A Leste dos Homens – Entrevista com Políbio Alves
O Jornal INVERTA entrevista Políbio Alves, autor do mais recente lançamento da Editora INVERTA, cuja obra está intimamente vinculada ao estado da Paraíba, prova disso é o fato do rio Sanhauá ser um personagem épico, humanizado, até erotizado, não apenas em A leste dos homens, mas também em Varadouro, obra que o tornou conhecido, apesar desse vínculo histórico, o escritor prefere ser considerado um poeta brasileiro. Políbio também possui uma vinculação com outros países, principalmente Cuba, como exemplifica o fato de A Leste dos Homens ter sido publicado primeiramente lá.
INV - De acordo com sua história de vida, o que você considera ser brasileiro, ser latino-americano, e ser um cidadão do mundo?
PA - Minha escritura tem raízes antológicas fincadas na aldeia onde nasci. E reflete exatamente sobre o rio sonolento e poluído pelos detritos oriundos dos esgotos a céu aberto. Ali, bem ali, nas reentrâncias da velha cidade. Esse achado orgânico e espiritual é matéria de criação, me fascina. E muito. Claro, como escritor e poeta. Essas coisas se perpetuam nos meus livros através das ruas escuras e esburacadas onde ainda restam vestígios do calçamento do período colonial, além dos casarões em ruínas, das ervas daninhas nos beirais dos telhados, do odor insuportável que emana do mangue, da fedentina dos crustáceos e dos peixes mortos boiando nas margens do rio Sanhauá. Essa realidade atemporal continua vigente. E se aviva transfiguradora de alegorias nos meus livros, numa reinvenção universal da injustiça, da alegria, do absurdo, da infâmia, do desespero, convivido dia a dia, repartido com outros homens. Para, quem sabe, tempos da releitura do mundo. A professora Elizabeth Marinheiro, nossa conterrânea, pós-doutora em literatura, costuma dizer em suas palestras e conferências pelo mundo, que a poesia e a ficção realizada na Paraíba ou em outros estados da federação, é um produto cultural, enfim, do Brasil. Por isso, afirmo, escrevo e assino sem nenhum pudor: sou poeta e escritor brasileiro. A leste dos homens faz parte de uma trilogia que, em sua maioria, foi escrita em La Habana/Cuba. Os outros livros: A Traição de Hemingway (romance) e La Habana Vieja: olhos de ver (poesia). Em Cuba sou respeitado como ser humano e operário da palavra. Aqui, eu continuo lutando bravamente sem um dia sequer de trégua, pelo direito de viver com dignidade e escrever. Por isso, eu fiz questão de que A leste dos homens fosse publicado e lançado primeiramente em Cuba. Aqui é comum desrespeitar o próximo. Isso se tornou, de fato, um hábito cultural. Inaceitável. De acordo com a minha história pessoal, ser paraibano, ser brasileiro e ser latino-americano é uma barra pesada muito difícil de suportar. Tenho um sentimento de tristeza em relação ao mundo que nos cerca: o da globalização. Isso exige reflexão: o resgate de nossa brasilidade diante do monopólio incomensurável dos ideólogos do imperialismo norte-americano, que tem pouco a oferecer, de útil, aos povos menos favorecidos. Meus livros me transformaram em cidadão do mundo. Eles fazem parte da Casa das Américas (Cuba), Biblioteca Camões (Lisboa), Biblioteca Nacional da França, Biblioteca da Universidade de Reims Champagne-Ardenne (França), Salon du Livre et de la Presse – Varal do Brasil (Genebra, Suíça) e da Biblioteca Central da Rússia. Esse fato é muito gratificante para o escritor e poeta que sou.
INV - A leste dos homens é um soco no estômago, que exige fôlego para ser lido, já que faz uma denúncia nua e crua do sofrimento humano. Seja dos crimes cometidos pelos soldados à serviço das elites, seja na lembrança das, hoje, pouco faladas atrocidades cometidas na época do Estado Novo, como também da violência cotidiana da miséria econômica. Qual a condição humana na atualidade? Esses são tempos de gozo ou são tempos sombrios? Como você vê o papel de Políbio Alves como escritor?
PA - A condição humana, em sua maioria, aqui no Brasil, está em falência total. E também há reflexos desse estado de coisas em grande parcela da humanidade. Esses tempos são bastante sombrios. E por isso, para não ser conivente com essa situação, escrevi A leste dos homens, o que me fez urrar por inteiro. Bastou escrevê-lo para que um passado desmedido reverberasse dentro de mim. É delirante trazer à memória os tempos de chumbo. Não há como escamotear a dor, o desespero, os pesadelos ainda inconfessáveis nas veredas das noites de insônia. A indignação é mais forte do que tudo. Isso mesmo, o necessário salvo-conduto para neutralizar a morte anunciada nos cárceres da ditadura. O meu papel de operário da palavra é aflorar na escritura e na poesia a esperança do ser humano. Exatamente calcada sobre esses dias de turbulência social, desse grito humilhado preso na garganta como se fosse uma lâmina afiada. Em suma, meu texto fustiga caminhos para uma tomada de consciência da problemática que aflige o homem e se propõe a retratar o barbarismo e horror que estamos atravessando.
