Entrevista com Vinicius de Souza
CA – Di gude é um manga tão brasileiro que é impossível lê-lo e não se lembrar com nostalgia da nossa infância, seguindo essa linha de raciocínio, porque a história não foi ambientada no Brasil?
Vinícius de Souza - Olá, Caliel! Acho que essa foi a primeira vez que me fizeram essa pergunta diretamente e eu a acho formidável. Sempre quis respondê-la.
Eu tenho um monte de desculpas verídicas para ter ambientado a história fora do Brasil, mas o maior motivo de todos é: Medo de iniciante.
Antes do Digude eu desenhava quadrinhos somente para mim e não tinha a mínima noção do que era publicar para que “o mundo” conhecesse. Eu lembro de ter visto uma ou outra crítica sobre quadrinhos ambientados no Brasil em fóruns da Internet e isso, somado à euforia de querer aceitação imediata, me fez ambientar a história no Japão. Pura bobeira… Bobeira de quem está iniciando. Antes de começar a escrever o roteiro, eu imaginava a história no Brasil. E mais, na minha opinião, acho que a história ambientada aqui no nosso País era muito mais legal. Quando estava escrevendo o roteiro eu pesquisei diversas fontes sobre a origem e descobri muitas coisas legais e aí vi que bola de gude, além de brincadeira de criança, é um esporte e que também é popular em diversos países. Com tudo isso, me veio à mente a “Lenda dos Animais Lendários” citados no primeiro capítulo. Para isso, me inspirei no Super Sentai Changeman, onde cada herói tinha o nome e habilidades de um animal lendário. Isso fomentou ainda mais a minha convicção de ambientar no Japão, por ser parte de lendas asiáticas. Hoje eu penso que teria sido muito mais legal se eu misturasse diversos folclores nessa tal lenda, inclusive o folclore brasileiro. Eu descobri com o tempo que o ruim não é tomar a decisão errada, o ruim é não fazer nada diante desse erro. Como Digude é uma história com tema esportivo, é óbvio que o personagem principal irá partir para uma jornada mundial no futuro desta história. Então, o leitor terá a oportunidade de ver um arco que será no Brasil. Onde eu poderei utilizar muitas das ideias primitivas de Digude.
CA – A pergunta que não quer calar: o clima carioca influência no seu trabalho até que ponto?
Vinícius de Souza – O clima carioca costuma fazer minhas mãos suarem e sujam todos os papéis que desenho... --Tá bom, sei que foi uma péssima piada… -- Eu moro no subúrbio do Rio, cerca de 1 hora de distância do Centro, coisa que eu acho maravilhosa para mim como artista. Aqui eu conheço e encontro pessoas de todas as regiões do País e isso enriquece muito o meu conhecimento para aplicar no meu trabalho. Quando vou ao Centro do Rio, eu encontro turistas de outros países, mas aí eu aprendo pouco, porque não consigo interagir com eles por vergonha (e talvez pelo meu péssimo conhecimento da língua Inglesa…). Em minhas histórias eu tento aproveitar um pouco disso. Gosto de montar personagens que aos poucos vão revelando traços de sua personalidade com muita verdade. Meus personagens têm muito de meus sentimentos, pois assim eu os posso entender melhor, mas também trabalho uma boa parte de suas personalidades inspiradas em pessoas que conheço daqui.
CA – Após publicar um volume completo do seu manga Di gude, como você se sente e a história seguirá o projeto apontado nos volumes separados?
Vinícius de Souza - Cara, publicar um volume de Digude, para mim, é uma coisa maravilhosa, porque envolve muita luta até que cada um fique pronto. Digude não é somente minha história “carro chefe”, Digude é como um filho. Ver a reação das pessoas após um volume novo lançado, ou mesmo, a reação de alguém que acabou de conhecer é incrível. Quando uma pessoa elogia o trabalho ou dá sugestões ou deduzem coisas que eu ainda nem revelei na trama, eu fico muito feliz. Eu gosto muito de vender em eventos, pois assim, você tem um contato direto com o leitor. Houve uma vez que uma menina comprou o capítulo 1 em um desses eventos daqui do Rio, passaram-se alguns minutos e ela voltou dizendo que havia “devorado” o primeiro volume e queria mais. Essa é uma das maiores recompensas que os leitores nos dão.
A história seguirá em formato separado, porém com uma tiragem menor. Afinal de contas, está ficando difícil levar tantos volumes para eventos distantes. São, atualmente, 7 volumes do Digude, 1 de Heros e 1 da HQ Sammuel e os informativos, prints, adesivos, etc. Se eu levar 10 revistas de cada volume, a mala já ficará super pesada. A tendência é ir fechando formatos tankobon de 200 páginas a cada 5 capítulos. Atualmente, eu tenho conteúdo para fechar 2 encadernados. Mas iremos primeiramente ao volume 1 do encadernado e daqui há algum tempo, lançarei o segundo.
