Maria Shu - entre[vista]
Entrevista com a dramaturga Maria Shu
(Revista Alzira)
- Hoje, revi alguns fragmentos de “Dias felizes”, de Samuel Beckett. Por alguma parte do meio da peça Winnie, enterrada até a cintura, diz: “O dia feliz que virá, em toda carne derreterá a tantos graus e a noite da lua durará tantas centenas de horas”. Que são dias felizes para você, Maria Shu? Em que concerne isto que parece vago e ávido ao mesmo tempo, a felicidade, Maria Shu? Você é feliz?
Parafraseando Cecília Meireles, não sou alegre, nem triste, sou dramaturga.
Dias felizes, para mim, são dias catárticos, em que eu enfrento uma onda grandiosa e me deleito em sua espuma.
- Diz-me do rosto de sua mãe, do rosto de seu pai, dos rostos dos seus irmãos: como eles são?
O rosto de minha mãe muito se parece com o meu. Conheci-o há apenas seis anos e, verificar tamanha semelhança numa pessoa com quem não se tem vínculos afetivos é, no mínimo, desconcertante. Já o rosto dos meus irmãos biológicos, por sua vez, pouco lembra o meu próprio. O do pai me será uma eterna incógnita.
Hoje, ao contrário da infância - período em que eu me frustrava não ser parecida com nenhum dos parentes adotivos - me agrada esta sui generis: eu me sinto absolutamente amada e especial por ser quem eu sou, ali.
- Que rosto pairava no rosto da menina Maria Shu? Que era você na meninice?
Além do rosto desconhecido da minha própria mãe, os rostos que pairavam sobre o meu eram os dos escritores, dos poetas: Drummond, Pedro Bloch, Marcos Rey, Cecília Meireles… eu queria ser um deles, compartilhar com o mundo o meu sintoma. Era uma menina de poucos amigos, que enxergava nublado devido à miopia ainda não-diagnosticada, mas que habitava este mundo distorcido com extrema paixão, na companhia de brinquedos, sobrinhos, livros, diários e rabiscos de versos.
- Conte-me da geografia que permeia a seu itinerário de vida. Em que lugares você viveu até agora?
Saí de uma cidadezinha da Bahia chamada Guanambi, nos braços de uma mãe adolescente, com quinze dias de vida. Seis meses depois, passei a viver com outra família, a adotiva, em São Paulo. Casada, apenas mudei de bairro, mas permaneci em Sampa. Atualmente, a Praça Roosevelt me traz a sensação de terceiro lar.
- Que pessoas foram fundamentais em sua formação como escritora?
Um ente falecido há três anos, o tio João foi a primeira pessoa para quem eu mostrei meus escritos. Roseli Brambilla Baço, minha professora no ensino fundamental e Doracy Camargo Borges, na universidade enxergaram invulgaridade nas minhas letras.
No curso de Dramaturgia, sem dúvida, Marici Salomão e Roberto Alvim me apresentaram possibilidades de escrever, ver e vivenciar o texto dramatúrgico por outro viés.
Sou muito, muitíssimo grata a estas pessoas.
- Quando e por quais razões (se for possível identificá-las) você iniciou o ofício de escritora?
Penso que seja difícil mesmo identificar o porquê de escrever. Mais difícil ainda seria apontar a razão do início, o gatilho disparador de tudo. Não escolhi escrever, as letras - as mais simples, ressalto, foram elas que me escolheram - mas me arrisco a afirmar que foi por “incômodo” que comecei a rascunhar as primeiras linhas. Quando há algo que me instiga, me cutuca, a melhor maneira de resolver este conflito, esta sensação de sufocamento é a escrita (seja literária ou dramatúrgica) Quiça por auto-desafio, por curiosidade, também. Quando comecei a escrever haicais e rondeis, eu queria compreender aquela estrutura que me fascinava. Com a dramaturgia se deu o mesmo.
- Maria, creio que é muito relevante que você teça um panorama de suas composições literárias. O que você escreveu? O que você publicou?
