ERIC HOBSBAWM NA FOLHA DE SÃO PAULO.
ENTREVISTA
ERIC HOBSBAWM
Superioridade americana é fenômeno temporário
Para historiador, não há, nem nunca houve, espaço para uma só potência no planeta
Um dos maiores pensadores vivos, Hobsbawm mantém "indestrutível" convicção de esquerda e diz que atraso da América Latina é "mistério"
SYLVIA COLOMBO
ENVIADA ESPECIAL A LONDRES
Desde a queda do Muro de Berlim, em 1989, Eric Hobsbawm tem sido questionado por continuar a defender uma utopia transformada em ruínas. A longa vida do pensador marxista, que completou 90 anos em junho, foi, até aqui, suficiente para que acompanhasse o nascimento de um sonho e sua gradativa revelação como pesadelo.
Mas nem só de desilusões ideológicas vive o calejado historiador, certamente o mais importante ainda em atuação. Agora, Hobsbawm parece mesmo satisfeito ao vaticinar, em seu novo livro de ensaios, "Globalisation, Democracy and Terrorism" (globalização, democracia e terrorismo), que o imperialismo norte-americano também está com os dias contados. "O mundo hoje é muito complicado para que apenas um país o domine", diz. "A única certeza que podemos ter sobre a atual superioridade norte-americana é que ela será, para a história, apenas um fenômeno temporário, como foram todos os impérios."
Foi para falar de suas convicções "indestrutíveis" que o aparentemente frágil Hobsbawm recebeu a reportagem da Folha em sua casa, em Hampstead, bairro nobre no norte de Londres, na última quarta-feira.
Cansaço
Ele e a mulher, Marlene, tinham acabado de voltar de uma temporada no País de Gales, onde têm uma casa. Viajante inveterado toda a vida, Hobsbawm diz que tem saído menos. "Hoje em dia pedem para que a gente vá falar em todo lugar, é muita palestra, muito festival de livros. Gosto de viajar, mas tenho me cansado", diz o historiador, que contou também estar se tratando de uma "leve leucemia".
Na sala onde recebe as visitas, aponta para sua poltrona favorita, "costumo me sentar aqui", e acomoda-se, esperando aplicadamente as perguntas. Fala devagar, mas com firmeza. Gesticula, e procura os olhos do interlocutor ao fim de cada afirmação, como que buscando saber se foi compreendido.
Momentos depois de iniciada a entrevista, entra Marlene com um pedaço de papel nas mãos. "Estão ligando do Times, querem saber se você pode comentar a fala do [David] Miliband [ministro das Relações Exteriores britânico] sobre Gaza." Hobsbawm diz que agora não pode, talvez depois.
"Toda hora estou fazendo pequenas coisas, falando ou escrevendo para jornais sobre assuntos do momento. Eles vivem me pedindo comentários disso ou daquilo." Cotidiano de trabalho? "Não tenho. Depende do que há ou aparece para fazer, sem rotina."
Força não pode impor idéias, diz pensador
Para Hobsbawm, intervenções que não contam com consenso local, como ocorre na Guerra do Iraque, tendem a fracassar
Pessimista em relação ao futuro, historiador diz que, ao contrário dos séculos 19 e 20, situação atual não indica um caminho de progresso
SYLVIA COLOMBO
ENVIADA ESPECIAL A LONDRES
"As idéias podem viajar, mas não a bordo de tanques." A frase do historiador Eric Hobsbawm resume sua descrença em relação à imposição de valores por meio da força, como os Estados Unidos vêm tentando fazer no Iraque. Leia a seguir a primeira parte da entrevista com o historiador.
FOLHA - Em "A Era das Revoluções", o sr. fez uma descrição do mundo no século 18. Se fosse fazer a mesma análise do mundo hoje, que aspectos seriam mais relevantes?
