Uma cidade busca cidadania (Aguas lindas)
UMA CIDADE BUSCA CIDADANIA
Emancipada em 1995, Águas Lindas de Goiás é uma cidade em busca de sua cidadania, como revela nesta entrevista exclusiva a Jenipapo
Thiago Baracho
Editoração: Lunde Braghini
Se você mora em Brasília provavelmente já deve tê-la visto ela nas páginas marrons da imprensa local. Ou ouviu falar dela em bate-papos com os porteiros ou outros empregados que a conhecem bem. Mas é provável que não a conheça pessoalmente. Fato é que Águas Lindas (A.L.) está no raio de influência da capital federal, mas muitos não a conhecem. Na primeira entrevista que concede, provavelmente, Águas Lindas de Goiás abre a mente e o coração para Jenipapo.
Jenipapo – Fale um pouco de sua história para a gente. Você é filha de quem?
A.L. – Olha, quando era pequenininha eu era Parque da Barragem, e me considerava filha de Santo Antônio do Descoberto. Só mais tarde fui me dando conta de que era filha de uma mistura entre a especulação imobiliária e a migração torrencial para Capital Federal. Meus loteamentos, logo que a primeira rede elétrica chegou, despertaram o interesse da população que já não conseguia pagar o aluguel de um imóvel nas cidades satélites e no entorno de Brasília. Hoje me chamam de Águas Lindas de Goiás, nome que ganhei por causa das belas nascentes que possuía, menina, infelizmente pouco conservadas.
Jenipapo – Como foram os primeiros anos de vida?
A.L. – Bom, como lhe disse, existo bem antes de ganhar este nome de batismo. Meu embrião foi o Parque da Barragem, uma grande porção de terra dividida em cinco grandes fazendas e outras menores que iniciaram a minha gestação. As primeiras famílias se aglutinaram nas proximidades da BR 070 (minha artéria principal). Havia no Parque da Barragem os pioneiros, aqueles que chegaram antes de ter luz elétrica, água encanada ou quaisquer infraestruturas, antes de se formarem meus primeiros órgãos (bairros). Uma das pessoas que me viram nascer é o mestre Ednaldo. Ele presenciou toda minha caminhada até aqui e pode falar melhor sobre meus primórdios. Vocês deviam conversar com ele.
Jenipapo – Com certeza, vamos procura-lo. É uma figura superimportante na sua história, segundo apuramos. Mas quando você deixou de ser Parque da Barragem e virou “Águas Lindas”?
A.L. – Olhe, em 1995, líderes comunitários e políticos da região colheram assinaturas dos moradores para um abaixo-assinado que culminou em um plebiscito para o desmembramento do Parque da Barragem do município Santo Antônio do Descoberto, com 92% da população apoiando. E assim fui batizada como Águas Lindas de Goiás, por conta de uma nascente situada nas imediações do Bairro Camping Clube.
Jenipapo – Sem Santo Antônio no pedaço, quem passou a cuidar de você?
A.L. – Bem, eu era pequenininha, ainda engatinhava, precisava mesmo de alguém que suprisse necessidades como saneamento básico, por exemplo. Assim, um ano depois da emancipação, tive minhas primeiras eleições para formar a prefeitura municipal, quando 6.127 eleitores (IBGE, 1996) tiveram a oportunidade de irem às urnas. Elegeram para prefeito o corretor Ordalino Garcia Melo (PMDB) para ser meu primeiro “pai”, senão tutor. Sabe, em parte, ele foi responsável pelo meu crescimento desgovernado. Valendo-se da especulação imobiliária em todo Distrito Federal, adquiriu patrimônio incompatível com o cargo, através da venda de lotes sem escritura e regulamentação.
Jenipapo – Você guarda muitas mágoas de seus tutores, pelo jeito.
A.L. – Também, pudera, trago muitas marcas do descaso deles! Pra você ver, eu nem tinha cinco anos e José Zito Gonçalves de Siqueira (PSDB), eleito em 2000, foi incumbido da tarefa de cuidar da minha “primeira infância”. Contudo teve o seu governo marcado por escândalos de corrupção, irregularidades fiscais e administrativas. Ele foi afastado e cassado. Em seu lugar, a Justiça Federal nomeou como interventor Cesar Gomes da Silva que teve seus bens bloqueados. A indisponibilidade dos bens de Cesar Gomes foi garantida na Justiça pela Advocacia-Geral da União (AGU), por não comprovar a aplicação de R$ 405.678,00 repassados pelo Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE).
