Entrevista MICHAEL LÖWY - Aray Nabuco

POR UMA NOVO MUNDO, SEM CAPITALISMO

Escritor aborda semelhanças – e dessemelhanças – entre Marx e Weber e o ecossocialismo para conter a catástrofe humana e ambiental do capitalismo.

Por Aray Nabuco

Entrevista com MICHAEL LÖWY,cientista e escreitor radicado na França desde a década de 1960 e onde atualmente é diretor de pesquisas do Centro Nacional da Pesquisa Científica, que aborda semelhanças – e dessemelhanças – entre Marx e Weber e o ecossocialismo para conter a catástrofe humana e ambiental do capitalismo.

Caros Amigos - Queria que você pontuasse onde Weber encontra Marx nessa crítica ao capitalismo. Na coisificação das pessoas, na humanização das coisas?

Michael Löwy – O Weber ao mesmo tempo em que era crítico do Marx – obviamente não tinha nada a ver nem com marxista, nem com socialista –, tem uma crítica ao capitalismo bastante radical em alguns textos. Não em todos, sobretudo em A Ética Protestante. E ele, em alguns pontos dessa crítica, vai coincidir com Marx. Por exemplo, em algumas passagens ele até diz “estou usando o conceito marxista de mais-valia”. Isso não é o mais típico. Mas há um argumento dele que também é importante em A Ética Protestante, que ele vai retomar em outros escritos, que é que o capitalismo é um sistema no qual os meios substituem os fins. Quer dizer, o dinheiro, a acumulação do dinheiro, a acumulação do capital,investimento etc., já não é um meio para a satisfação das necessidades, para o prazer, para uma finalidade. É um fim em si. Há uma inversão entre meios e fins, que é irracional. A relação natural seria: você trabalha para poder usufruir da sua vida, satisfazer suas necessidades. Tudo é em função do capital, dessa acumulação. O meio virou o fim. Engraçado que o Weber tem uma conferência sobre o socialismo, que é uma conferência contra o socialismo, dada para um grupo de oficiais do exército austríaco. Então, completamente crítico do socialismo. Mas ele diz: “a verdade é que o capitalismo é um sistema que converte, transforma, substitui os meios pelos fins”. E isso é o que os socialistas dizem. Então, em algum momento chave, apesar da grande referência contra o socialismo, nesse aspecto, o argumento dele acaba coincidindo com os socialistas. Então, um pouco tem a ver com essa questão da reificação. O que predomina já não é a dimensão humana. É o capital, é a indústria, é a produção, isso que é importante. O ser humano, os seus governos, a felicidade, não importam. Agora, outras críticas do Weber são no mínimo contraditórias, mas são diferentes do argumento marxista. São complementares, eu diria. E é o caso dessa ideia de A Jaula de Aço. Que também de certa maneira está presente em Marx. O capitalismo é um sistema total, que determina totalmente a vida das pessoas. Não só as que trabalham no sistema, mas todo mundo tem o seu destino determinado pela lógica do sistema capitalista. Então, estamos todos encerrados numa jaula de aço, sem saída.

É daí que vem a ideia da jaula de aço?

Exatamente. Aliás, a expressão exata é “habitáculo duro como aço”. Foi traduzido para o inglês como “Jaula de Aço” (Iron Cage), e a expressão pegou. Tem uma outra frase que o Weber usa que é “o capitalismo é uma escravidão sem mestre”. Quer dizer, uma escravidão impessoal. São escravizados não por outro indivíduo, mas por um sistema anônimo. As leis da economia, competição, competitividade, essas coisas impessoais. Então, são argumentos duros contra o capitalismo de alguém que não era um anticapitalista. Ele achava que o capitalismo era o sistema mais racional possível, muito superior a todos os anteriores e, sobretudo, achava que não tinha alternativa. Ele achava que o socialismo era uma ilusão. Então, a grande diferença dele para o Marx é essa. O Weber é um pessimista resignado, enquanto Marx é um otimista revolucionário, aposta na possibilidade de uma alternativa ao capitalismo. Mas no diagnóstico, o que o capitalismo faz aos indivíduos, há muita proximidade, muita afinidade, às vezes, certa complementaridade.

