NA BIBLIOTECA DE MANGUEL (Carlos Costa - CULT)
Em entrevista exclusiva à CULT, o escritor Alberto Manguel fala sobre suas origens e o futuro do intelectual
por Carlos Costa
Com quase 50 mil volumes, a biblioteca do escritor ocupa um galpão em sua residência num vilarejo francês
O básico sobre Alberto Adrian Manguel quase todo leitor sabe: nascido em Buenos Aires em 1948, com menos de um ano se trasladou com a família para Israel, para onde seu pai, Pablo Manguel, fora designado para instalar a Embaixada da Argentina, da qual foi o primeiro titular. Seguindo a vida do pai diplomata, viveu em diversos países. Foi alfabetizado em alemão e inglês. Em algum de seus livros conta o problema que viveu ao fazer o secundário no Colegio Nacional de Buenos Aires, pelo pouco domínio do castelhano – foi nessa época que descobriu as aventuras da Emília, do Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato. Confessa que sentiu empatia pela boneca por enfrentar como ela os mesmos problemas com a escola.
Adolescente, Manguel fazia bicos e numas férias de verão alistou-se como ajudante da livraria Pigmalión, no número 512 da avenida Corrientes, especializada em literatura alemã, e que não existe mais. Foi a oportunidade para conhecer um célebre frequentador do lugar, Jorge Luis Borges. Conversa vai, conversa vem, Borges, com 58 anos e quase cego, pediu a Manguel que fosse a seu apartamento, ler em voz alta para ele. Tarefa que o leitor incansável repetiu duas ou três vezes por semana entre os anos de 1964 e 1968. Uma das versões dessa história pode ser lida no livro No bosque do espelho. A amizade com Borges lhe rendeu muitos contatos.
Terminado o secundário, chegou a iniciar, em 1967, um curso na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, mas abandonou os estudos para dedicar-se ao que realmente gostava de fazer: ler. Foi trabalhar numa editora portenha. Em busca de sua vocação, mudou-se para a Europa, trabalhando como parecerista de diversas editoras na Espanha, França, Itália e Inglaterra, lendo textos originais para decidir ou não sobre sua publicação. Passou por casas de prestígio, como a Gallimard e Les Lettres Nouvelles, de Paris, além de Calder & Boyars, em Londres.
Aos poucos, começou também a escrever. Seu primeiro prêmio chegou quando morava em Paris, em 1971: o primeiro lugar num concurso do tradicional diário portenho La Nación,atribuído a uma coleção de contos escrita em parceria com Bernardo Schiavetta (poeta franco-argentino). Talvez esse prêmio influenciasse sua decisão de voltar para a Argentina em 1972, convidado para trabalhar no mesmo jornal La Nación. Mas foi uma permanência curta, pois em 1974 a renomada casa editorial Franco Maria Ricci, de Milão, fez-lhe uma proposta, aceita de imediato. Ali conheceu Gianni Guadalupi, criador de roteiros e guias turísticos, com quem escreveu o Dicionário de lugares imaginários, publicado aqui em 2003. Nesse dicionário, revisita lugares imaginários da ficção mundial, começando da letra A, de Abadia da Rosa (referência ao romance de Umberto Eco), a Zuy, próspero reino dos elfos na Holanda. Também passeia por Atlântida, Xanadu, Shangri-La, a Terra do Nunca, Antares (no Rio Grande do Sul, do romance de Érico Veríssimo) ou o País das Maravilhas, refazendo o caminho da Alice de Lewis Carroll.
A estas alturas nômade assumido, Manguel seguiu em 1976 para o Taiti, convidado para trabalhar na Les Éditions du Pacifique, onde passou meia década. Em 1982, já com 34 anos, instala-se em Toronto, adotando a nacionalidade canadense. Nos próximos dezoito anos dará vazão a sua verve ensaística, escrevendo regularmente em jornais como Globe & Mail, de Toronto, The Times Literary Supplement, de Londres, e os conhecidos New York Times e The Washington Post.
Mora atualmente no vilarejo de Mondion, nos arredores de Poitiers, na França, com os livros amealhados em tantas andanças. Ali, comprou um antigo presbitério (a casa do padre, contígua à igreja) em ruínas e o reformou para transformar em residência. E no galpão dessa construção medieval instalou sua fantástica biblioteca, que soma quase 50 mil exemplares. Foi nessa biblioteca que ele recebeu, num sábado de janeiro deste ano, a reportagem da CULT para a entrevista que segue.