Jenipapo – Você já estudava?
A.L. – Na virada do século XXI eu tinha cinco anos, já andava com as próprias pernas. Mas não podia desenvolveu meu potencial escolar muito bem. Já tinha 26.388 domicílios e uma população estimada em 116.122 habitantes, o que dá uma média de quatro pessoas por domicilio. Nessa época, 50 mil pessoas estavam na idade escolar de 9 a 19 anos, mesmo assim, havia apenas 525 profissionais na área da educação e 37 estabelecimentos de ensino (Dados Portal Sepin).
Jenipapo – Você teve problemas de saúde também, não é?
A.L. – Podia não ter tido, mas tive. Na pré-adolescência veio minha terceira eleição municipal, elegeram como meu responsável o prefeito José Pereira Soares (DEM) com 14.278 votos. Mesmo com uma população de 149.598 habitantes apenas 47.888 eleitores votavam na cidade. Isso porque muitos moradores abdicaram do direito de transferir seus títulos e escolher os governantes do município para manter o titulo de eleitor do Distrito Federal, na expectativa de ganhar lotes ou outros benefícios oferecidos pelo governo brasiliense da época.
Esse Pereira deixou um hospital inacabado e embargado. Com 16 milhões de reais investidos, sendo que 8.273.379, 77 milhões ninguém sabe como foram gastos e eu sofro por ainda não ter um serviço de saúde que atenda minhas demandas. O descaso dos governantes prejudicou meu crescimento sadio, me deixou com sérios problemas nutricionais, inclusive de Educação, Lazer, Saúde e Segurança. Soma-se ainda a herança deixada pela sensação de impunidade que imperava nos meus primórdios, o crescimento rápido e desordenado. O resultado foi uma “cidade adolescente” violenta.
Jenipapo – Violenta como?
A.L. – Esses ingredientes ajudaram a elevar minhas taxas de homicídio e outras formas de brutalidades. Estava me tornando uma das cidades mais perigosas para se viver no entorno de Brasília. Isso me fez entrar, em 2004, no Top 10 das cidades mais violentas do Brasil (segundo dados da Secretaria Nacional de Segurança Pública), coisa de que não me orgulho.
Jenipapo – Mas o pessoal não se afastou de você. AL ficou famosa na América Latina. Por que isso aconteceu?
A.L. – É que mesmo com todos os problemas que enfrentava durante 10 anos (1996 a 2006) a migração para Águas Lindas chamou a atenção como o maior crescimento populacional da America Latina. Passando de pouco mais de 6.127 pessoas para 168.919 habitantes (dados IBGE). Durante essa fase de minha adolescência, Geraldo Messias (PP) teve atuação discreta na minha vida. Salvo por obras raras de infraestruturas e incentivos para entrada dos programas de educação superior profissionalizante sua passagem não empolgou. Em 2013, se inicia a trajetória do atual prefeito, Osmarildo Alves de Sousa (PTB), o Hildo do Candango. Nesses dois anos vem seguindo os passos de seu antecessor e ainda não me despertou maiores sentimentos.
Jenipapo – E como vão as coisas com AL? Como é seu relacionamento com o DF?
A.L. – Olhe, você tem que ver que eu cresci, fiquei forte. Já sou a quinta maior do estado, contando com Goiânia. Eu ajudo o Distrito Federal (meu “irmão mais velho”), nos serviços braçais. Diariamente cerca de 100 mil pessoas enfrentam no mínimo 50 quilômetros ou uma hora de viagem até a capital brasileira. Muitos trabalham no segmento de serviços pessoais (hotelaria, restaurantes/bares, cabeleireiros, domésticos). Brasília utiliza minha mão de obra e paga bem. Com salários acima da média nacional, os comerciantes notaram que sou atraente e uma oportunidade imperdível.
Jenipapo – Os empresários já estão de olho em você faz tempo. Você se envaidece esse assédio?