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Que elementos ele tinha ou em que se baseou para fazer essas críticas ao capitalismo, que estão evidentes mais de cem anos depois?

A ótica com a qual ele critica o capitalismo é diferente da de Marx. É o que eu chamo de pessimismo cultural ou uma forma de romantismo, que no fundo é uma crítica ao capitalismo em nome de valores do passado. Quer dizer, nas sociedades pré-capitalista, as finalidades humanas é que predominavam, o indivíduo não era prisioneiro das estruturas econômicas. Às vezes explicitamente, às vezes implicitamente, essa ideia de que o capitalismo representa um imenso progresso em termos de racionalidade. Mas do ponto de vista humano, social, ético, cultural é uma regressão. Agora eu acho que tanto Weber como Marx conseguiram captar elementos essenciais do capitalismo. Mais além de elementos específicos da época, captaram alguma coisa essencial do capitalismo, que hoje em dia só foi intensificada. Multiplicada por dez, por cem. Então, por isso é que são tão atuais.

Na crítica anticapitalista de Marx, ele avança e propõe uma solução – a organização do proletariado e a tomada do poder.Weber chega a propor alguma coisa que se aproveite para alguma revolução anticapitalista?

De jeito nenhum. Ele acha que o socialismo é uma ilusão, que os socialistas vão agravar os problemas do capitalismo. No fundo, ele era um pessimista resignado, tipo “o capitalismo está aí, não gostamos dele, mas não tem outro”. Um estado de espírito um pouco nietzscheano. Nietzsche dizia que temos que aceitar o destino, que o herói é aquele que aceita o destino, que é inevitável. Weber tinha um pouco desse pessimismo nietzscheano. Agora, curiosamente, em A Ética Protestante, que é o livro mais importante do Weber, no finzinho do livro, tem uma parte em que ele mesmo diz “agora eu vou deixar de desenvolver meu argumento científico, objetivo, sem juízo de valor, eu vou dar minha opinião. Tanto pior”. Ele mesmo diz isso. Então, nessas últimas páginas, ele dá livre curso quase que à sua afetividade, ao seu sentimento. Aí ele quase que joga um pouco a ideia de uma utopia, mas não é uma utopia socialista, é uma utopia romântica. Então, ele diz assim, “o que vai acontecer no futuro? Será que vamos caminhar para uma espécie de petrificação da sociedade, uma espécie de volta ao que era o mundo dos faraós do Egito, uma espécie de sistema totalmente fechado? Ou quem sabe haverá outra via, aparecerão outros profetas?”. Porque Weber tinha muita admiração pelos profetas bíblicos judeus. Ele achava que os profetas tinham rompido com a magia e introduzido uma religião ética, baseada em valores éticos. Então, diz Weber, “quem sabe aparecerão novos profetas, que voltarão a visitar princípios éticos e quem sabe haverá uma reincidência dos antigos valores?”.

Quais são esses valores?

Ele não explicita, mas tem uma frase que é assim: “O risco é que o mundo do futuro será um mundo de especialistas sem espírito e sem coração”. Então, o que são os valores que ele acredita? É o espírito e o coração. O espírito que é a inteligência, a cultura, a razão. E o coração, que é o amor. Weber é um romântico. E a utopia dele, se existir, seria uma utopia romântica de uma ressurreição de valores do passado, graças a novos profetas, mas que ele mesmo não chega a acreditar. Ele só está um pouco jogando com essa ideia. Mas é só nesse livro. Não é em nenhum outro lugar.

Surgiram alguns outros profetas, em sua opinião, desde Weber? Os profetas da sustentabilidade, por exemplo?

