Remisson Aniceto e o humor da crueza do real
Nascido em Minas Gerais, vizinho de Drummond, como costuma dizer, Remisson Aniceto publicou seu primeiro livro, Leva-me contigo, a Senhora S & outras histórias”, em 2016, apesar de ter começado a escrever ainda muito jovem e publicado seus trabalhos, ao longo de décadas, em revistas e jornais literários do Brasil e do exterior, assim como dirigido, por mais de dez anos, a revista de arte e cultura Protexto.
É com humor, delicadeza e rara sensibilidade que este mineiro de Nova Era, há muito radicado em São Paulo, mergulha nas mazelas e contradições humanas e em nossa complexidade existencial, tão bem entrevistas nas histórias que compõem seu livro de estreia.
Como foi a sua relação com o livro na infância?
Nasci e cresci na roça, no seio de uma família de pouquíssimos recursos. Na infância, quase não havia livros em casa, mas o meu pai, mesmo com a dificuldade do pouco estudo, era apaixonado pela leitura e sempre trazia algumas revistas, jornais e livros velhos, que às vezes ganhava ou que as pessoas jogavam fora. Observando as tantas expressões no seu rosto quando ele lia, imaginei que devia ser bom e simpatizei com a leitura, mesmo antes de saber ler. Assim que entrei para a escola e aprendi a ler, toda semana pegava livros na única biblioteca pública da minha cidade. E nunca mais parei de ler.
Quando o desejo de tornar-se escritor?
A primeira resposta se liga a esta, pois, além de querer fazer parte do universo fantástico das personagens que viviam dentro dos livros, de participar das aventuras que pareciam impossíveis fora deles, ao ver que a leitura fazia o meu pai feliz, decidi escrever um livro e dar-lhe de presente. Acontece que meu pai era alcoólatra e muito antes de eu conseguir publicar meu primeiro livro, o vício o arrebatou. Mas continuei escrevendo.
Há em suas histórias uma potencialidade narrativa que se manifesta sutilmente através do humor, como, por exemplo, no conto “Stand-up no ônibus”. O egoísmo da sociedade e a insensibilidade humana são fortemente acentuados na história. Trata-se de uma crítica aos padrões atuais de beleza ou não houve essa preocupação?
Creio que, especificamente neste conto, trata-se mais de uma crítica ao comportamento humano e não aos padrões estéticos, mas creio sim que a beleza está associada ao dinheiro: tudo o que é rico é belo, ainda que não pareça e que aos nossos olhos não seja. A beleza real, no entanto, independe de época e de padrões impostos pelo comércio. Quase tudo se consegue com o dinheiro; veja que eu disse quase tudo. Sou brasileiro e não há como ver, ouvir e conviver com tantas mazelas que poderiam ser extirpadas, se não houvesse tanta corrupção entre os políticos e empresários, estes sim egoístas e insensíveis com a situação de quem batalha honestamente para sobreviver. E como apenas chorar não soluciona, o humor entra para amenizar.
O que serviu de ponto de partida para seu livro de estreia, lançado em 2016 e intitulado Leva-me contigo, a Senhora S & Outras Histórias?
Os contos e crônicas reunidos neste volume são uma parte dos textos que foram escritos durante muitos anos, desde 1980. Alguns foram excluídos do montante que inicialmente comporia o livro, para se chegar a uma quantidade de páginas proporcional ao preço de capa ideal para venda. Apresentado a algumas editoras, quase todas fazendo propostas que somente beneficiariam a elas mesmas, o escritor mineiro Ronaldo Cagiano apresentou-me aos editores Wilson Gorj e Tonho França, da editora Penalux, e ao Eduardo Lacerda, da Patuá. A Penalux foi quem primeiro aprovou os originais. Já o título foi inspirado em um caso de doença ocorrido na família da minha esposa, um episódio que nos deixou muito abalados. O conto já havia sido traduzido para o espanhol pelo escritor e querido amigo Pedro Sevylla de Juana e resolvi incluí-lo no livro em duas versões.
Tem alguma rotina para escrever, um local preferido, um horário determinado ou escreve quando surge a oportunidade?
Nenhuma rotina, nenhum local, o que inclusive considero um defeito, pois às vezes deixo de aproveitar certos momentos ociosos para criar. Escrevo a qualquer momento, por isso ando sempre com caneta e papel no bolso para registrar fragmentos que vejo, ouço ou penso pelo caminho. Quando se trata de poesia, às vezes consigo guardá-la quase integralmente na memória e num momento mais oportuno a transcrevo e vou lapidando. As ideias para os contos e crônicas também surgem a qualquer hora e em todo lugar, muitas vezes ouvindo uma música, lendo um livro, um jornal, atento ao noticiário, viajando, conversando com a família ou amigos. Sem dúvida, que nos momentos em que estou mais só a inspiração aparece com maior força e me joga uma semente no pensamento, dando-me a tarefa de regá-la e cultivá-la. Na maioria das vezes, consigo transformar essa semente em árvore, flor e fruto.
Durante o processo de escrita, costuma partilhá-lo com alguém?
Poucas vezes mantenho em segredo por muito tempo o que escrevo. Normalmente, antes de terminar, alguém já leu o que estou criando, especialmente as poesias, que compartilho nas redes sociais ou mando por e-mail para alguns amigos. Daí a dificuldade de participar de concursos literários, que quase sempre exigem o ineditismo.
Infelizmente, a leitura ainda não é um hábito da maioria das pessoas em nosso país. Alguma saída, a curto prazo, para superar tal situação?
