha. E, se as sociedades devem caminhar, ou voltar a caminhar, no sentido de dotar, quer o cérebro, quer o coração dos seres humanos, de uma compreensão dos princípios e valores no respeito pelo rosto da liberdade, da equidade, democracia, da palavra do outro, dos direitos humanos, da não violência, da empenhada e franca tolerância, fraternidade, igualdade e solidariedade, “esta” cultura é imprescindível.

É essa cultura da paz, marcada por inequívocos valores humanos que precisa urgentemente de ser talhada e recolocada em prática, a fim de passarmos do aparente permanentemente estado de intenção, para o pleno e irmanado exercício da ação. O mundo não pode mais passar sem este nosso urgente comportamento de uma cultura de paz. Socorrendo-me da área em que diariamente me alimento, a poesia, e citando a grande poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen : “Fazei Senhor que a paz seja de todos / Dai-nos a paz que nasce da verdade / Dai-nos a paz que nasce da justiça / Dai-nos a paz chamada liberdade / Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos // A paz sem vencedor e sem vencidos”.

Como podemos difundir de forma coerente a paz neste vasto campo de transformação mental, intelectual e filosófica?

Neste mundo actual que caminha, como referi, a uma velocidade atómica para o abismo, e em que tudo se metamorfoseia abrupta e brutalmente em milésimos de segundo, teremos de tentar cada vez mais em irmanação e solidariedade promover esta cultura de paz. Temos de tentar fortalecer as atitudes de solidariedade em relação ao "outro": indivíduo, povo, cultura, civilização. Estar cada vez mais atento para reconhecer os novos indicadores de violência e tentar combatê-los pela palavra, pela cultura, pela educação, pela poesia. Daí, a necessidade de incrementar e diligenciar hábitos de pesquisa que possam inclusive clarificar conceitos, contribuindo para a consciencialização da importância do papel individual de cada um de nós e de todos, no difícil combate às distintas formas de desigualdade e discriminação.

Contudo, tal como já escrevi uma vez sobre o acto de poesia no mundo, estaremos de acordo que, não existirão padrões de estética e cultura universal, de PALAVRA. Daí que, é absolutamente essencial que todos nós consigamos ultrapassar a ideia de que poderemos todos falar uns com os outros a uma só voz, a uma só palavra. A ideia de que todos nós poderemos conseguir falar uns com os outros com uma voz universal é uma utopia. Só será possível ouvirmo-nos uns aos outros quando aceitaremos todos esta verdade. Por isso, será necessário trabalhar numa pequena escala a cultura da paz, mas atuando em vez de representarmos, numa procura de mudanças que desafiem os padrões dominantes de pensamento, por vezes sustentadas em pequenos detalhes que podem fazer a diferença na asserção de uma cultura da paz. Como declara o grande poeta Herberto Helder: “Fora, os corpos genuínos e inalteráveis / do nosso amor, / os rios, a grande paz exterior das coisas, / as folhas dormindo o silêncio, / as sementes à beira do vento, / - a hora teatral da posse.”

Como você descreve a cultura de paz e sua influência ao longo da formação da sociedade humanidade?

A cultura de paz, que a ONU definiu na Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz, em 13 de setembro de 1999, que por coincidência tem actualmente como Secretário-Geral o português António Guterres, e que consiste na preposição de que as relações humanas sejam atravessadas por um profundo diálogo, pela inteira tolerância, pela plena consciência da multiplicidade e diversidade dos seres humanos e de suas culturas, após duas décadas de ambição e utopia, tem tido um papel extraordinário, mesmo se por vezes tal se percepcione ínfimo ou quase ineficaz, apesar de ser nas pequenas conquistas que as grandes tomadas se adivinham possíveis.

Na consciencialização da paz, da vida, da palavra única em sua diversidade, no fim ou diminuição da violência, com a gradual promoção e prática da não-violência por meio da educação e cultura, do imprescindível diálogo e cooperação, a cultura da paz tem sido uma influência na formação de uma nova consciência, que terá que forçosamente vir a dar frutos, que só poderá dar frutos, sob pena de a palavra se estilhaçar de vez e o abismo se erguer fala infinita e definitiva.

Ainda recentemente, o Secretário-geral das Nações Unidas declarou que “gastamos muito mais tempo e recursos a responder e a gerir crises do que em preveni-las. Temos de reequilibrar a nossa abordagem. A guerra e a violência nunca são inevitáveis, é uma questão de escolha e, com frequência, resulta de erros de cálculo”. E por isso, a “cultura” de uma cultura de paz, independentemente das possíveis garantias de acordos políticos, econômicos ou militares, deverá depender sobretudo de um compromisso universal, sentido e sustentado, de cada um de nós, independentemente da idade, cultura e educação, sexo, estrato social ou crença religiosa, como a única intransponível força criadora de um mundo onde a cultura de paz criará raízes como a poesia ambiciona criar. Como cantou o imortal Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, / Muda-se o ser, muda-se a confiança: / Todo o mundo é composto de mudança, / Tomando sempre novas qualidades.”

A cultura, a educação liberta ou aprisiona os indivíduos?

Já Paulo Freire referia que, “o objetivo maior da educação é consciencializar”, e nas infindas e inexplicáveis folhas do mundo “levar o ser humano a apreender sua situação de oprimido, seja social ou economicamente, mas sobretudo, de consciencialização”, essencialmente de si como ser humano em permanente processo de aprendizagem, e com isso agir em favor do seu próprio processo. E depois, começar a ler o mundo, ler o seu mundo, em processo contínuo de libertação.