Não sei. Eu não me animaria. Houve falsos profetas. Muitos. A começar por Adolf Hitler. Mas isso não é culpa do Weber, coitado (risos).

Sempre que se coloca hoje a crítica anticapitalista chega-se também à crise ecológica, à crise ambiental, que torna bem evidente o suicídio que é o capitalismo. O que o marxismo traz como alternativa a essa crise ecológica, quando se faz a crítica ao capitalismo com esse viés ambiental?

Eu me permito fazer 30 segundos de publicidade, acabo de publicar um livro que se chama O que é o Ecossocialismo?, que justamente discute essa questão. Eu acho que o marxismo tem uma crítica, já em Marx e alguns marxistas se encontram elementos de crítica de como a dinâmica do capitalismo leva à destruição do meio ambiente, ao envenenamento do solo, à destruição das florestas. Isso já aparece em Marx, mas muito pouco desenvolvido. Isso precisa ser retomado. Colocado não como uma questão marginal, mas como um tema central. A segunda é que aparece em alguns textos do Max Weber, mas muito mais no marxismo do século 20, nas suas correntes dominantes, uma visão produtivista, segundo a qual o socialismo

só tem como objetivo mudar as relações de produção, substituir a propriedade privada pela propriedade coletiva para desenvolver livremente as forças produtivas. Aí tem que se tomar distância em relação a essa posição, para se colocar, em relação às forças produtivas, o que o Marx dizia em relação ao aparelho do Estado: que a revolução não pode tomar o aparelho do Estado como ele existe, capitalista. Tem que acabar com ele, transformá-lo radicalmente, substituí-lo por outra coisa. Seria um poder democrático dos trabalhadores. E a mesma coisa eu acho que vale para o aparelho produtivo. Esse aparelho produtivo que está aí, baseado nas energias fósseis, no petróleo, é o que está nos levando ao desastre ecológico. Precisamos pensar em uma transformação radical das relações de produção, do modelo de consumo, do modelo de transporte. No fundo, é uma mudança no modelo de civilização capitalista, industrial, ocidental moderno. Essa ideia, eu acho que parte do marxismo, mas tem que ir além do que está escrito em Marx e Engels, em Trotsky ou outros, como Gramsci, para incorporar a crítica ecológica produtivista. A gente precisa fazer uma síntese do que há de melhor no marxismo e no pensamento ecológico. Isso é o que a gente chama de ecossocialismo.

Fiz essa pergunta porque a preocupação com o ambiente, hoje, é um fundamento e porque Marx também tem a ideia do desenvolvimentismo e do progresso, que também estão na base da expansão capitalista.

Há os dois elementos em Marx. Há uma visão produtivista, do desenvolvimento das forças produtivas. Mas existe, paralelamente, essa ideia de que as forças produtivas estão destruindo o meio ambiente e que numa sociedade socialista temos que organizar o metabolismo, a sociedade humana,

e a natureza de outra forma, que permita deixar para as gerações futuras um planeta em condições viáveis. Essa ideia aparece em Marx. Não está desenvolvida, mas aparece. Portanto, precisamos retomar essas ideias, desenvolvê-las e incorporar problemas que não eram da época do Marx e que hoje a gente está vivendo. A crise ecológica da nossa época é mil vezes mais grave do que a do século 19.

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O senhor acha que a esquerda está incorporando esse pensamento de Marx? O que eu quero dizer é que, hoje, tanto os partidos de esquerda quanto os da direita, fazem o discurso da sustentabilidade, esse tipo de coisa que é óbvio que a gente tem que perseguir, mas que, do jeito que propagandeiam, não muda estrutura nenhuma. Como a esquerda deveria se posicionar diante desse discurso da sustentabilidade?