A curto prazo não. Para a situação melhorar é preciso fazer muito e aos poucos. A leitura é capaz de nos tornar cidadãos conscientes do nosso espaço e do nosso dever na sociedade. O hábito de ler com qualidade (e para que tal aconteça precisamos de uma boa e sólida educação escolar) nos torna bons críticos e capazes de estabelecer opiniões próprias e bem fundamentadas. O desinteresse pela leitura em nosso país é antigo. Os livros precisam ser mais difundidos nas escolas, mas o problema maior é que muitos professores, com os quais os alunos se identificam, não são bons leitores. Então, não adianta apenas obrigar a leitura dos clássicos através da grade curricular. Antes, nas escolas de formação de educadores, os futuros professores precisam aprender a ler e tomar gosto pela leitura, pois é muito mais fácil transmitir credibilidade quando falamos daquilo de que gostamos. E as escolas poderiam montar parte do acervo de suas bibliotecas a partir de sugestões de seus alunos, pais, professores e funcionários, tornando-as mais interessantes para aqueles que realmente as utilizam. As recentes iniciativas de pequenos quiosques públicos (ou com preços bem reduzidos) nos metrôs e terminais de ônibus, assim como os projetos de leitura nos presídios também estão surtindo efeito muito positivo.
A dificuldade de se publicar um livro, sobretudo para os novos escritores, leva muitos deles ao abandono do oficio de escrever. Quais as maiores dificuldades que enfrentou para ter seu primeiro livro editado?
Muitas dificuldades, mesmo não levando muitos anos apresentando os originais às editoras. As grandes casas publicam apenas autores muito conhecidos, independente da qualidade do que escrevem ou ganhadores de prêmios literários importantes. Muitas das pequenas casas editoriais não são sérias e não se preocupam com o autor ou a qualidade de impressão do livro. Cobram apenas. Outras, pequenas, porém, sérias, como a Penalux, comandada por Tonho França e o Wilson Gorj, e a Patuá, mesmo com projetos de publicação em parceria com os autores, andam lado a lado deles, compartilhando a promoção e a divulgação, mesmo diante de todas as limitações impostas pela atual indústria do livro.
Sabemos que nem sempre é possível contar com o apoio da editora para a divulgação de um livro. No entanto, o papel dos blogueiros na promoção da literatura nacional tem sido fundamental para muitos escritores. A internet é cada vez mais o caminho para um escritor tornar-se conhecido?
Sim, a internet é muito eficaz, tanto para o bem quanto para o mal. Abriga tanto o ouro como aceita e acumula lixo. Por isso, é preciso peneirar bem e descartar o que é nocivo. Os meios virtuais são fundamentais para a divulgação e até a venda não somente de livros, tanto que todas as empresas, das micro até as grandes corporações, não abrem mão da internet. Os blogueiros fazem um trabalho muito importante na promoção e divulgação, principalmente escrevendo resenhas e ampliando as notícias sobre lançamentos para outros braços de mídia, dando a conhecer os autores e seus livros.
No conto “A casa”, de Leva-me contigo, percebemos uma dose de realismo maravilhoso, que, segundo o crítico literário espanhol David Roas, “se vale de uma estratégia fundamental: desnaturalizar o real e naturalizar o insólito, isto é, integrar o ordinário e o extraordinário em uma única representação do mundo.” De onde a inflûencia para escrever “A casa”?
Já me disseram que “A casa” é um conto fantástico e que é mágico também. Na semana passada, uma leitora evangélica me disse que é maravilhoso e bíblico e fiquei a pensar. A casa, o seu construtor, a mulher na janela, os porcos, as crianças, quase tudo remete à minha infância e dela foi tirado. A possibilidade, mágica e fantástica, ali no conto, de uma casa repleta de vida sendo erguida para os céus, faz pensar na bíblia, em Noé e na recriação. E o ser humano vive desde o seu nascimento entre a realidade e a fantasia, imaginando o que pode encontrar a cada curva do seu caminho. Apesar de admirar tudo o que li de dois grandes expoentes do realismo fantástico, García Marquez e Ernest Hemingway, não veio deles a inspiração para compor ” A casa”. Veio sim das lembranças de um tempo difícil, de uma época de muitas enchentes, mas inesquecível pela convivência com o meu saudoso pai, falecido quando eu tinha quinze anos, da minha querida mãe, que agora tem 82 anos, de minhas sete irmãs e meu único irmão, levado ainda tão jovem daquele vale onde tudo originou.
Em suas histórias, temos um olhar um tanto cético para a condição humana. É possível crer num mundo melhor, a partir de uma maior reflexão sobre nossos paradoxos. Que papel tem a literatura nesse sentido?
É interessante descobrir como tantas pessoas reagem de diferentes formas diante de um texto e muitas vezes se (re)orientam através do posicionamento do autor, posicionamento muitas vezes fictício, puramente literário e sem qualquer relação direta com as suas convicções. Podemos e precisamos até ser influenciados pela palavra, mas mudar nossos conceitos constantemente mostra uma fraqueza de pensamento, o que nos torna facilmente manipuláveis. Mais do que cético, procuro mostrar a realidade com humor, pois chorar diante de tanta podridão nos meios políticos e empresariais não vai melhorar a situação. O papel da literatura (da boa literatura) é promover a interação social, através do conhecimento e da cultura como arte da palavra. Mas é preciso saber ler e gostar de ler. E esta cultura deve vir a partir da convivência em família e na escola. A leitura leva à reflexão, o que muitas vezes é essencial para a uma mudança de posicionamento diante da realidade. Acredito que a literatura pode melhorar o mundo aos poucos, pois, como sabemos, ela auxilia direta e positivamente no processo de transformação da sociedade.
*Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.