Miúcha Trajano, codinome Miúcha, é cantora de respeito. Nada gratuito, afinal ela respeita antes de ser respeitada. Para cada show – e ela confessa que já cantou, com o mesmo comprometimento, em inauguração de supermercado decorado com sacos de açúcar – ela se prepara como raros profissionais famosos o fazem. No dia de cantar a disciplina é levada a sério. Gengibre, muita água, maçãs. E, sobretudo, treinamento de aquecimento.
Ganhadora de prêmios de festivais desde 1972, ela é uma veterana que, como Shirley Temple, já encantava os ouvidos alheios com o microfone nas mãos aos quatro anos. Encarando a arte de cantar como uma missão e um desafio, seu desejo é sempre o de cumpri-los da melhor forma possível. É o seu compromisso com o público que tem devoção por ela.
Os que conhecem Miúcha de perto sabem que ela é uma espécie de entidade que engloba a cantora, a jornalista, a compositora, a benemerente, a assistencialista, a escritora e o que mais tiver pela frente que a solicite. Mas é a música que lhe traz segurança. É nela que se ancora para sustentar todas as demais responsabilidades.
Com seus recursos vocais e perfeccionismo técnico era de se esperar pela justiça de ser, a esta altura da vida, alguém com reputação nacional. Desagrada saber que não é! Na verdade ela seguiu seus instintos de perseverança tentando os grandes centros. Mas lhe faltou o padrinho certo na hora certa. Qualquer pessoa de menor dimensão mental se tornaria um ressentido. Miúcha não. Ela se sente realizada com a reputação que construiu na Zona da Mata mineira, principalmente ao redor de Ubá.
Sua principal virtude é não se achar um produto acabado ou pronto. Tem a humildade de buscar nos grandes inspiração e espelho. Por isso tem tanta facilidade em identificar o que é bom para o seu e para os ouvidos alheios. Fã inevitável de Ary Barroso não se conforma em vê-lo como um esquecido pelos músicos mais jovens. E ela o diz com a convicção de quem vai se saciar em fontes distantes.
Mas, melhor do que falar da ex-bancária, cantora desde sempre, é ler o que ela disse nesta entrevista concedida ao conterrâneo e amigo Cornélio Zampier. Boa leitura!

P. Dentre suas realizações como cantora, compositora, jornalista e escritora qual a situação mais desafiadora que já enfrentou?
R – Com certeza absoluta é cantar. Cada apresentação é um desafio, quero cumpri-la sempre da melhor maneira possível devido ao compromisso que tenho com o meu público. Mas, desafio mesmo foi cantar no casamento de meu filho Daniel, só Deus sabe como foi difícil. Sorte minha que a emoção do momento me fez cantar melhor.
P. Pessoas com muitos interesses costumam abandonar temporariamente um deles em detrimento dos outros. Quais são suas prioridades?
R – Sim, tenho muitos interesses. Gosto muito do jornalismo, mas não posso dizer que me dedico igualmente às duas funções. Acontece de eu ser mais solicitada para cantar e compor. Assim, minha prioridade é a música.
P. O que é mais prazeroso, compor uma música ou escrever uma crônica?
R - Ao terminar uma composição tenho a sensação de plenitude e sinto que não há mais nada a ser feito. Como cumprir uma missão. Mas não sinto o mesmo ao concluir uma crônica – acho que ficou faltando algo, que não está condizente com um trabalho bem feito. Eis a diferença: sinto-me segura com a música, mas não com a escrita. Não sei explicar, mas sofro mais ao escrever do que ao compor. Mesmo que a composição seja um trabalho tão solitário e tão exigente na entrega.
P. Como compositora, como é seu processo criativo?
R - Muito sofrido. Meu trabalho é de parceria. Eu componho as canções e outra pessoa escreve as letras. Então tenho de respeitar o que o letrista fez ao colocar minha melodia dentro delas. Mas esta dificuldade de conciliação já me fez solicitar a troca de uma palavra só para harmonizar essas partes. É um mosaico cheio de detalhes, muito trabalhoso e ao mesmo tempo gratificante. O processo quase sempre é pegar a letra e tentar encaixar nela uma melodia. Então a melodia fica me perseguindo, seja acordada ou dormindo. Um desassossego até que a criança nasce.