A palavra sustentabilidade, infelizmente, ficou totalmente esvaziada, porque todo mundo fala em sustentabilidade. O Banco Mundial fala em sustentabilidade; as companhias de petróleo falam em sustentabilidade etc. Deixou de ser uma palavra com conteúdo, virou uma coisa vazia. Então, a gente precisa colocar uma visão muito mais crítica, muito mais radical. Para que exista o que a gente chama de sustentabilidade, precisamos transformar radicalmente as estruturas econômicas, sociais, as fontes de energia, o modo de consumo. É uma revolução civilizacional. Não é bom dar um pouco mais de dinheiro para que as empresas fabriquem de modo menos sujo. Não, não dá pra corrigir na margem, você tem que pegar o problema pela raiz. E a raiz é o próprio sistema. O sistema capitalista não comporta a sustentabilidade. A lógica dele não comporta isso. Um capitalista que queira dar ênfase à ecologia vai à falência, porque seus concorrentes não dão. E não é por acaso que as conferências internacionais tenham fracassado. Porque cada país capitalista defende os seus produtores para ganhar mais mercado e a ecologia vai para o brejo. A única esperança que podemos ter é em coisas como essa que aconteceu ontem em Nova Iorque (manifestação popular, no fim de setembro, durante cúpula do clima). Saíram na rua 400 mil pessoas contra as mudanças climáticas, cobrando o governo, criticando. Formidável. É um acontecimento histórico. Nunca houve isso. E, claro, todo mundo participou. Foi meio unânime ver o Ban Ki-moon, das Nações Unidas; o prefeito de Nova Iorque, o Al Gore (ex-vice presidente dos Estados Unidos). Na cabeça da manifestação estavam os índios americanos, que estão lutando pela natureza há séculos. Mas foi um belo acontecimento. Isso dá alguma esperança, porque se for esperar os governos, francamente…

Já vi pesquisas mostrando que a maior parte das pessoas estão dispostas a abrir mão de conforto, de várias coisas para reduzir os impactos ambientais. Mas o sistema não vai deixar.

O Thomas Picketty cita toda essa crise capitalista também e chega a falar de uma crise estrutural de civilização. O senhor acabou de citar mais ou menos isso. É o caso da gente falar de uma mudança de era? De enterrar a Era Industrial, seus valores de progresso, de desenvolvimento econômico e passar para um outro momento?

Eu acho que sim. O que a gente chama de mudança de paradigma de civilização é uma mudança de era histórica, de certa maneira. Em que, no mínimo, tem que se dar aos conceitos de progresso, de desenvolvimento, um conteúdo completamente diferente. Progresso não é acumulação de produtos e de mercadoria; não é aumentar o PIB. Progresso é você viver de uma maneira mais harmônica, com outro relacionamento com a natureza, com outro tipo de necessidade. Marx tem uma bela frase que diz: o importante não é ter mais e mais produtos, acumular bens; o problema é você ser, se realizar como ser humano. Isso que é fundamental para pensar uma nova era, uma nova civilização. Que inclua os valores não de mercado, de economia, mas valores humanos. Exatamente. Valores humanos. E a produção industrial, obviamente, mas em função das verdadeiras necessidades, que são aquelas que sempre existiram. Todas as pessoas têm necessidade de comer, de morar, de vestir, de cultura, de saúde.

Agora, aquelas que são artificialmente induzidas pela publicidade, compra aquilo, compra outra, isso é que precisa acabar. Tem gente defendendo aqui e ali o downgrade da economia global. Diminuir o PIB, diminuir o volume de dinheiro, decrescimento da economia. O senhor acredita nisso?