Como muitos escritores amadores, venci alguns concursos literários na categoria conto, poesias e haicais; alguns me renderam prêmios como livros; outros, publicações em antologias, jornais, livros. Mais recentemente, dois textos dramatúrgicos - “Giz” e “Relógios de Areia - ganharam publicações.
- Conte-me sobre os seus escritos de gaveta. O que você guarda nestas arcas?
Muita coisa se perdeu ao longo dos anos, em cadernos mofados, em disquetes quebrados. Mas a gente sempre tem algo na tal “arca”: poemas inacabados, peças teatrais que não mostrou a ninguém, crônicas de infância, prosa poéticas, um livro infantil, rondeis…há muitos escritos que revisito com prazer. Contudo, há aqueles que considero não mais refletirem a minha identidade autoral. Indiscutivelmente, os textos que mais estimo são aqueles que me espantam positivamente. Como se eu indagasse a mim mesma: onde você estava, Maria Shu, quando escreveu isto?
- Quais são os livros de Maria Shu? Que livros alimentam o seu trajeto, os seus escritos?
Alguns livros operaram como verdadeiros divisores de água, em diferentes fases da minha vida.Tais obras dialogaram com meus anseios, com minhas dúvidas pungentes e foram cruciais para mudanças de pensamento, tomada de decisões, paz e fúria. Poderia destacar, por “ordem cronológica”:
“Sozinha no Mundo”, de Marcos Rey (autor que tive o imenso prazer de conhecer);
“ Olhai os lírios do campo”, de Érico Veríssimo;
“Razão e sensibilidade”, de Jane Austen;
“A Hora da Estrela”, de Clarice Lispector
“ A vida como ela é”, de Nelson Rodrigues;
“Melhores poemas de Paulo Leminski”
“Os ratos”, de Dyonélio Machado;
“A metamorfose”, de Franz Kafka.
“Mensagem”, de Fernando Pessoa;
“O chamado selvagem”, de Jack London.
Todavia, ler peças de teatro (Shakespeare, Sarah Kane, Heiner Muller, Lagarce, Fosse, Koltès, Nelson, Plínio Marcos, Newton Moreno, Luciano Mazza, Grace Passô, Roberto Alvim, Anthony Nielson e muitos outros dramaturgos novos com quem tenho tido contato) indubitavelmente alimentam meus escritos, assim como os teóricos Patrice Pavis, Aristóteles,Sarrazac, Lehmann…
- Shu, o que mobiliza a sua dramaturgia? Que cores têm a dramaturgia que você escreve?
Procuro ser uma espécie de cronista do meu tempo, buscando construir uma dramaturgia híbrida em que se entrecruzem forma e conteúdo. Segundo a professora doutora Silvia Fernandes sou contaminada pelas diversas práticas de escritura que produzo (poemas, crônicas, haicais, peças de teatro e roteiros).
Por falar em cores, apenas para exemplificar, agrada-me “pintar” a minha dramaturgia. Em “Cabaret Stravaganza” a cor que mais cabia ali residia no cinza- metálico de fios, dos ciborgues; em “Giz”, branco, vermelho e cinza eram as matizes principais. Em “Relógios de Areia”, o bege e o branco se alternavam. Em “Mofo”, prevalece o verde-musgo.
- Que conselhos você daria a um jovem dramaturgo? Por que caminhos um jovem dramaturgo deve se embrenhar?
Que ele procurasse identificar o que lhe instiga a escrever, que fosse fiel aos seus próprios sinais, à sua maneira de singular de criar, que lesse, produzisse textos (curtos ou longos) e assistisse à montagens teatrais sempre que possível.
- Quem será Maria Shu daqui 20, 30, 40 anos? O futuro, por ventura, é coisa que a interpela?
Desconfio de que eu estarei esquadrinhando mais uma nova atividade para se juntar ao ofício de professora e escritora. Desconfio ainda mais de que esteja acompanhada por minha filha Heloísa, nesta alegre empreitada.
- por Rudinei Borges -
http://alzirarevista.wordpress.com/2013/10/13/maria-shu/