INV - Vivenciamos em 2016 um processo que guarda inúmeros paralelos com o golpe civil-militar de 1964. Inclusive uma personagem, a presidenta Dilma Rousseff, sofreu duas vezes a mácula da tortura, na primeira vez fisicamente e depois psicologicamente. Assim como ela, você também é um sobrevivente do período da ditadura militar, tendo sido preso por protestar contra o assassinato do estudante Edson Luís, que você conhecia, no restaurante Calabouço. Como você viu o quase assassinato, no último dia 28 de abril, do estudante Mateus Ferreira da Silva, que ainda respira com ajuda de aparelhos, por um ataque covarde de um capitão da polícia que quebrou um cassetete em sua cabeça? Estamos vendo uma repetição da história? Como isso se relaciona com a publicação, neste momento, de A leste dos homens?
PA - A presidenta Dilma e eu estamos no mesmo patamar histórico dos sobreviventes do período militar de 1964. Sabe-se, a presidenta Dilma passou por situações que todos nós já conhecemos. E eu, por lecionar no Calabouço e ter como aluno o Edson Luis de Lima Souto, fui preso em 1º de maio de 1968. E também por me posicionar em salas de aula ou por escrito contra o governo dos generais. Edson Luis foi meu aluno no curso de capacitação escolar, denominado na época como Artigo 99, hoje curso supletivo, que funcionava no Instituto Cooperativo de Ensino, nas dependências do Calabouço, um galpão próximo do Aeroporto Santos Dumont. Esse lugar hoje, por cruel ironia, chama-se Trevo dos Estudantes. Fui eu quem levou Edson Luis para estudar e comer no restaurante Calabouço. Numa quinta-feira às dezoito horas do dia 28 de março de 1968, Edson Luis foi assassinado dentro do Calabouço com um tiro à queima-roupa direcionado ao coração, quando esperava o jantar, disparado pelo revólver do aspirante da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Aloísio Raposo. O que aconteceu com o estudante Mateus Ferreira da Silva é uma reedição do passado, demonstra de novo o estado de exceção em que estamos vivendo. A realidade brasileira é de exclusão de seus abnegados filhos. Isso só vem a comprovar a repetição dos fatos ocorridos aqui e ali nos anos 60 e 70, com a publicação agora, de A leste dos homens. Tudo transcende os limites do meu livro e estabelece as bases para que a literatura brasileira não fique omissa e possa se comunicar diretamente com a realidade do país, digo, do Brasil. Enfim, essa seria uma possível saída de exprimir um sentimento de nacionalidade.
INV - Em A leste dos homens, os soldados de capacetes com plumas alvas queimam livros e massacram trabalhadores, estudantes, jovens. Contudo, nunca conseguem eliminar a resistência que é pujante nos subterrâneos. Da mesma forma, Aniceto, personagem da segunda parte do livro, mostra que mesmo derrotado, e assassinado, seu exemplo perdura pela história. Finalmente, MD, mesmo com 84 anos, não se entregou, mesmo tendo perdido seu marido, X, assassinado pelo Estado Novo. Nem seu destino final, que não vamos adiantar aos leitores do livro, é uma derrota definitiva, como mostra o destino de seu algoz. Por maior que seja o sofrimento retratado no livro, podemos considerar que, apesar de tudo, a sua mensagem é a de que vale a pena lutar?
PA - Apesar de todos os desmandos e atrocidades cometidas contra o povo brasileiro, a minha escritura é de fé, de que se deve lutar por um tempo melhor e mais justo, enquanto ainda prevalecer a esperança, a dignidade e o espírito guerreiro do nosso povo. Sim, frente aos desafios e os desafetos dos dias e das noites de um possível alvorecer.
INV - Nos anos 60, você contribuiu com o suplemento literário da Tribuna da Imprensa, um jornal que fazia oposição frontal à ditadura de então. Como você vê o papel de um jornal como o Inverta, que denunciou desde antes das últimas eleições o golpe que se avizinhava e que faz uma oposição sem tréguas à nova ditadura que está sendo implantada em nosso país?