A.L. – Todas as grandes lojas populares de Ceilândia, Taguatinga e Brasília já têm suas filiais aqui, mais concentradas no bairro Jardim Brasília. Outro exemplo foi a construção do Shopping de Águas Lindas, que atende mais de 800 mil pessoas. A empresa responsável pelas obras, Terral Shopping Centers, informou um investimento de 30 milhões de reais. Mais de 1.500 empregos diretos e 4.500 indiretos. É claro que isso me deixa orgulhosa. Mas é uma pena que o lazer ainda seja fornecido exclusivamente pelo poder econômico e não por políticas públicas.
Jenipapo – Por que você diz que são poucas as iniciativas do governo municipal e estadual para melhorar seus serviços?
A.L. – Ora, o fato é que mais de 200 mil pessoas utilizam meus espaços públicos e geram uma demanda por serviços básicos como lazer, segurança, educação, saúde e transporte público. Ainda há pontos críticos na minha urbanização, faltam semáforos e barreiras eletrônicas para dar mais segurança aos motoristas e pedestres.
Jenipapo – Quais seus planos para o futuro?
A.L. – Olhe, sonho fazer vestibular, sonho voar, sonho dar um jeito no lixo. Sei lá, tanta coisa. Um aterro sanitário, um campus universitário da UEG, a instalação de um novo sistema de transporte público o VLP (Veículo Leve Sobre Pneus), e quem sabe com a criação do meu aeroporto não chegue até mim mais desenvolvimento. Um aeroporto de médio porte aqui ajudaria a desafogar o aeroporto internacional de Brasília.
Box 1:
Mestre Ednaldo, pioneiro, bom de bonecos e bom de gente
A primeira escola de Águas Lindas foi criada no Ninho dos Artistas, idealizado por Ednaldo Paulo Azevedo. O que inicialmente era para ser uma comunidade alternativa de artistas plásticos e artesãos com sede em Brasília, acabou instalado no Parque da Barragem, em 1979, por falta de recursos.
Ednaldo é um pioneiro do município, sua contribuição vai além de apenas “fonte viva” e fidedigna dos eventos ocorridos ali. Sua instituição cultural é uma das poucas iniciativas concreta e gratuita de manifestação cultural e cidadania em Águas Lindas de Goiás. A produção de artesanato em cerâmicas, madeiras e barro é vendida na feira da Torre de televisão em Brasília na banca 313/316.
É também criação de Ednaldo a primeira festa tradicional e cultural de Águas Lindas: a Festa Latina de Bonequeiros Brincantes. A folia propõe um intercâmbio cultural trazendo artistas de todo Brasil e da América Latina. A iniciativa foi elogiada pelo então Ministro da Cultura Gilberto Gil, que ressaltou em audiência pública a importância desta manifestação que divulga e exalta o teatro de bonecos.
​O Parque da Barragem era um ótimo destino para quem tinha pouca renda e chegava de todas as partes do Brasil para Brasília. “Quando chegou a primeira rede elétrica para cá, desse dia em diante os caminhões de mudanças chegavam um atrás do outro. Pois agora tinha energia elétrica e havia possibilidade de puxar água de poços artesianos”, explica.
“Em 1979 os lotes eram muito baratos. Como não tinha nada aqui um lote era trocado por qualquer coisa, como relógio de pulso ou rádio de pilha. Um amigo trocou um lote perto de onde hoje é a prefeitura por um relógio do Paraguai e depois trocou o relógio por uma espingarda. Pra você ver como era o preço dos lotes”, conta, com bom humor.
Mestre Ednaldo recebeu uma comenda do governador de Goiás, Marconi Perillo, pelos relevantes serviços prestados à comunidade águas lindense.
Box 2
Curiosidades
Fundação: 27 de dezembro de 1995.
Gentílico: águas lindense.
Área territorial: 191, 198 Km² (IBGE 2002). Faz divisa com Cocalzinho de Goiás, Santo Antônio do Descoberto, Padre Bernardo e o Distrito Federal. Está a 50 km de Brasília e a 190 km da capital goiana.
BR 070: rodovia federal radial que começa em Brasília/DF, e tem como ponto final Porto Corixó, fronteira com a Bolívia no Município de Cáceres/MT.
Explosão Populacional: Durante 10 anos de 1996 a 2006 a migração para Águas Lindas chamou a atenção como o maior crescimento populacional da America Latina. Passando de pouco mais de 6.127 pessoas para 168.919 habitantes (dados IBGE).