“A simples beleza do inesperado”, de Marcelo Gleiser (Cláudia Lamego )
Marcelo Gleiser era um menino de 11 anos que morava em frente à praia no Rio de Janeiro, gostava de pescar e, místico, sonhava em voltar a encontrar a mãe, a quem perdera alguns anos antes. Ele foi crescendo e questões como o surgimento do universo, a origem da matéria que formava as estrelas, os planetas e as pessoas e a possível existência de vida fora da Terra dividiam sua atenção num cotidiano que incluía também, além do estudo, as aulas de vôlei e os acordes em seu violão. Marcelo virou físico, fez Mestrado e Doutorado, escreveu vários livros, ganhou prêmios, foi morar nos Estados Unidos e passou a dar aulas numa das universidades mais prestigiosas do país, a Darmouth College. Ao descobrir a pesca fly e passar a praticá-la, em viagens pelo mundo, encontrou mais uma forma de conexão com a natureza, a quem nunca perdeu de vista, e de reencontrar aquele menino das areias do Rio. Dessa experiência, ele escreveu “A simples beleza do inesperado”, um ensaio em que reúne memórias de infância, reflexões sobre a ciência, a fé e os limites do conhecimento.
Logo no início do livro, ele escreve que “vemos pouco à nossa volta” e devemos, ao contrário, manter os olhos em alerta, a curiosidade viva e o coração e a mente abertos para percebermos a “simples beleza do inesperado”. Mesmo sabendo da impossibilidade de apreender o todo, estar atentos às coisas mais simples da vida parece ser uma das mensagens do livro. O autor diz ter escolhido a física para “passar a vida engajado com o mistério” e, nesta obra, ele recupera um pouco do livro anterior, “A ilha do conhecimento”, para reforçar a ideia de que a ciência, a principal ferramenta para o homem encontrar respostas às indagações sobre o universo, tem limites estritos. Ele confessa que assumir essa incompletude do saber, que limita a razão e dá força aos mistérios da fé, não é uma postura comum entre os cientistas.
Como surgiu a ideia de escrever um livro que mistura memórias de infância, relatos pessoais, inspirações acadêmicas, ciência, fé e religião? Quanto tempo demorou para escrevê-lo?
A ideia do livro ocorreu durante meu voo de volta da Inglaterra, quando participei numa conferência em Durham e fui fazer a pesca fly no Distrito dos Lagos. A coisa meio que explodiu no papel, a narrativa das duas experiências, o contraste e a complementaridade da ciência e da pesca artística. De lá, foi colecionar experiências, viagens e pescarias pelo mundo. O livro é mais pessoal porque a pesca me remete à infância, à essência de quem era quando garoto. Reencontrar essa essência é o trajeto desse livro, seu arco dramático. Daí a figura do “menino”, que reaparece no texto meio que vindo duma realidade onírica, aquela parte que temos que nos é tão preciosa, mas que a vida tende a sufocar. Foram seis anos colecionando experiências e narrativas, tecendo a história do meu reencontro com meu passado e do meu amor pelo mundo natural.
Logo no início do livro, você diz que “vemos pouco à nossa volta”, e que os cientistas usam a tecnologia (telescópios, microscópios e outros instrumentos) para ampliar sua visão e conhecimento do mundo. O livro parece ter uma mensagem clara: a de que devemos manter os olhos em alerta, a curiosidade viva e o coração e a mente abertos para percebermos a “simples beleza do inesperado”. Mesmo sabendo da impossibilidade de apreender o todo, devemos estar atentos às coisas mais simples da vida. É mais ou menos isso?
Sim, é por aí. A “simples beleza do inesperado” é o que ocorre na vida da gente sem grandes planos: as surpresas, encontros, paixões que não temos como prever, mas que, de certa forma, dão rumo à nossa existência. Tanto da mágica da existência é perdida na rotina do dia-a-dia, nos conflitos desnecessários, no estresse destrutivo dos desencontros. A missão do livro é fazer com que as pessoas resgatem sua essência, dando um pouco de tempo ao que realmente importa, o viver com intensidade, o se relacionar com os outros e com o mundo natural de forma generosa e apaixonada.
A propósito, quando fala sobre o ensino da física, lamenta que os estudantes sejam pouco estimulados para entender a natureza, ao ficarem presos às salas de aula, lembrando ainda que as crianças adoram ciência, instintivamente. Enquanto isso, a matéria, junto com a matemática, continua a ser um fantasma a assombrar os alunos. O que pode ser feito para mudar esse cenário, na sua opinião, com relação à educação formal? Porque me parece que não é só uma questão de ter um bom laboratório, mas professores que consigam estimular os alunos, com paixão, certo?
Existe uma tensão dupla aqui: só aprende quem quer aprender; e só ensina quem quer ensinar. O melhor professor do mundo não consegue ensinar um aluno que não quer aprender; por outro lado, um professor sem paixão pelo que faz, pela matéria que leciona, não vai estimular ninguém. A paixão tem que vir dos dois lados. No caso das ciências, é essencial que os alunos sejam expostos ao “mundo”, aos fenômenos que vão estudar, antes de discutir detalhes na sala de aula.