PA - O Jornal Inverta é um caso singular no jornalismo de nossos trópicos. Vive em estado de alerta, resistindo sempre ao logro do sistema capitalista ou qualquer tipo de governo que possa ampliar a desigualdade entre os povos. Os artigos publicados em suas páginas têm muito a ver com o exercício pleno da cidadania, tão inexistente entre nós. Tenho imenso orgulho de ser um leitor contumaz do Jornal Inverta.
Rafael Rocha - Editor do Jornal Inverta
INV - De acordo com sua história de vida, o que você considera ser brasileiro, ser latino-americano, e ser um cidadão do mundo?
PA - Minha escritura tem raízes antológicas fincadas na aldeia onde nasci. E reflete exatamente sobre o rio sonolento e poluído pelos detritos oriundos dos esgotos a céu aberto. Ali, bem ali, nas reentrâncias da velha cidade. Esse achado orgânico e espiritual é matéria de criação, me fascina. E muito. Claro, como escritor e poeta. Essas coisas se perpetuam nos meus livros através das ruas escuras e esburacadas onde ainda restam vestígios do calçamento do período colonial, além dos casarões em ruínas, das ervas daninhas nos beirais dos telhados, do odor insuportável que emana do mangue, da fedentina dos crustáceos e dos peixes mortos boiando nas margens do rio Sanhauá. Essa realidade atemporal continua vigente. E se aviva transfiguradora de alegorias nos meus livros, numa reinvenção universal da injustiça, da alegria, do absurdo, da infâmia, do desespero, convivido dia a dia, repartido com outros homens. Para, quem sabe, tempos da releitura do mundo. A professora Elizabeth Marinheiro, nossa conterrânea, pós-doutora em literatura, costuma dizer em suas palestras e conferências pelo mundo, que a poesia e a ficção realizada na Paraíba ou em outros estados da federação, é um produto cultural, enfim, do Brasil. Por isso, afirmo, escrevo e assino sem nenhum pudor: sou poeta e escritor brasileiro. A leste dos homens faz parte de uma trilogia que, em sua maioria, foi escrita em La Habana/Cuba. Os outros livros: A Traição de Hemingway (romance) e La Habana Vieja: olhos de ver (poesia). Em Cuba sou respeitado como ser humano e operário da palavra. Aqui, eu continuo lutando bravamente sem um dia sequer de trégua, pelo direito de viver com dignidade e escrever. Por isso, eu fiz questão de que A leste dos homens fosse publicado e lançado primeiramente em Cuba. Aqui é comum desrespeitar o próximo. Isso se tornou, de fato, um hábito cultural. Inaceitável. De acordo com a minha história pessoal, ser paraibano, ser brasileiro e ser latino-americano é uma barra pesada muito difícil de suportar. Tenho um sentimento de tristeza em relação ao mundo que nos cerca: o da globalização. Isso exige reflexão: o resgate de nossa brasilidade diante do monopólio incomensurável dos ideólogos do imperialismo norte-americano, que tem pouco a oferecer, de útil, aos povos menos favorecidos. Meus livros me transformaram em cidadão do mundo. Eles fazem parte da Casa das Américas (Cuba), Biblioteca Camões (Lisboa), Biblioteca Nacional da França, Biblioteca da Universidade de Reims Champagne-Ardenne (França), Salon du Livre et de la Presse – Varal do Brasil (Genebra, Suíça) e da Biblioteca Central da Rússia. Esse fato é muito gratificante para o escritor e poeta que sou.
INV - A leste dos homens é um soco no estômago, que exige fôlego para ser lido, já que faz uma denúncia nua e crua do sofrimento humano. Seja dos crimes cometidos pelos soldados à serviço das elites, seja na lembrança das, hoje, pouco faladas atrocidades cometidas na época do Estado Novo, como também da violência cotidiana da miséria econômica. Qual a condição humana na atualidade? Esses são tempos de gozo ou são tempos sombrios? Como você vê o papel de Políbio Alves como escritor?
PA - A condição humana, em sua maioria, aqui no Brasil, está em falência total. E também há reflexos desse estado de coisas em grande parcela da humanidade. Esses tempos são bastante sombrios. E por isso, para não ser conivente com essa situação, escrevi A leste dos homens, o que me fez urrar por inteiro. Bastou escrevê-lo para que um passado desmedido reverberasse dentro de mim. É delirante trazer à memória os tempos de chumbo. Não há como escamotear a dor, o desespero, os pesadelos ainda inconfessáveis nas veredas das noites de insônia. A indignação é mais forte do que tudo. Isso mesmo, o necessário salvo-conduto para neutralizar a morte anunciada nos cárceres da ditadura. O meu papel de operário da palavra é aflorar na escritura e na poesia a esperança do ser humano. Exatamente calcada sobre esses dias de turbulência social, desse grito humilhado preso na garganta como se fosse uma lâmina afiada. Em suma, meu texto fustiga caminhos para uma tomada de consciência da problemática que aflige o homem e se propõe a retratar o barbarismo e horror que estamos atravessando.
