Fortuna de super-ricos é 'incontrolável', diz pesquisador
Ruth Costas Da BBC Brasil em São Paulo
7 novembro 2014
O pesquisador Antonio David Cattani, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com formação na Paris-Sorbonne, diz ter escolhido um caminho diferente de 99% de seus colegas.
Enquanto a maioria dos cientistas sociais se debruçam sobre questões relativas a pobreza e a miséria, Cattani resolveu desbravar o outro lado da problemática da desigualdade social - a extrema riqueza, ou os super-ricos.
A escolha já foi mais difícil de ser justificada. Desde que o francês Thomas Piketty tornou-se um best-seller com a tese de que o capitalismo está concentrando renda em vários países, o que ocorre no topo da pirâmide social global tem ganhado um pouco mais de espaço nos debates de economistas e sociólogos - ao menos no exterior.
Para Cattani, no Brasil a situação é um pouco diferente da de outros países, porque aqui ao menos se avançou no combate à pobreza. "Mas só isso não basta. Precisamos reduzir a distância entre ricos e pobres para termos uma sociedade equilibrada, com qualidade de vida e sem violência", defende.
Em A Riqueza Desmistificada (ed. Marcavisual) - livro escrito durante um ano de estudos na Universidade de Oxford, no Reino Unido - o pesquisador defende que a extrema riqueza precisa deixar de ser um "tabu" para que possamos entender o papel dos multimilionários na economia, na política e na sociedade brasileira. Confira abaixo a entrevista concedida por Cattani à BBC Brasil:
BBC BRASIL: O que o caso Eike Batista diz sobre o modo como encaramos a riqueza em nossa sociedade?
Cattani - Eike teve uma ascenção meteórica que envolveu o uso de recursos públicos e, aparentemente, também informação previlegiada. Mas havia um certo deslumbramento da opinião pública por ele. No auge de sua carreira, centenas de pessoas pareciam dispostas a pagar US$ 1.000 ou US$ 2.000 para ouvir uma palestra sua. E não havia qualquer questionamento sobre a forma como seu império foi construído - um gigante com os pés de barro.
De certa forma isso ocorreu porque há um fascínio em torno da riqueza, um deslumbre. Os grandes empresários, executivos, e ricos de uma maneira geral são tratados como superiores.
É natural que a riqueza seja vista como algo positivo, que todos almejam. Isso é até legítimo. Mas esse deslumbramento tem impedido uma análise mais rigorosa sobre como algumas dessas fortunas são construídas - o que pode envolver processos abusivos e predatórios, monopólios, vantagens junto ao poder público e outros subterfúgios, como no caso de Eike.
Leia mais: Brasil é 10º país com maior número de multimilionários, diz estudo
BBC BRASIL: Por que o sr. escolheu estudar os ricos?
Cattani - Cerca de 99% dos estudos na área de ciências sociais se debruçam sobre os pobres, a classe média e a classe trabalhadora. Poucos estudam os ricos. Mas em um dos países mais desiguais do mundo o estudo da riqueza é crucial. É o topo da pirâmide social que controla os meios de comunicação, as grandes empresas, os negócios e processos políticos e eleitorais, tomando decisões que afetam todo o resto da população. Ou seja, os ricos e super-ricos ajudam a influenciar processos que determinam a estrutura da sociedade.
Os pobres são milhões mas têm um poder mais limitado, não estão organizados, estão sob a influência dos meios de comunicações. Às vezes, meia dúzia de megaempresários influencia decisões econômicas que alteram a vida de todos.
O financiamento das empresas às campanhas políticas, por exemplo, me parece inconveniente. Por que elas dão milhões para esse ou aquele candidato? De alguma forma, querem retorno - e isso não ajuda a melhorar a qualidade de nossa democracia.
Antonio David Cattani, da UFRGS
Alguns dados apontam que 1% da população controla de 17% a 20% de toda riqueza nacional. E os ricos, como os pobres, não são autorreferentes ou autoexplicativos. Ou seja, a riqueza ajuda a explicar a pobreza - e vice-versa. Por isso, temos de entender como se estrutura essa sociedade de alto a baixo. Não que os estudos sobre os pobres não sejam importantes, mas eles precisam ser complementados com análises de economistas e sociólogos sobre o topo da pirâmide - e sobre de que forma esse topo está acumulando sua fortuna.
BBC BRASIL: Por que é tão difícil estudar o topo da pirâmide social?
Cattani - A riqueza é tratada em nossa sociedade como um objeto de veneração, um totem, algo superior que precisa ser respeitado. É um tema proibido.