Você relata no livro vários momentos importantes de sua vida e que, dependendo de quem os interprete, podem parecer experiências místicas (como a aparição do salmão no rio), religiosas (a história da cozinheira em sua casa) e da ordem de uma conspiração do universo, como o encontro com o primeiro treinador da pesca fly. O leitor sai dessa leitura com mais perguntas do que respostas, não?
Espero que sim. Quando tratamos do inesperado e do impacto que esses eventos têm em nossas vidas, existem mais perguntas do que respostas. E isso é muito bom! São as perguntas, a inquietude, a curiosidade, que nos levam ao conhecimento, tanto de nós mesmos quanto do mundo à nossa volta. Conto essas histórias no livro porque elas tendem a contrariar a narrativa segura e racional da ciência. São coisas estranhas que ocorreram comigo e que dão um significado especial à minha vida. Ao narrá-las, tenho esperança de que o leitor também comece a pensar nos eventos da sua vida e em como eles são formativos na sua própria história.
Recentemente, com a morte do ator Domingos Montagner, no auge do sucesso na novela de maior audiência da TV, as redes sociais se dividiram em dois tipos de reação: uma religiosa, que falava dos mistérios dos rios, dos deuses indígenas e africanos que regeriam as suas “leis”; e a outra que tentava explicar, científica e geologicamente, que as características da região são propícias a afogamentos daquele tipo. O ser humano está sempre em busca de uma explicação, seja divina ou terrestre, para as coisas que não consegue entender. O seu livro fala um pouco de como a incompletude do saber limita a razão e dá força aos mistérios da fé. Você diz, inclusive, ter escolhido a física para “passar a vida engajado com o mistério”. Essa incompletude é o que te move a escrever também?
Sem dúvida! Quando comecei minha carreira de cientista, sabia que era apenas um lado da moeda, sabia que me faltaria algo. O que foi ocorrendo com o passar dos anos é que fui entendendo e explorando os limites do saber como uma espécie de portal para o mistério, para o que não sabemos e, em certos casos, nem podemos saber. Essa não é uma postura comum entre os cientistas. Acho que revela meu lado espiritual, o menino místico que era durante a adolescência. Ao escrever, ficção ou não-ficção, abro a porta para um outro lado da minha personalidade que complementa o lado científico e racional. Feito a moeda, preciso dos dois para existir.
Você é um físico que escreve, já teve um programa de TV, dá aulas e encanta plateias de eventos literários. No livro, diz que busca simplicidade nas explicações, “de modo que teorias possam abranger o maior número possível de fenômenos”. Leva essa filosofia do cortar o supérfluo para ficar com o essencial também para os seus textos. Além disso, você extrai poesia da física, observa a natureza como uma grande orquestra (toca violão também) e há algum tempo faz da pesca fly um estilo de vida. É esse o segredo de seu sucesso, em áreas tão diferentes, à primeira vista?
Tudo o que faço, faço porque não poderia não fazer. De alguma forma, essas atividades todas são o que sou. Sem elas, fico incompleto. Às vezes, invento uma coisa nova pra fazer e mergulho de cabeça, como sempre. Acho que o ponto mais importante é esse, a entrega apaixonada ao que faço. Talvez porque a morte tenha me visitado mais cedo do que deveria, me apego à vida com todas as forças. Das sombras, busco a luz. A experiência de estar vivo, de provar coisas novas, de testar meus limites, ir além, é o que me faz acordar sorrindo todos os dias. No fundo, sou um apaixonado pelo viver.
Queria finalizar falando um pouco mais sobre a pesca fly, aparentemente o que o levou a escrever esse livro. Em vários trechos, você disse que ela é uma metáfora para o amor (a atração e, por vezes, a repulsa entre o peixe e o pescador); um desafio que ensina a importância das metas e estratégias para chegarmos a um objetivo; um equilíbrio entre o querer mais e o contentamento com o que se alcançou (entre orgulho pessoal e humildade) e uma forma de meditação. Ao longo do livro, muito pessoal, você relembra de seu passado no Brasil, com referências da natureza e da cidade que só a memória hoje alcança, a sua relação com seu pai e a morte prematura da sua mãe, a quem você tentou se aproximar, ainda que espiritualmente, durante os anos. A pesca, e esse livro, também seria uma forma de você se reconectar com o passado e projetar um futuro em que os dias devem ser vividos com a certeza da finitude e a beleza da própria vida?
Exatamente. A pesca é um símbolo, no livro e na minha vida. Ela representa a solidão do homem perante uma natureza incerta, perante uma vida incerta, da qual pouco sabemos ou podemos prever. O peixe vive num mundo paralelo ao nosso, invisível, e não sabemos se iremos ou não fisgá-lo. Ele representa a vida que podemos ou não ter, emergindo duma dimensão oculta, imprevisível. Essa é a nossa dúvida existencial, o estar vivo sem saber por quanto tempo, o resgatar o passado como um tesouro do que passou, buscando por um futuro ainda mais precioso.
Cláudia Lamego