P. Fale um pouco sobre sua experiência no disco autoral “Sem pudor”.
O CD “Sem Pudor” é o resultado de um processo incansável de ir atrás da Lei de Incentivo. Houve momentos em que cheguei a quase desistir, pois além da burocracia, eu tive que ir também buscar patrocínio nas empresas. Foi um trabalho árduo, principalmente, por eu ter que gravá-lo em Belo Horizonte, com músicos que não eram aqueles com quem eu trabalhava e tudo para mim naquele projeto foi muito difícil. O resultado foi muito bom, pois só trabalhei com excelentes profissionais. Mas não foi fácil.
P. Quando ouve músicas de terceiros você costuma pensar que algo ali não funciona bem e que poderia ser melhorado?
R - Só ouço músicas muito boas e feitas por compositores e letristas impecáveis. Ouvi-los serve, inclusive, de espelho e inspiração. Fico tão encantada com a genialidade de certos compositores, que constato o quanto tenho que aprender. Já quando escuto coisas irrelevantes, descarto.
P. Cantar para um público pequeno é problema para você?
R - De jeito nenhum. Tenho pelo público, seja ele qual for, o maior respeito e reverência. Procuro dar o meu melhor. Porque é isso que importa. Já cantei em inauguração de Supermercado onde havia sacos de açúcar decorando o local, mas me senti como se estivesse num palco de teatro. Já cantei em hospitais para doentes terminais e também me senti fazendo algo sagrado. Enfim, não importa o tamanho do público, importa que tenha alguém que queira me ouvir.
P. Dentre suas parcerias com outros músicos alguma em particular tem mais significado?
R - Quando estava no processo de lançar meu CD “Sem Pudor” pela lei de Incentivo, junto ao meu saudoso parceiro Artêmio Ludwig, compusemos muitos temas, porém eu o encomendei uma música que fosse uma declaração minha a meu filho. Então, expliquei ao Artêmio: gostaria que você escrevesse ao meu filho como se você fosse eu falando do meu amor por ele. E assim surgiu a música “Somos Um”. A letra saiu belíssima. Senti que ele escreveu o que eu queria dizer. Como se fosse uma psicografia. Ele captou meu desejo e transpôs para o papel todo meu sentimento.
P. Ser criativo no mundo atual é uma necessidade, pois as coisas estão sempre em processo de mudança. Há pessoas que sentem muita inquietação diante dessas cobranças. Você lida bem com isso?
R - Hoje vivemos o momento onde tudo é muito líquido e nos escorrega entre os dedos. Tudo hoje é muito descartável. Foram esquecidas as músicas com idade de um século que continuam atuais. Por isso me incomoda fazer um trabalho só para agradar. Quero fazê-lo da melhor forma possível e preocupada com a qualidade, porém sem necessidade de atender a modismos. Vou exemplificar com Ary Barroso, que é atemporal. Tive muita dificuldade em fazer um show sobre as canções dele, pois muitos músicos, com os quais trabalho, não conheciam a maioria das músicas. Isso me deixou perplexa, pois vi o quanto eles estão antenados no que está na moda agora. Não conhecem obras imortais, como é o caso da obra de Ary Barroso. Só o que está no momento sendo dito como moda.
P. Como escritora: quando escreve as palavras vem naturalmente ou é necessário fazer pausas para refletir e buscar idéias?
R - Ao escrever trabalho sempre com revistas, dicionários do lado. As revistas me servem de guia caso eu precise de uma palavra e o dicionário é um apêndice meu. Não fico sem ele. Na verdade eu busco idéias através de revistas, jornais e livros. Tenho dificuldade para que as palavras venham naturalmente é um processo doído. Escrever para mim é muito doído.
P. Artistas costumam não respeitar fronteiras. Alguns cantam, dançam e sapateiam. Outros pintam e bordam. Qual a sua capacidade de transpor limites?