CA – Recentemente um dos seus trabalhos ganhou uma menção honrosa, como você se sente em relação a isso?
Vinícius de Souza – Isso foi algo que me pegou de surpresa. Eu havia participado do concurso BMA (Brazil Manga Awards) já sabendo que teriam inúmeros artistas incríveis do nosso país. Sabia que seria super difícil e a cada etapa de avaliação meu mangá foi sendo anunciado entre os colocados. Quando fiz, queria ganhar, mas se eu ficasse, pelo menos, entre os 30 primeiros, já ficaria muito feliz. Eu queria provar a mim mesmo até onde eu poderia chegar. Quando eu cheguei entre os finalistas eu pirei. Mas não fiquei entre os 5 primeiros, logo não ganhei a publicação da história. Com isso, eu não imaginava que ganharia uma das menções honrosas. Passaram-se algumas semanas do lançamento da publicação dos vencedores e um amigo postou umas fotos da revista em uma rede social, me parabenizando. Assim que eu descobri que eu recebi a menção honrosa, porque eu ainda não havia comprado a revista. Logicamente eu fiquei muito feliz. Isso me motivou bastante!
CA – Como professor do Estúdio Tensai, quais são os episódios mais engraçados e os que te deixam mais maluco protagonizados pelos seus alunos?
Vinícius de Souza - Um dos momentos mais engraçados, na minha concepção, foi ilustrado na tirinha do volume 6 de Digude. Eu estava usando o computador na sala de aula para passar um vídeo sobre instruções de desenho. Em seguida, eu fui para o quadro escrever e ilustrar algumas explicações complementares. Alguns segundos após eu ouço o tema de abertura do anime Hantaro. Quando eu olhei para trás todos os meus alunos estavam na frente da tela do PC buscando, assistindo e cantando juntos o tema do anime que citei. Tem tanta coisa que acontece também que é mais bizarra que engraçada. Tem o caso do aluno que se inscreveu no curso de Mangá, mas não gostava de mangá. Tem o caso do aluno que achava que o tornozelo era o antebraço (sim, isso aconteceu). O caso mais engraçado de todos e que me deixou mais pirado, foi o do aluno que iria abrir o pote de tinta nanquim e “deu ruim”. Eu pedi para o aluno abrir o pote de tinta nanquim na pia do banheiro para não correr o risco de sujar a prancheta de desenho. Só que esse pote de tinta, precisava receber um pequeno corte na ponta para a tinta sair. O menino não notou isso e ficou no banheiro apertando o pote pra tinta sair. Passaram-se cerca de 30 min e eu achei que o garoto estivesse passando mal. Poderia ter dado uma dor de barriga das brabas e possivelmente estava lá até aliviar. Mas aí, se passaram mais 10 minutos e nada dele voltar. Eu fui até a porta, que estava trancada, bati e perguntei se ele estava bem. Ele gaguejou: - Estou b-bem, sim! É-É que não dar p-pra s-s-sair agora! Senti uma tensão na voz dele e comecei a ter certeza que realmente deveria estar passando mal. Voltei 10 minutos após e perguntei se ele precisava de algo. Ele falou que sim, que iria a abrir a porta, mas que não era para o outro professor e eu ficarmos assustados. Cara, quando ele abriu a porta, lentamente, nós vimos a pia, o chão, as paredes, o teto e, finalmente, o aluno... Todos cobertos de tinta nanquim. Ele ficou apertando o pote, sem ter feito o corte na ponta dele e o resultado foi esse. O pote explodiu e voou tinta para todos os lados. Inclusive em toda a roupa e na cara do aluno. Parecia que o Venon de Spiderman estava espalhado por aquele banheiro. Enfim, tem muita coisa engraçada e louca que acontece numa aula de desenho.
CA – Voltando à esfera familiar, quem não te deu apoio nesse lance de desenhar e como você consegue conciliar a rotina de professor, mangaka e marido?
Vinícius de Souza – Acho que fica mais fácil dizer quem me deu apoio. Dá para contar na mão sem dedo do Lula e ainda sobra dedo. As únicas pessoas que sempre me deram apoio foram minha mãe e minha avó (mais tarde, minha esposa). Eu nunca tive pai, pois ele abandonou a família antes que eu nascesse, logo não conheço essa parte da família até hoje. Então, dessa parte não conta, mas dos parentes maternos, tirando os que citei, nunca houve apoio. Pelo contrário, fui xingado, insultado, humilhado de todas as maneiras possíveis só porque sempre quis fazer o que amo fazer. Só porque eu sempre “bati o pé” e fui contra tudo aquilo que queriam que eu fosse. Eu sempre fui chato com isso. Quando eu queria uma coisa eu tinha que fazer. Tanto que quando eu vejo isso acontecer em famílias de alunos meus, eu sempre tento chamar algum dos responsáveis pelos alunos para conversar e convencê-los a deixar seus filhos seguirem com aquilo que eles amam fazer. Eu tive sorte de ter uma personalidade insistente, fui a exceção, mas os que passam pelo que passei ou os que passam por situações piores que as que eu passei para realizar um sonho, nem sempre aguentam toda a pressão que vem da própria família. Isso eu vi em amigos de infância que tinham um incrível talento para o desenho.
