Livro "Das Estrelas Móveis do Pensamento", sobre ética e verdade no mundo digital.
ESPECIAL, MUITO BOM DE LER, "DAS ESTRELAS MÓVEIS DO PENSAMENTO" Anelise Pacheco
Entrevista - Das estrelas móveis do pensamento
Com a entrada em cena das tecnociências, ocorreram significativas mudanças para o indivíduo e para a sociedade. Das estrelas móveis do pensamento: Ética e verdade em um mundo digital analisa as transformações nos valores humanos como o reforço do individualismo, o esvaziamento político, o reforço do materialismo consumista e de um sentimento de niilismo, entre outras conseqüências. Anelise Pacheco mostra que o futuro não é mais previsível para além de um curtíssimo prazo e a representação do passado foi encurtada significativamente. Seis meses atrás tornou-se antigamente. E um ano atrás, “era uma vez”. Este encurtamento do passado faz com que o tempo dobre sobre si mesmo e se segmente em minúsculos intervalos. Tudo se passa como se nossas vidas, nossas sociedades e nossas representações se instalassem sobre placas tectônicas em perpétuo movimento. O real muda de maneira tão rápida que nos parece inatingível. O presente nos escorre pelos dedos antes mesmo de termos tido tempo de compreendê-lo. O saber, complexificado, flutua incessantemente. E os novos ritmos de informatização do mundo nos ajudam a perceber metaforicamente a natureza da vertigem.
De que trata seu livro?
Na verdade, o livro surgiu como desdobramento da minha dissertação de mestrado, que mais tarde acabou me levando ao doutorado, onde eu trabalhei um conceito de Nietzsche com o qual me identificava fortemente: a transvaloração de valores.
Como assim?
Ele acaba com todo a dicotomia no final do século XIX, derruba o maniqueísmo e arrebenta com a metafísica, que era a tentativa de se ter um ente abstrato capaz de explicar o mundo. Primeiro Nietzsche estoura com todos os valores e positiva a vida para além dos valores cristãos de bem e mal. Esse foi o mote para eu trabalhar todo o conceito dionisíaco que ele desenvolve (que é muito forte em toda a sua obra), associando-o ao conceito de trágico. Eu atravesso a obra dele por meio desses conceitos, entendendo como positivar a vida no momento em que todos os valores caíram por terra e em que atravessamos uma crise do sentido, o que é muito pertinente nesta virada de século. O sujeito enquanto unidade já estava em crise, a questão da verdade, as ideologias, as utopias, tudo estraçalhado com essa elaboração de novos conceitos que, para mim, foi detonada no início do século com Nietzsche, e passou um período de maturação que chegou a termo no início do século XXI.
Falando do tempo atual, qual foi a motivação do seu trabalho para refletir sobre as questões levantadas por Nietzsche e outros pensadores? O que desencadeou esta crise do sentido?
Eu questiono como é que, no atual estado de coisas, essa nova forma de comunicação a exemplo da Internet, trazendo a reboque a globalização (faço um agenciamento no capítulo em que trato do mercado e das novas tecnologias, analisando como é que se deu essa ressonância, já que a internet foi possibilitada pelo investimento em novas tecnologias), alterou as mídias antigas como o rádio e a televisão. De que forma essa revolução tecnológica modificou o comportamento e a expressão das pessoas, os valores, a cultura? De que forma ela foi apropriada pelo mercado? Com essas questões, procuro a saída para a arte, a cultura, a filosofia e, indo mais além, a saída para o modo de ser e viver do ser humano.
Antes de ressaltar as saídas encontradas por você, como fica a ética nesse quadro?
É essa a razão do título do livro — Das estrelas móveis do pensamento: Ética e verdade em um mundo digital. Faço um contraponto às estrelas fixas do pensamento de Descartes, que acreditava em um sujeito ancorado em uma verdade encarada como idéia universal, intocável, sagrada e unívoca. O fato é que hoje há várias verdades, meias verdades e a verdade relativa. Vários matemáticos trabalham com a idéia de que a verdade é falsificada por hipótese. Então como é que fica essa questão da verdade? Ela pode ser observada na contemporaneidade no episódio que abordo no livro, em que um artigo da jornalista Mary Schmich, do jornal Chicago Tribune, foi amplamente divulgado na grande rede por um desconhecido como sendo um discurso de formatura atribuído ao escritor norte-americano Kurt Vonnegut. O fato se proliferou com uma velocidade absurda, o desconhecido nunca foi descoberto e as pessoas não se indignaram ao saber que o discurso não era de Vonnegut. Isso passou a ter um estatuto de verdade nos dias de hoje: um fato compartilhado por um grande número de pessoas.
Quer dizer que a verdade hoje em dia passou a ser uma questão contingencial? Ela passa a ser balizada pelo número de pessoas que acreditam nela?
Atualmente quanto maior a rede, maior a sustentabilidade da verdade, do valor relativo da verdade. Trabalho isso, numa parte mais teórica da tese, onde analiso a saturação do cartesianismo a partir de vários filósofos como Baudrillard e o pragmático Richard Rorty. Também abordo a questão através do valor que a verdade tinha para os autores de grandes conquistas da física, como Kepler, Newton e Einstein. Nesse ponto chego a brincar como uma frase de Einstein, que diz que “Deus não joga dados", e eu digo "a natureza joga dados e os dados são viciados". O que os cientistas de hoje querem saber é segundo quais regras esses dados são viciados, o que se reflete nos sistemas abertos contemporâneos em que a Ciência age como muito há para se descobrir ainda.