R - Sempre sigo a intuição. Vou exemplificar novamente com o show que fiz sobre Ary Barroso, quando várias pessoas insistiam em me fazer mudar de idéia com dois argumentos: o tema não era atual e o meu público não iria se identificar com ele. Continuei na minha intuição e posso garantir que foi um dos meus melhores trabalhos. Ouvi de um maestro na época que eu tinha popularizado Ary Barroso. A forma de eu transpor limites é ir de encontro ao consenso e apostar em minha intuição. Se às vezes sou ousada em determinados trabalhos é porque acredito na minha capacidade de transpor limites e porque acredito no tema.
P. Quando as coisas ficam difíceis o que você faz para contornar os problemas?
R - Nada é fácil, pois trabalhar com arte é matar um leão por dia. Vou citar o exemplo de Ubá onde, apesar de algumas tentativas esparsas, nunca houve uma política estruturalizante de cultura. Percebo isto como representante da cultura ao tentar ajudar na construção de uma mentalidade cultural no município. Os novos exigem mais do que simples eventos isolados; eles exigem também um comprometimento do governo municipal com os anseios da comunidade. A área cultural não pode viver apenas de boas intenções. A principal preocupação é com a municipalização da política cultural. Uma tarefa árdua porque os municípios são impotentes para cobrar iniciativas e ações do Estado e da União. E eles nada ajudam. Em Ubá a participação do Estado e da União não existe e então o município nada pode fazer. Não pode contar com ajuda externa para desencadear ações efetivas. Ou ele faz por conta própria, caminhando com as próprias pernas, ou tudo cai no vazio de sempre. E é assim que a comunidade perde. Os jovens perdem muito mais. Entendo a cultura como o conjunto de mecanismos para transmitir valores às novas gerações e preservar os valores que ainda restam e que estão por se perder. De minha parte sempre tento fazer o possível, ora enfrentando-os, ora contornando-os. Fazendo o que dá para fazer, mas de forma precária.
P. Quais foram suas principais influências na música e na literatura?
R – Ao cursar Letras fui influenciada pelos escritores brasileiros. E lendo-os me senti completamente encantada desde Érico Veríssimo até o filho Luiz Fernando Veríssimo. Li e me encantei com as mulheres Adélia Prado, Clarisse Lispector e Cecília Meirelles. Sem concluir o curso de Letras pulei para o Jornalismo, e a continuação na leitura dos escritores brasileiros me ajudou ainda mais mergulhar de cabeça na literatura. Na música sou seguidora ferrenha de Chico Buarque e sendo seguidora dele sou de Noel Rosa, Ismael Silva, Cartola e outros bambas, pois Chico Buarque é a soma de todos eles. As obras impecáveis de Chico Buarque, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Gonzaguinha, João Bosco, Paulo Cesar Pinheiro e Eduardo Godin são influências diárias. O Brasil é um celeiro de grandes compositores, pena não terem espaço nas rádios e até mesmo na TV.
P. Vida de cantora é mais difícil que vida de bancária?
R – Aos 18 anos, depois de concluir o Curso Normal – que habilitava para a profissão de professora – fiz dois concursos e fui bem classificada em ambos, no da Caixa Econômica Estadual e no do INSS. Dois bons empregos na época e eu iria para o primeiro que chamasse. E foi assim que tomei posse do cargo na Caixa Estadual na vizinha Guidoval. Mais tarde consegui transferência para Ubá. A única motivação para o trabalho era a questão financeira, afinal o salário era bom. Mas, apaixonada que era pela música, aquilo era um suplício. Finalmente, a Caixa foi extinta quando completei 15 anos de profissão. Às vezes me pergunto: como consegui ser bancária, fazer o mesmo serviço todos os dias? Será que fui uma boa bancária? Respondendo à pergunta: a vida de cantora é a que eu gosto e a que me realiza, embora não seja nada fácil. Mesmo na época de bancária eu já exercia a função de cantora, pois sempre me apresentei nos shows desde muito nova. Tenho uma foto aos 4 anos de idade cantando no Ubá Tenis Clube com um público enorme me ouvindo.