O bom do meu trabalho é que eu quase não saio de casa para trabalhar. Saio apenas nos poucos dias que dou aula e o resto da semana, eu produzo quadrinhos e ilustrações para alguns clientes, coisa que atualmente tem sido muito boa, pois tenho conseguido trabalhos para pequenas editoras e clientes de outros países. Ou seja, tenho muito tempo em casa com a minha esposa. Assim, fica fácil conciliar o tempo. Segue aí o meu cronograma de trabalho, que explica isso super bem. (Eu apenas simplifiquei ele um pouco e acrescentei algumas legendas para ficar bem clara para quem vê-lo).
CA – Se você fosse convidado a participar da Shonen Jump, qual tipo de trabalho você apresentaria aos temíveis editores da revista?
Vinícius de Souza - Eu tenho muitas histórias em mente, que nunca tive a oportunidade de desenhar. Talvez alguma dessas. Mas se fosse alguma das que já produzo, não tem como eu dizer que não seria Digude. Pois é a minha história que tenho mais prazer em desenhar. Se Digude não desse certo, eu apresentaria a “Pelon”, a história que foi menção honrosa. Quando a mandei para o concurso, foi um oneshot spin off, mas eu tenho toda a ideia de uma série muito divertida para essa história. Porém, de todas as histórias que eu tenho, a que mais se encaixaria no perfil dos sucessos battle shonen da Jump, seria “Heros”.
CA – Há alguns anos, muitos consideravam um mercado nacional de mangas no Brasil uma piada, como será possível mudar então o pessimismo em relação ao “mercado nacional de mangas”?
Vinícius de Souza – Eu já tive tantas opiniões quanto a isso durante esse tempo que venho fazendo quadrinhos… mas hoje penso algo bem simples. Todos nós percebemos que há um enorme mercado independente no Brasil. Muitos artistas vendendo seus trabalhos por conta própria na internet, eventos, livrarias etc. Muitos trabalhos excelentes e ideias magníficas. Qualidade é o que não falta, tanto que o resultado disso é o número de entradas de brasileiros que vem acontecendo nos principais prêmios do concurso mundial Silent Manga Audition. Se nós analisarmos e compararmos como era o mercado de Mangás brasileiros no Brasil há 5 anos, veremos uma grande diferença. Se compararmos com 10 anos atrás, a diferença é maior ainda. Eu acho que esse mercado está dando seus passos pra frente aos poucos. Não adianta achar culpados para esse mercado ser ainda de um nicho pequeno. O possível para esse mercado crescer mais já está sendo feito na medida do possível. Hoje temos plataformas online que remuneram os autores por páginas lidas - não é algo que ajude o autor a viver disso, mas já é um começo para sair do 0, além de servir como vitrine para vendas de material impresso - temos eventos que cedem ou alugam espaço para artistas nacionais, temos como fazer impressões de qualidade semelhante ou superior às grandes editoras, temos sites de financiamento coletivo e pessoas dispostas a ajudar a financiar um projeto de mangá nacional e muitas outras coisas.
CA – Qual é a oportunidade que está faltando a Vinícius de Souza?
Vinícius de Souza – Acho que a oportunidade que falta é a mesma que falta para todos. A oportunidade que nossas histórias cheguem a mais leitores, a novos leitores e que eles notem o quão boas podem ser as histórias dos mangás brasileiros. Talvez se grandes mídias nos mostrassem mais, essa caminhada aconteceria um pouco mais rápida.
CA – Qual o seu sonho de consumo como um mangaka brasileiro?
Vinícius de Souza - Meu sonho como mangaka brasileiro é que minhas histórias cheguem ao maior número de pessoas possíveis e que essas pessoas extraiam todas as coisas boas que as histórias possam passar para usarem no seu dia-dia. Quero que minha arte faça o máximo de pessoas sorrirem, se divertirem, sentirem-se bem e que esqueçam um pouco das coisas ruins que acontecem na realidade. Sonho que eu possa passar esse bastão para esses leitores e que eles possam passar esse bastão de coisas boas adiante. Não sei se isso tudo é um sonho de consumo, mas foi à primeira coisa que me veio à mente com essa pergunta.
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