Além dessa dimensão ideológica, há as dificuldades práticas. Os pobres são acessíveis. Os pesquisadores podem entrar em suas casas e fazer as perguntas mais inconvenientes sobre todos os aspectos de suas vidas. Eles respondem porque esperam que isso possa ajudá-los a melhorar a sua situação.
Já os multimilionários não respondem às pesquisas porque não têm interesse em informar sobre a origem e a exata dimensão de sua riqueza. Não querem que ninguém vá bisbilhotar seu patrimônio. E o resultado é que os dados estatísticos sobre eles são extremamente fracos. Não dá para confiar apenas na declaração de imposto de renda - até porque poucos ricos são assalariados. E é difícil obter dados sobre o patrimônio. Muitos multimilionários mantêm parte de sua riqueza no exterior - têm imóveis em Paris, Londres ou Miami e escondem fortunas em paraísos fiscais.
Para completar, eles são protegidos por mecanismos legais e jurídicos, como o sigilo bancário e de declaração do imposto de renda.
BBC BRASIL: Piketty tenta há alguns anos estudar o Brasil, mas um de seus colaboradores relatou a BBC Brasil ter dificuldade em acessar dados da Receita Federal...
Cattani - Acho que no Brasil há regras específicas que garantem o sigilo desses dados e pouca colaboração das autoridades.
Leia mais: Crítico sensação do capitalismo quer estudar o Brasil, mas Receita não libera dados
BBC BRASIL: Quem são esses ricos?
Cattani - É difícil quantificar isso. No Brasil, em geral as pesquisas demográficas e sociais estabelecem um patamar de renda de R$ 6 mil, às vezes R$ 10 mil por mês - elas dizem: todo mundo que está acima disso é rico, é classe A. Mas precisamos estabelecer melhor as diferenças dentro desse grupo. Quem ganha R$ 6 mil por mês pode ter um bom padrão de vida, mas seu poder e o impacto na sociedade é muito diferente do que quem ganha centenas de milhares de reais.
A partir de um certo patamar, o indivíduo em questão dispõe de uma corte de serviçais, assessores tributaristas e advogados para ajudar a multiplicar sua fortuna, assessores de marketing pessoal e institucional. Faz parte do topo da pirâmide que verdadeiramente tem poder. No caso dos super-ricos eu trabalho com um percentual de 0,1% da população adulta, por exemplo.
O pesquisador Antonio David Cattani, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) com formação na Paris-Sorbonne, diz ter escolhido um caminho diferente de 99% de seus colegas.
Enquanto a maioria dos cientistas sociais se debruçam sobre questões relativas a pobreza e a miséria, Cattani resolveu desbravar o outro lado da problemática da desigualdade social - a extrema riqueza, ou os super-ricos.
A escolha já foi mais difícil de ser justificada. Desde que o francês Thomas Piketty tornou-se um best-seller com a tese de que o capitalismo está concentrando renda em vários países, o que ocorre no topo da pirâmide social global tem ganhado um pouco mais de espaço nos debates de economistas e sociólogos - ao menos no exterior.
Para Cattani, no Brasil a situação é um pouco diferente da de outros países, porque aqui ao menos se avançou no combate à pobreza. "Mas só isso não basta. Precisamos reduzir a distância entre ricos e pobres para termos uma sociedade equilibrada, com qualidade de vida e sem violência", defende.
Em A Riqueza Desmistificada (ed. Marcavisual) - livro escrito durante um ano de estudos na Universidade de Oxford, no Reino Unido - o pesquisador defende que a extrema riqueza precisa deixar de ser um "tabu" para que possamos entender o papel dos multimilionários na economia, na política e na sociedade brasileira. Confira abaixo a entrevista concedida por Cattani à BBC Brasil:
BBC BRASIL: O que o caso Eike Batista diz sobre o modo como encaramos a riqueza em nossa sociedade?
Cattani - Eike teve uma ascenção meteórica que envolveu o uso de recursos públicos e, aparentemente, também informação previlegiada. Mas havia um certo deslumbramento da opinião pública por ele. No auge de sua carreira, centenas de pessoas pareciam dispostas a pagar US$ 1.000 ou US$ 2.000 para ouvir uma palestra sua. E não havia qualquer questionamento sobre a forma como seu império foi construído - um gigante com os pés de barro.
De certa forma isso ocorreu porque há um fascínio em torno da riqueza, um deslumbre. Os grandes empresários, executivos, e ricos de uma maneira geral são tratados como superiores.