P. Para você ter novos projetos é um modo de permanecer jovem?
R - A música é um impulso a nos fazer sentir jovens. Não resta dúvida que ter projetos nos motiva e nos move a realizações. E sempre que estamos trabalhando estamos exercitando, nos atualizando, nos relacionando, aprendendo. Isso é vida, é pulsação.
P. Gostar da cantora Miúcha é preferência ubaense ilimitada. Tirando Ubá até onde já foi sua reputação de excelência na música?
R – Sinto-me honrada e agradeço por afirmar que gostar de mim é uma preferência ubaense. Sempre me perguntam por que não tentei a carreira no Rio de Janeiro e São Paulo. O que as pessoas não sabem é que tentei e não consegui. Para vencer como artista nos grandes centros, além do talento é preciso outros quesitos, como um bom padrinho para nos apresentar a um produtor e por aí vai. Esse padrinho me faltou, não consegui muita coisa a não ser cantar regionalmente, o que me satisfaz. Sou convidada sempre a cantar na região e chego também até Belo Horizonte e Rio de Janeiro, mas sempre a convite de amigos cantores que lá fazem apresentação. Conseguir um espaço nos grandes centros é muito difícil.
P. Artistas gostam da liberdade de escolha, mas, por outro lado também se sentem na obrigação de atender às expectativas de seu público. Qual a porcentagem da cantora que é livre e qual a porcentagem que é comprometida?
R - Poucas cantoras chegaram ao patamar de poder ter liberdade de direcionar sua carreira, escolhendo o repertório e a natureza de seus trabalhos. Elis Regina foi uma pioneira. Ela tinha total controle e autonomia do seu trabalho e não se importava de agradar ou não. Era assim justamente por ser uma operária da música. Era uma trabalhadora, não fazia para agradar, fazia porque acreditava em sua intuição que era sempre acertada. Na atualidade posso citar Marisa Monte e Zizi Possi, que são exemplos de cantoras que definem suas carreiras, não obedecem à expectativa do público e sempre acertam. A maioria é comprometida com a política que vigora na música. Posso afirmar que 80% são completamente comprometidas.
P. Se pudesse aconselhar alguém que está começando a carreira artística que conselhos daria?
R - Estude, estude, estude. Aprofunde naquilo que você escolher. Se escolher teatro aprenda sobre os grandes nomes e assim também na música. Aliás, em qualquer área da arte é preciso estudar os grandes nomes e se espelhar neles. Não os copiar, mas se espelhar.
P. Se pudesse voltar no tempo e começar a carreira de cantora do zero o que mudaria?
R - Eu estudaria música. Me dedicaria ao estudo em um Conservatório onde se estuda desde teoria musical e canto até um instrumento.Isso é fundamental. Estudei piano e violão, só que, em minha infância, quando estudei esses instrumentos, não havia conservatório em minha cidade e minha educação nesse campo foi muito superficial. Se fosse começar hoje do zero, com certeza seria uma aluna dedicada e presente num Conservatório de Música.
P. Quando está no palco de um show memorável o que te inspira para se superar?
R - Sempre fico insegura e achando que não estou apta a me apresentar. Tenho um ritual de rezar e pedir a Nossa Senhora que cante para mim, que ela seja a mediadora entre mim e o público. Ela canta. Acredito nisso. Pois, fico tão insegura que chego a pensar que não alcançarei notas agudas de uma canção e, no entanto, acabo conseguindo. Tenho certeza que Ela está lá me ajudando. Estar concatenada com minha religiosidade me ajuda a superar e me inspira. Afinal, também para mim meu canto é uma missão.
P. Qual a sua preparação no dia e na ultima hora de um show?
R - Canto muito antes de entrar no palco. Coloco música para ouvir e então canto como se estivesse no palco. Cantar é praticar técnica vocal. Não tomo água gelada. Não fumo nem tomo bebida alcoólica. Não prejudico minha garganta. Pratico coisas simples assim e também como maçã, pois ela funciona como um óleo na garganta. E uso gengibre e água. Muita água.