Eu acho que esse pessoal de decrescimento tem muitas qualidades, mas alguns defeitos. A qualidade deles é desmistificar a religião do crescimento. Essa ideia de que o crescimento vai resolver todos os problemas, vai resolver o desemprego, vai acabar com a pobreza. Acabar com essa mistificação do crescimento. E eles também têm essa qualidade de lutar contra essa ideologia do consumo,essa obsessão neurótica. Eles vão contra isso e eu acho isso muito justo, muito importante. Agora, o problema que eu vejo é que o conceito de decrescimento é um conceito quantitativo. Os governos dizem: nós queremos que o PIB aumente em 10%. Aí vem o pessoal do decrescimento e diz: não, ele tem que diminuir em 10%. Eu acho que a colocação tem que ser qualitativa. O que eu quero dizer com isso? Que algumas atividades a gente deveria não só reduzir, mas suprimir. Por exemplo, a publicidade, a energia atômica, o carvão. Tem uma lista enorme de coisas que são inúteis, perigosas e que precisamos suprimir o mais rápido possível. Outras coisas, a gente tem que reduzir, como circulação de automóvel etc. E outras coisas a gente precisa aumentar. A gente quer aumentar a agricultura biológica, que até agora está muito pequena. A gente quer aumentar as energias renováveis,

eletricidade solar, do vento etc., expandir as renováveis para acabar com as energias fósseis. E a gente quer expandir saúde, educação. Tem várias coisas que a gente quer expandir, outras que a gente quer reduzir, outras que a gente quer suprimir. Então, o conceito de decrescimento não dá essa diversificação qualitativa, essa é a minha crítica. Mas eu reconheço que eles têm uma contribuição positiva.

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Eu gostaria de retomar um pouco sobre Walter Benjamin, tudo indica que toda aquela crítica que ele faz, inclusive a crítica anticapitalista, veio se concretizando, não é verdade, professor?

Benjamin efetivamente tem elementos quase proféticos, ele foi um profeta desarmado, teve que se suicidar. Um deles é justamente sobre essa questão ecológica. Ele tem, por exemplo, naquele livro inacabado dele, sobre as passagens de Paris (Paris, Capital do século XIX), ele diz que a relação do capitalismo com a natureza é destruidora, é assassina. E que podemos aprender outra relação com a natureza com os povos chamados primitivos. Eles têm uma relação que considerava a natureza como uma mãe generosa. É quase palavra por palavra os textos da Conferência de Cochabamba realizada por Evo Morales, na Bolívia, há dois anos, sobre a mudança climática e a defesa da Mãe Terra. O capitalismo destruidor, assassino da natureza, assassino da Mãe Terra, da Pachamama. E as tradições indígenas dão o exemplo de outro tipo de relação com a natureza. Já está sugerido ali no próprio texto. Acho que Benjamin é um pensador que tem muito a nos ensinar.

A esquerda está sabendo se aproveitar dessa crise ambiental para conseguir avançar sua proposta de mudança? Você acha que a esquerda está conseguindo passar isso tanto para os seus militantes quanto para as pessoas?

Sim e não. Para boa parte da esquerda, a ficha não caiu ainda. Continuam apostando no desenvolvimentismo etc. Outros já reconhecem que é um problema, que isso deve ser levado em conta, mas ficou um dos trinta capítulos do programa, não uma coisa central. Agora, uma parte da esquerda já está levando a sério, dando conta de que você não pode pensar o socialismo do século 21 sem ecologia. Isso é um desafio central. Uma parte da esquerda já está colocando isso e o ecossocialismo é imprescindível. E, hoje em dia, o ecossocialismo tem uma influência

crescente, pequena, mas crescente, nos Estados Unidos, na América Latina e na Europa, onde vários partidos da esquerda mais radical já assumem o ecossocialismo. Na Conferência da Esquerda Europeia já se discutiu o ecossocialismo e houve bastante simpatia. E houve duas conferências ecossocialistas na América Latina esse ano, uma em Quito (Equador) e outra em Caracas (Venezuela). Algo está se mexendo, mas acho que a coisa tem que ir mais depressa.

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Os capitalistas e essa esquerda lutam pelas fábricas. Mas a questão não seria se vamos manter essa fábrica ou fechá-la? A luta, hoje, passa por essa decisão?