INV - Vivenciamos em 2016 um processo que guarda inúmeros paralelos com o golpe civil-militar de 1964. Inclusive uma personagem, a presidenta Dilma Rousseff, sofreu duas vezes a mácula da tortura, na primeira vez fisicamente e depois psicologicamente. Assim como ela, você também é um sobrevivente do período da ditadura militar, tendo sido preso por protestar contra o assassinato do estudante Edson Luís, que você conhecia, no restaurante Calabouço. Como você viu o quase assassinato, no último dia 28 de abril, do estudante Mateus Ferreira da Silva, que ainda respira com ajuda de aparelhos, por um ataque covarde de um capitão da polícia que quebrou um cassetete em sua cabeça? Estamos vendo uma repetição da história? Como isso se relaciona com a publicação, neste momento, de A leste dos homens?
PA - A presidenta Dilma e eu estamos no mesmo patamar histórico dos sobreviventes do período militar de 1964. Sabe-se, a presidenta Dilma passou por situações que todos nós já conhecemos. E eu, por lecionar no Calabouço e ter como aluno o Edson Luis de Lima Souto, fui preso em 1º de maio de 1968. E também por me posicionar em salas de aula ou por escrito contra o governo dos generais. Edson Luis foi meu aluno no curso de capacitação escolar, denominado na época como Artigo 99, hoje curso supletivo, que funcionava no Instituto Cooperativo de Ensino, nas dependências do Calabouço, um galpão próximo do Aeroporto Santos Dumont. Esse lugar hoje, por cruel ironia, chama-se Trevo dos Estudantes. Fui eu quem levou Edson Luis para estudar e comer no restaurante Calabouço. Numa quinta-feira às dezoito horas do dia 28 de março de 1968, Edson Luis foi assassinado dentro do Calabouço com um tiro à queima-roupa direcionado ao coração, quando esperava o jantar, disparado pelo revólver do aspirante da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Aloísio Raposo. O que aconteceu com o estudante Mateus Ferreira da Silva é uma reedição do passado, demonstra de novo o estado de exceção em que estamos vivendo. A realidade brasileira é de exclusão de seus abnegados filhos. Isso só vem a comprovar a repetição dos fatos ocorridos aqui e ali nos anos 60 e 70, com a publicação agora, de A leste dos homens. Tudo transcende os limites do meu livro e estabelece as bases para que a literatura brasileira não fique omissa e possa se comunicar diretamente com a realidade do país, digo, do Brasil. Enfim, essa seria uma possível saída de exprimir um sentimento de nacionalidade.
INV - Em A leste dos homens, os soldados de capacetes com plumas alvas queimam livros e massacram trabalhadores, estudantes, jovens. Contudo, nunca conseguem eliminar a resistência que é pujante nos subterrâneos. Da mesma forma, Aniceto, personagem da segunda parte do livro, mostra que mesmo derrotado, e assassinado, seu exemplo perdura pela história. Finalmente, MD, mesmo com 84 anos, não se entregou, mesmo tendo perdido seu marido, X, assassinado pelo Estado Novo. Nem seu destino final, que não vamos adiantar aos leitores do livro, é uma derrota definitiva, como mostra o destino de seu algoz. Por maior que seja o sofrimento retratado no livro, podemos considerar que, apesar de tudo, a sua mensagem é a de que vale a pena lutar?
PA - Apesar de todos os desmandos e atrocidades cometidas contra o povo brasileiro, a minha escritura é de fé, de que se deve lutar por um tempo melhor e mais justo, enquanto ainda prevalecer a esperança, a dignidade e o espírito guerreiro do nosso povo. Sim, frente aos desafios e os desafetos dos dias e das noites de um possível alvorecer.
INV - Nos anos 60, você contribuiu com o suplemento literário da Tribuna da Imprensa, um jornal que fazia oposição frontal à ditadura de então. Como você vê o papel de um jornal como o Inverta, que denunciou desde antes das últimas eleições o golpe que se avizinhava e que faz uma oposição sem tréguas à nova ditadura que está sendo implantada em nosso país?
PA - O Jornal Inverta é um caso singular no jornalismo de nossos trópicos. Vive em estado de alerta, resistindo sempre ao logro do sistema capitalista ou qualquer tipo de governo que possa ampliar a desigualdade entre os povos. Os artigos publicados em suas páginas têm muito a ver com o exercício pleno da cidadania, tão inexistente entre nós. Tenho imenso orgulho de ser um leitor contumaz do Jornal Inverta.
Rafael Rocha - Editor do Jornal Inverta