Entrevista de Ignacio Romanet com Noam Chomsky, 2ª Parte
IR: No dia 17 de dezembro passado, os presidentes Barack Obama e Raúl Castro fizeram uma declaração, cada um por sua parte, em que anunciavam a normalização das relações entre Cuba e EUA. O presidente Obama reconheceu, nesta declaração, que cinquenta anos de política estadunidense, com pressões e bloqueio econômico incluídos, não produziram nenhum resultado, e que se deveria mudar de política. O que você pensa desta normalização entre Cuba e EUA? Como você vê a evolução das relações entre Havana e Washington e a sua influência para o conjunto da América Latina?
NC: Uma pequena correção: não se trata de “normalização”. É primeiramente um passo na direção do que poderia ser uma normalização. Ou seja, o embargo, as restrições, as proibições de se viajar livremente de um país ao outro não desapareceram... Porém, constituem-se num passo em direção à normalização, e é sumamente importante verificarmos qual a análise atual da retórica de Obama e da sua manifestação. O que ele quer dizer é que cinquenta anos de esforços “para levar a democracia, a liberdade e os direitos humanos a Cuba” foram um fracasso. E que outros países desgraçadamente não apoiaram os nossos esforços, de tal modo que temos que encontrar outras formas de continuar com a nossa dedicação quanto à imposição da democracia, da liberdade e dos direitos humanos que dominam nossas políticas benignas para o mundo. Trocando em miúdos, isso é o que ele diz. Aqueles que tiverem lido George Orwell sabem que quando um governante diz alguma coisa, temos que traduzi-la numa linguagem mais clara. O que Obama diz significa o seguinte: durante cinquenta anos temos nos valido de um terrorismo em larga escala, de uma luta econômica sem piedade que deixou os EUA totalmente isolado; não conseguimos derrotar o governo cubano nesses cinquenta anos. Dessa maneira, que tal optarmos por outra solução? Essa é a tradução do discurso. É o que realmente se quer dizer ou o que se pode dizer, tanto em espanhol quanto em inglês.
E vale a pena recordar que a maioria destas questões são suprimidas em debates nos EUA assim como na Europa. Os norte-americanos efetivamente desencadearam uma grave campanha terrorista contra Cuba sob a presidência de John Kennedy; o terrorismo era extremo naquele momento. Às vezes há debates sobre as tentativas de assassinato de Fidel Castro, se houve ataques a instalações petroquímicas, bombardeios de hotéis – onde se sabia que havia russos alojados – se mataram gado, etc. Isto é, uma campanha muito grande e que durou vários anos.
E tem mais. Depois que os EUA terminaram com suas ações terroristas diretas, surgiu o terrorismo de apoio, baseado em Miami, por volta de 1990. Além disso, a guerra econômica, que fora iniciada por Eisenhower, tomou realmente um impulso maior durante a era Kennedy e se intensificou depois. O pretexto da guerra econômica não era “estabelecer a democracia” e nem “a introdução dos direitos humanos”, porém castigar Cuba por ter se tornado um apêndice do grande Satã que era a União Soviética. E dessa forma “teríamos que nos proteger”, como “teríamos que nos proteger” da Nicarágua e de outros países.
Quando houve o colapso da União Soviética, o que aconteceu com o embargo? O bloqueio se agravou. E mais, Clinton ganhou a partida contra George Bush (pai) para estender o bloqueio. E Clinton o tornou muito mais forte. Algo raro da parte de um senador liberal por Nova Jersey. E mais tarde, pior ainda, intensificaram-se os esforços no sentido de estrangular e destruir a economia cubana. E tudo isso, obviamente, não tinha nada a ver com a democracia ou com os direitos humanos. Nem que fosse uma piada. Basta a constatação com os registros norte-americanos de apoio a ditaduras violentas e terroristas na América Latina. Não somente as apoiaram como as impuseram. Como no caso da Argentina, onde foi mais forte o apoio dos EUA. Quando o governo da Guatemala esteve cometendo um verdadeiro genocídio de seu povo, Reagan quis apoiá-lo. Mas o Congresso havia fixado certos limites. Então Reagan propôs: que tal se fizermos isso na Argentina... e transformarmos os militares argentinos em neonazistas para fazerem o que queremos? Desgraçadamente, a Argentina depois transformou-se numa democracia e aí os EUA perderam o apoio que tinham. Recorreram então a Israel para prosseguir com o treinamento dos exércitos de terrorismo na Guatemala. Foi quando, a partir do início dos anos 1960, houve uma tremenda onda de repressão em toda a América Latina, no Brasil, Uruguai, Chile, Argentina, alcançando até a América Central. Os EUA tiveram participação direta em todas essas ações. E antes delas também. E continuam tendo hoje.
Por exemplo, Obama foi o único líder que apoiou, em 2009, o golpe de estado em Honduras, que derrubou o governo constitucional (de Manuel Zelaya) e que implantou uma ditadura militar reconhecida pelos EUA. O que equivale a dizer, podemos deixar de lado a conversação sobre a democracia e os direitos humanos. Isso não tem nada a ver. Na verdade o esforço era para destruir o governo. E sabemos por que. Uma das coisas boas dos EUA é que é uma sociedade livre, com muitos registros de deliberações internas que têm sido divulgados. De modo que se pode saber exatamente o que aconteceu.