Por sua vez, sendo a cultura, apropriando-me do conceito de Edward B. Tylor, "todo aquele complexo que inclui o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, a lei, os costumes e todos os outros hábitos e capacidades adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade”, naturalmente que, para a educação, a cultura é o coração dos seus olhos! Podemos afirmar de que, cultura e educação são manifestações de, e da humanidade intrinsecamente ligadas entre si. A cultura e a educação, unidas, tornam-se elementos inteiramente socializadores, capazes de transformar a forma de pensar dos seres humanos, como um cosmos entrançado em seus nós visceralmente articulados, sempre em processo de aprendizagem, sempre em discência até ao infinito de nossa existência, pois, como nos cantou e/ou contou o colossal poeta Manoel de Barros: “O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura / é o caminho que o homem percorre para se conhecer. / Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim / falou que só sabia que não sabia de nada.”

Comente sobre o espaço digital, destacando sua importância na difusão do despertar da humanidade.

O espaço digital pode ser encarado como um dos infindos braços da globalização. E, tal como esta, tem um conjunto de múltiplos factores, que são não só extremamente positivos, mas, também, grandemente negativos ou perigosos. Logicamente que, e neste caso, da plantação de uma “cultura da paz”, o espaço digital pode propiciar e contribuir para a apresentação de ideias de disposição e mobilização por meio de um ativismo filosófico, social, ambiental, político, etc., de forma mais rápida, abrangente e acessível a grande parte dos seres humanos deste nosso planeta Terra. A informação está mais disponível, e quase sempre ao milésimo de segundo. É por isso, ou poderá ser por isso, um meio extraordinário para de forma massiva tentar mostrar ao maior número de seres humanos a obscuridade que vai enlaçando as sociedades actuais, e com isso ir tentando mudar mentalidade(s), sobretudo, alicerçadas numa cultura da paz.

Contudo, um grande desafio perante os perigos que espreitam como víboras o espaço digital é que, e contrariamente ao que sucedia há algumas décadas, hoje, a informação não é um simples e assertivo ativo com valor agregado — ela é algo que exige cada vez mais atenção, mineração e uma cuidadosa avaliação. Para além da desigual forma de acesso aos meios de comunicação pelos povos, cada vez mais, o poder da linguagem, ou seja, o poder do mundo, é esgrimido numa guerra fratricida quase sempre silenciosa e letal. É por isso necessário e urgente, ponderarmos, individualmente e como um todo, nomeadamente por aqueles que detêm e usufruem não só a cultura, mas sobretudo o poder para o fazer, de que forma as tecnologias e o espaço digital deve verdadeiramente ser utilizado. Isso parece-me desde já algo imprescindível, uma vez que somente com o uso criterioso, consciente e certificado (mas não controlado, pois isso pressupõe algo ainda mais terrível, e que em alguns casos, infelizmente, pende hoje a resvalar para aí) poderemos ir mantendo alguns dos benefícios gerados sem que os inevitáveis problemas se tornem ainda maiores do que eles. Como declarou o grande poeta irlandês W. B. Yeats: “Rodando em giro cada vez mais largo, / O falcão não escuta ao falcoeiro; / Tudo esboroa; o centro não segura; / Mera anarquia avança sobre o mundo”

Qual mensagem você deixa para a humanidade?

Eu ousar deixar uma mensagem para a humanidade, seria algo alucinadamente pretensioso e insano. Contudo, e tendo em conta esta questão tão importante e fulcral, como é a cultura da paz, atrevo-me a reiterar que hoje, aqui e agora, esta terá mesmo de vir a tornar-se a principal vertente dos seres humanos. E como filhos de Sísifo, num caminho que amplie o mais possível esta reiterada tarefa, seja numa escolha individual ou colectiva da não-violência, a tolerância e a solidariedade terão que ser a nossa pedra, procurando com isso sensibilizar e persuadir pessoas e estados de todas as geografias do mundo, no sentido de olharmos inevitavelmente como uma derradeira oportunidade de mantermos a esperança viva desta nossa mãe terra.

Será o abraçar pleno destes valores, passadas já mais de duas décadas da Declaração e Programa de Ação sobre uma Cultura de Paz, pela ONU, e numa altura em que muitos governos importantes principiam outra vez a serem agentes defensores da violência e do ódio, que acreditamos conseguir manter a esperança, a utopia, a poesia, de uma verdadeira cultura de paz. É por isso que nunca devemos deixar de reviver e avivar as palavras do actual Secretário-Geral das Nações Unidas, o português António Guterres, quando discursou na sua tomada de posse: "Façamos da Paz a nossa prioridade"!

Por isso, e porque pessoalmente quero também acreditar que a poesia pode sempre contribuir para sensibilizar o corpo, mas sobretudo os corações por essa procura de uma cultura de paz, declaro: “O mundo jamais é parecido consigo próprio / tão inesperada é a noite, / mesmo quando em sua rotação se repete, / efectiva e extingue, / no corpo e cinzas de uma criança, / (…) / Uma criança nos aquieta o corpo, / a noite atravessa o mundo, / obscuros e formais viajantes, / se as quimeras se ofuscam sob os céus / a culpa é dos corações e não da luz das estrelas.”

Dhiogo J Caetano
Enviado por Dhiogo J Caetano em 03/07/2020
Código do texto: T6995313
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