ERIC HOBSBAWM - Eu tentaria começar a descrevê-lo pelo que se pode ver do espaço. No começo da era das revoluções, o único resultado da ação do homem na Terra que podia ser visto do alto era a Grande Muralha da China. Agora podemos ver muito mais. A partir dos foguetes, se percebe o declínio das florestas, o tamanho e a luz das metrópoles, o reflexo de guerras e catástrofes. Se no século 18 sequer tínhamos uma visão global, agora podemos estar no espaço para conferi-la. Em segundo lugar, uma das grandes dificuldades do século 18, a de como ir de um lugar para o outro, passou por uma revolução sem precedentes. Também chamaria a atenção para o que justamente não se pode ver do espaço, a revolução sem precedentes que é a internet. E outros temas como o fim do campesinato e o novo lugar das mulheres. Mas estou muito velho pra um esforço desses...
FOLHA - Em seu novo livro, ao criticar a ação dos EUA no Iraque, o sr. diz que os valores ocidentais não podem ser simplesmente apresentados como "importações tecnológicas cujos benefícios são imediatamente óbvios". Em que momento o que era sonho virou pesadelo?
HOBSBAWM - Sempre foi um pesadelo quando se fez uso de poder militar para exportar valores. As idéias podem viajar, mas não a bordo de tanques. Os ideais da Revolução Francesa se espalharam pela Espanha, pela América Latina e causaram grandes transformações políticas. Mas, quando a França quis exportar suas instituições à força, não teve sucesso. Quando uma intervenção não conta com certo consenso local, tende a fracassar. A idéia por trás de certo imperialismo dos direitos humanos era de que regimes tirânicos seriam tão imunes a influências externas que precisariam ser removidos pela força. Mas trata-se de uma concepção antiga, de um mundo pré-1989, pré-redemocratização de regiões como a América Latina.
FOLHA - O sr. diz que o objetivo de seu novo livro foi ajudar os jovens a enfrentar o século 21 com o pessimismo necessário. Por quê?
HOBSBAWM - O fato é que as perspectivas não são boas. Não me refiro apenas à política internacional, mas também aos assuntos relacionados ao ambiente. Hoje já não se pode dizer tão seguramente, como nos séculos 19 e 20, que estamos num caminho de progresso. Questões como crise de energia e falta de água são reais. Outro processo que não vai parar é o da globalização, e talvez o preparo que se exija dos jovens é para que saibam como lidar com essa aceleração dramática.
FOLHA - O sr. disse que não é mais um comunista porque o comunismo já não está mais na agenda do mundo. Por que o anticomunismo está tomando formas tão agressivas?
HOBSBAWM - O comunismo como movimento que conglomera muita gente já não existe. Não se trata mais de uma alternativa no Ocidente. A partir de 1989, passou a ser diferente. Com relação à China, por exemplo, o que quer que esteja acontecendo de errado lá não tem nada que ver com o comunismo. Também não acho que os trabalhadores que assinaram manifestos pelo comunismo no passado pensem que acreditaram num Deus que falhou. Apenas quiseram fazer uma opção, que não deu certo. Hoje, achar que o comunismo é um mal concreto é algo que está limitado ao meio intelectual. Mais especificamente, a intelectuais de países em que o comunismo foi muito influente no debate político. Então chegou um momento em que essas pessoas quiseram reagir contra, como se estivessem pedindo desculpas. Por exemplo, François Furet [historiador francês, autor de "Pensando a Revolução Francesa"], quando o conheci, ele não era apenas um comunista, mas um enfático militante stalinista. E depois virou-se completamente.
FOLHA - No prefácio de seu novo livro o sr. diz que suas convicções políticas são indestrutíveis.
HOBSBAWM - Sim, minha convicção de ser de esquerda continua. Me posiciono fortemente contra o imperialismo e contra as forças que acham que fazem um bem a outros países ao invadi-los, e contra a tendência de pessoas que, por serem brancas, são superiores. Essas certezas eu não abandono. Mas algumas das minhas convicções mudaram. Não creio mais que o comunismo como foi aplicado poderia dar certo. E não sou mais revolucionário.
Porém, não acho que tenha sido mau para mim e para minha geração termos sido revolucionários. Cresci na Alemanha de Hitler, sempre odiarei totalitarismos.
Fonte: Folha de São Paulo, Suplemento "MAIS", em 30/09/2007