IR: Em 1999, com o aparecimento de Hugo Chávez na Venezuela, uma série de países adotaram programas anti-neoliberais, enquanto vários governos progressistas começaram a aparecer na América Latina. Primeiro no Brasil, com Lula, depois da Venezuela; em seguida na Bolívia, com Evo Morales; depois no Equador, com Rafael Correa; depois na Argentina, com Nestor Kirchner; em seguida no Uruguai, com Tabaré Vasquez e Pepe Mujica. Isso se estendeu pela América Latina. E efetivamente, como você acaba de dizer, a América Latina fugiu um pouco das mãos dos EUA. Em primeiro lugar, gostaria de perguntar-lhe: qual a sua opinião sobre esses governos progressistas da América Latina?
NC: Bem, tratam-se de acontecimentos da maior importância nesta parte do mundo. O que você acaba de dizer é de relevância realmente histórica, quando consideramos a América Latina. Basicamente durante 500 anos a América Latina esteve sob o controle de poderes imperialistas ocidentais, sobretudo dos EUA, tendo havido outros anteriormente... Na América Latina, as populações nativas, constituídas de pessoas muito pobres, estiveram sob o controle de uma pequena elite branca ou quase branca, muito rica. Essas elites eram alheias em relação aos seus próprios países. Exportavam capital para a Europa, por exemplo, e enviavam seus filhos para os EUA. Não se importavam com seus próprios países. E era muito limitada a interação entre os países da América Latina. E as elites nesses países tinham uma forte marca ocidental, além de ideias imperialistas. Apesar de algumas diferenças, esta era a situação típica. E, de uma forma ou de outra, isso vem acontecendo há 500 anos.
Porém, a partir de 1999 esta situação começa a se alterar. Você se refere a uma mudança muito significativa, um ponto de importância histórica. E os EUA, apesar de ser a potência mais poderosa em todo o mundo, já não têm o poder esmagador de destruir governos e impor ditaduras militares onde for de sua vontade. Se considerarmos, por exemplo, os últimos quinze anos... Tem havido alguns golpes de estado, como a tentativa de golpe na Venezuela, em 2002. Que funcionou durante dois dias e nada mais. Houve pleno apoio dos EUA, mas eles não tiveram o poder de impor um novo governo. Houve outro golpe de estado, esse no Haiti, em 2004. Nesse caso... os torturadores do Haiti, França e EUA, combinaram o sequestro do presidente Aristide para confina-lo no centro da África, onde deveria permanecer oculto para que não pudesse participar nem mesmo das eleições. Bem, neste caso houve êxito, mas o Haiti é um país muito fraco. Outro caso verificou-se em Honduras, em 2009. Aí já com Obama. Os militares hondurenhos derrubaram o governo constitucional. Resultando daí uma “desculpa democrática” para que Washington não condenasse o fato como um golpe militar... Porém, a consequência foi que os EUA acharam-se isolados nessa posição de apoio a um golpe militar exitoso. E agora Honduras é um desastre completo como país. Tem o pior registro em matéria de direitos humanos. E se considerarmos a emigração para os EUA, tema de importância significativa, a maioria dos emigrantes provém de Honduras, porque este país foi destruído pelo golpe que Washington apoiou.
Existem, portanto, certos casos exitosos, se quisermos considerar dessa forma, mas não como no passado, não como antigamente. A América Latina agora conseguiu dar um passo adiante, no sentido de lograr certo grau de independência. É o caminho mais acertado. Bem, hoje existem diferentes órgãos que representam passos importantes em direção à integração, como a UNASUL, o MERCOSUL e a CELAC (Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos). A CELAC é inteiramente inovadora porque os EUA e o Canadá foram excluídos... e, bem, isto ninguém poderia ter imaginado. Era algo inconcebível anos atrás.
Isso tudo tem reflexos distintos. Recentemente houve um estudo que poderíamos chamar de “a pior tortura do mundo”: uma pessoa é presa e enviada à pior ditadura militar, a mais cruel, para ser torturada no sentido de se obter certa informação. Esta é a pior forma de tortura. Os EUA vêm fazendo isso há anos e anos. Foi feita uma pesquisa para se saber que países cooperavam. Certamente foram apontados os países do Oriente Médio, capazes de levar a cabo essa tortura. O que se conseguiu com Bashar El Assad, na Síria; com Mubarak, no Egito; e, bem, com Gadafi, na Líbia. Só isso? Não, a maioria dos países europeus também participou, como Inglaterra, Suécia, França, todos eles...
Contudo, houve uma região do mundo em que nenhum país tomou parte: a América Latina. E isto é realmente inovador, interessantíssimo. A América Latina era um centro global de tortura, quando esteve sob o comando dos EUA. Agora seus países se negam a participar deste jogo terrível, deste tipo de tortura implementado pelos EUA. Esta é uma mudança muito significativa, um sinal realmente muito inovador. Houve alguns êxitos parciais na América Latina, que tem liderado a resistência ao que podemos chamar de projeto neoliberal. Assim como outros êxitos, embora haja ainda muito caminho a ser percorrido.