Passa. Mas acho que é importante tomar a fábrica, porque as condições em que ela vive faz ela produzir outra coisa. Porque o capitalista que produz carro, nunca vai deixar de produzir carro, que polui. Então, se houvesse um trabalhador com consciência ecológica, ele vai poder tomar essa fábrica e decidir produzir bicicleta, por exemplo. Então, eu acho que é essa coisa: uma fábrica a gente quer fechar porque só produz porcaria; outra, a gente quer reorganizar para produzir outra coisa e outras são fábricas que não existem, que a gente vai criar. Ou existe muito pouco, por exemplo, para produzir equipamentos para energia solar, que ainda tem muito pouco e é caro. E assim por diante… A gente está vivendo um momento de grande concentração de riqueza, inclusive foi o que aprofundou a crise na Europa e provocou a crise nos Estados Unidos.

Como romper essa força que hoje agrega não só o poder financeiro e político, mas o tecnológico?

Eu acredito primeiro que para resolver esses problemas econômicos, ecológicos, sociais, você tem que mudar o sistema. Então, é aquela palavra de ordem, que apareceu inclusive naquela manifestação em Nova Iorque, “precisamos mudar o sistema, não o clima”. Agora, o sistema tem uma potência enorme, ele concentra o domínio econômico, financeiro, industrial, tecnológico, da mídia, tudo, essa turma da oligarquia financeira e também a oligarquia fóssil, do petróleo. Por outro lado, a insatisfação cresce, a indignação cresce, volto a falar dos 400 mil em Nova Iorque, a esperança nossa é essa. E obviamente todo mundo que está na rua hoje não se dá conta de que precisamos de uma revolução, do ecossocialismo. Nós precisamos partir de coisas muito concretas, reivindicações muito concretas, aqui e agora. Precisamos começar com isso.Então, por exemplo, nos Estados Unidos impedir aquele pipeline (dutos), que ia vir do Canadá trazendo petróleo sujo, um desastre, que os indígenas já falavam. Conseguir quebrar isso é um passo. As pessoas que se mobilizam começam a tomar consciência. Quem são seus inimigos, quem são seus aliados? Isso vai politizando as pessoas. Aqui no Brasil reivindicar desmatamento zero para a Amazônia, vai contra os interesses sistêmicos e o agronegócio fica furioso. Levar à frente essa batalha é fundamental. Isso são atitudes que a gente precisa começar aqui e agora. Sabendo que cada um desses objetivos que a gente conseguir, a gente tem que passar para um etapa superior. Levantar a próxima reivindicação, que é uma dinâmica até que a gente consiga dar a volta por cima.

Como o senhor vê a ascensão das forças conservadoras tanto na Europa, nos Estados Unidos, mesmo aqui no Brasil?

Realmente, é muito preocupante. Está abraçando quase todos os países da Europa. De formas diversas. Em alguns casos, é uma espécie de nacionalismo de direita, xenofóbico; em outros casos é diretamente fascista ou mesmo neonazista, como na Grécia. Mas é muito preocupante. Eles não são só conservadores, são racistas, são xenofóbicos, islamofóbicos, alguns são antissemitas. É um pessoal realmente muito preocupante. Em parte, tem a ver com a crise, mas não dá para explicar só pela crise. Países como a Áustria e a Suíça, em que há muito pouco desemprego, muito pouca crise, são países em que esses partidos racistas são mais de 20% dos votos. Enquanto na Espanha e em Portugal, que são países que estão no fundo da crise econômica e social, não há esse fenômeno. Então, a crise não explica tudo. É um defeito de alguns amigos meus marxistas, que acham que a economia explica tudo. Mas tem a ver com o passado colonialista da Europa, tem vários aspectos. É difícil explicar, mas é muito preocupante. Vocês aqui na América Latina têm muita sorte, porque apesar de tudo, isso tem pouco peso. Extrema direita, fascista existe, mas não é força política. As disputas políticas se dão entre esquerda e direita.