É natural que a riqueza seja vista como algo positivo, que todos almejam. Isso é até legítimo. Mas esse deslumbramento tem impedido uma análise mais rigorosa sobre como algumas dessas fortunas são construídas - o que pode envolver processos abusivos e predatórios, monopólios, vantagens junto ao poder público e outros subterfúgios, como no caso de Eike.
Leia mais: Brasil é 10º país com maior número de multimilionários, diz estudo
BBC BRASIL: Por que o sr. escolheu estudar os ricos?
Cattani - Cerca de 99% dos estudos na área de ciências sociais se debruçam sobre os pobres, a classe média e a classe trabalhadora. Poucos estudam os ricos. Mas em um dos países mais desiguais do mundo o estudo da riqueza é crucial. É o topo da pirâmide social que controla os meios de comunicação, as grandes empresas, os negócios e processos políticos e eleitorais, tomando decisões que afetam todo o resto da população. Ou seja, os ricos e super-ricos ajudam a influenciar processos que determinam a estrutura da sociedade.
Os pobres são milhões mas têm um poder mais limitado, não estão organizados, estão sob a influência dos meios de comunicações. Às vezes, meia dúzia de megaempresários influencia decisões econômicas que alteram a vida de todos.
O financiamento das empresas às campanhas políticas, por exemplo, me parece inconveniente. Por que elas dão milhões para esse ou aquele candidato? De alguma forma, querem retorno - e isso não ajuda a melhorar a qualidade de nossa democracia.
Antonio David Cattani, da UFRGS
Alguns dados apontam que 1% da população controla de 17% a 20% de toda riqueza nacional. E os ricos, como os pobres, não são autorreferentes ou autoexplicativos. Ou seja, a riqueza ajuda a explicar a pobreza - e vice-versa. Por isso, temos de entender como se estrutura essa sociedade de alto a baixo. Não que os estudos sobre os pobres não sejam importantes, mas eles precisam ser complementados com análises de economistas e sociólogos sobre o topo da pirâmide - e sobre de que forma esse topo está acumulando sua fortuna.
BBC BRASIL: Por que é tão difícil estudar o topo da pirâmide social?
Cattani - A riqueza é tratada em nossa sociedade como um objeto de veneração, um totem, algo superior que precisa ser respeitado. É um tema proibido.
Além dessa dimensão ideológica, há as dificuldades práticas. Os pobres são acessíveis. Os pesquisadores podem entrar em suas casas e fazer as perguntas mais inconvenientes sobre todos os aspectos de suas vidas. Eles respondem porque esperam que isso possa ajudá-los a melhorar a sua situação.
Já os multimilionários não respondem às pesquisas porque não têm interesse em informar sobre a origem e a exata dimensão de sua riqueza. Não querem que ninguém vá bisbilhotar seu patrimônio. E o resultado é que os dados estatísticos sobre eles são extremamente fracos. Não dá para confiar apenas na declaração de imposto de renda - até porque poucos ricos são assalariados. E é difícil obter dados sobre o patrimônio. Muitos multimilionários mantêm parte de sua riqueza no exterior - têm imóveis em Paris, Londres ou Miami e escondem fortunas em paraísos fiscais.
Para completar, eles são protegidos por mecanismos legais e jurídicos, como o sigilo bancário e de declaração do imposto de renda.
BBC BRASIL: Piketty tenta há alguns anos estudar o Brasil, mas um de seus colaboradores relatou a BBC Brasil ter dificuldade em acessar dados da Receita Federal...
Cattani - Acho que no Brasil há regras específicas que garantem o sigilo desses dados e pouca colaboração das autoridades.
Leia mais: Crítico sensação do capitalismo quer estudar o Brasil, mas Receita não libera dados
BBC BRASIL: Quem são esses ricos?
Cattani - É difícil quantificar isso. No Brasil, em geral as pesquisas demográficas e sociais estabelecem um patamar de renda de R$ 6 mil, às vezes R$ 10 mil por mês - elas dizem: todo mundo que está acima disso é rico, é classe A. Mas precisamos estabelecer melhor as diferenças dentro desse grupo. Quem ganha R$ 6 mil por mês pode ter um bom padrão de vida, mas seu poder e o impacto na sociedade é muito diferente do que quem ganha centenas de milhares de reais.
A partir de um certo patamar, o indivíduo em questão dispõe de uma corte de serviçais, assessores tributaristas e advogados para ajudar a multiplicar sua fortuna, assessores de marketing pessoal e institucional. Faz parte do topo da pirâmide que verdadeiramente tem poder. No caso dos super-ricos eu trabalho com um percentual de 0,1% da população adulta, por exemplo.
fonte:
http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/11/141104_superricos_ru