Porém, nós aqui na América Latina também temos os nossos governos que foram eleitos como governos de esquerda e populares e hoje são criticados por fazerem alianças com os neo-liberais. O que está acontecendo? Esses governos precisam dessas alianças? Como é que o senhor enxerga essas críticas?

Eu não acho que esse processo é inevitável.Eu acho que os governos de esquerda que foram eleitos podiam ter ido muito mais longe na realização de seu programa. Mesmo porque algumas experiências na América Latina foram bem mais longe do que o Brasil, do que o Chile. Mesmo a Bolívia, o Evo Morales foi muito mais longe no enfrentamento com as multinacionais, com as oligarquias, com o imperialismo do que o Brasil ou o Chile. Eu acho que a gente tem dois tipos de governo de esquerda na América Latina: uns que são antioligárquicos e anti-imperialistas, como é o caso da Venezuela e da Bolívia; e outros que dizem ser social-liberais. Ou seja, praticam uma política econômica ortodoxa, neoliberal; mas tem uma preocupação social com os pobres que a direita não tem. Então, faz uma diferença, mas não rompe com o modelo. Na Bolívia e na Venezuela houve um início de ruptura com o modelo neoliberal. Eu acho que essa política de fazer média com o sistema não é inevitável.

Eu citei o Thomas Picketty. O que o senhor acha dele?

Eu acho que o diagnóstico do Thomas Picketty sobre o capitalismo atual, como ele gera necessariamente desigualdades cada vez mais absurdas, é muito justo, é impecável. O problema é que as soluções que ele apresenta são falhas. São soluções que permitem que o sistema corrija poucos abusos, mas não muda a corrente.

Quais pensadores da América Latina, marxistas, que o senhor admira hoje ou que conhece?

Do passado, a figura que eu mais admiro é o José Carlos Mariátegui, que foi jornalista, escritor, filósofo, sociólogo. Porque para mim é o primeiro grande pensador marxista daqui. Ele é conhecido como autor de um livro sobre o Peru, Sete Ensaios Sobre a Realidade Peruana, mas eu acho que isso é uma visão muito limitada, ele tem uma obra muito mais rica, filosófica, inclusive. Para mim, ele é o equivalente latino-americano dos grandes pensadores marxistas do século 20, o jovem Lukáks, o jovem Gramsci, o jovem Walter Benjamin… Há semelhanças impressionantes entre o Mariátegui e escritos do Benjamin, nos anos 20. Eu acho que a gente tem que valorizar Mariátegui não só como um grande marxista, mas como alguém do mesmo porte dos grandes pensadores marxistas europeus da sua época.

E vivo, tem algum?

Eu vou falar dos meus amigos (risos). Roberto Schwarz é um dos maiores críticos literários, não só da América Latina, mas do mundo, marxista. E tem uma geração jovem que está aparecendo,gosto muito de uma moça brasileira, Isabel Loureiro, que acho que é uma das pessoas que procura retomar a tradição marxista. Eu acho que tem bastante gente. No Brasil, tem muita gente produzindo pensamento marxista, o Vladimir Safatle… O Brasil é um dos países do mundo onde há mais produção intelectual marxista.

Para encerrar, como foi a aproximação do senhor com o PSol?

Embora eu morasse na Europa, eu participei do processo de formação do PT, muito entusiasmado com o Lula, apostei, me identifiquei. Até o momento da eleição do Lula. O Lula estava fazendo muitas concessões e, rapidamente, eu tive a impressão que a política do governo não ia ser aquela do programa de governo. O programa do PT era anticapitalista, um governo socialista. E o que a gente vê logo no começo é fazer média com o liberalismo. Isso foi se agravando até chegar naquela infeliz história da reforma da Previdência e um pessoal da esquerda do PT não aceitou. Foram expulsos, fundaram o PSol e eu me identifiquei.

Aray Nabuco é jornalista.