Manguel em sua casa, na medieval Mondion: paixão à primeira vista
CULT – O senhor foi alfabetizado em alemão e inglês, mas abre Os livros e os dias com A invenção de Morel, de Bioy Casares, autor argentino. E escreve que quando sonha em castelhano não há diálogos, as pessoas não falam. Isso lembra Fernando Pessoa: “Minha pátria é minha língua”?
Alberto Manguel – [risos] Marguerite Yourcenar disse “minha pátria são meus livros”. Nossa identidade tem origem na própria língua. No meu caso, o inglês e o alemão foram as primeiras línguas até os 8 anos. As ideias se formam para mim primeiro em inglês, hoje mais que o alemão, pois deixei de usá-lo há tempo, embora seja ainda fluente. Quando falo e, sobretudo, quando escrevo em espanhol há como um pequeno esforço de tradução. É curioso até que ponto a língua nos define, define nossa vida intelectual e forma de pensar, inclusive as ideias que temos. Certas ideias que um escritor de língua portuguesa formula, o faz por estar pensando em português. Essa mesma ideia não seria formulada por um escritor de língua inglesa ou chinesa. Há um poema de um argentino pouco conhecido, o José Pedroni: ele escreveu que o momento em que se dá conta de que está enamorado é “quando o você passa para tu”. Um lusófono não poderia ter essa ideia – e esse é um exemplo banal. Uma amostra mais forte é o célebre “to be or not to be”. Isso não ocorreria a um poeta de língua castelhana, pois teria de tomar uma decisão. O “to be” de Shakespeare é ser e estar ao mesmo tempo [risos]. Em espanhol ou português, teremos de escolher, ser ou não ser, estar ou não estar.
No livro de Bioy Casares, o narrador ouve falar do Canadá, e o senhor pontua: “do meu Canadá”. Como se deu o encontro com esse país, que o levou a mudar a nacionalidade em 1985?
Passei toda a infância viajando, e a partir dos 20 anos voltei a viajar. Nunca senti que a Argentina, país em que nasci, fosse a minha raiz. Era um país que aparecia no meu passaporte e pelo qual tenho carinho, sobretudo pelos anos de minha educação secundária no Colegio Nacional de Buenos Aires. Mas nacionalidade é outra coisa, o apego a uma comunidade com sua história, sua língua e sua identidade cultural. Em 1982, por uma série de circunstâncias, fui ao Canadá. Um dos meus livros havia sido publicado com êxito ali, mas não sabia nada sobre o país. Descobri um lugar único, em que as noções de direito cívico têm sentido. Onde ser cidadão se traduz num sentido ativo como foi para os atenienses. Um país que não impõe de maneira forte o preconceito de sua própria identidade. Nunca vivenciara isso até então. Vivendo agora na França, não poderei nunca ser um francês. Precisaria, antes de tudo, de uma longa linhagem de sangue francês e, sobretudo, aceitar o preconceito francês de que eles são os melhores do mundo ou que a figura de Charles de Gaulle deve me estremecer. Bom, nada disso ocorre.
É o que diz Victor Hugo no monumento de uma praça aqui em Poitiers: “La France éternelle”.
Não é para tanto. No Canadá, diferentemente, há algo muito curioso: é o único país de todas as Américas que não nasceu de uma revolução, de uma luta por separação. Não nasce do desejo de separar, mas do desejo de não se separar. A nacionalidade nasce ali de uma vontade de tomar e assimilar tudo o que entra no Canadá. Encontrei-me com um país de identidade aberta. Minhas experiências argentina, polinésia, francesa ou inglesa passaram a formar parte da minha vivência de Canadá. Dou um exemplo. Nos anos 1980 houve forte migração de sikhs para o Canadá. Concentrados na região do Punjab, entre Índia e Paquistão, eles são conhecidos por seus turbantes e punhais. Muitos sikhs são cidadãos canadenses e todo cidadão canadense tem o direito de entrar para a Polícia Montada do Canadá, com seu uniforme de ombreiras grandes, jaqueta vermelha e botas. Mas um sikh, ao entrar para a polícia montada, não pode trocar o turbante por um chapéu. Ele tem de usar turbante. Em qualquer outro país, por exemplo, se sou brasileiro e quero entrar no Exército, mas não posso usar a cor verde oliva porque minha religião não permite: não pode, não entra. Não irão mudar a cor do uniforme por causa da minha religião. No Canadá pode. Fizeram então um decreto dizendo que no uniforme da polícia montada pode-se usar chapéu ou turbante. O símbolo não é imposto de fora para dentro, e sim ao contrário. Isso até provoca um problema no sentido de que o canadense às vezes se sente inseguro de sua identidade justamente por ser tão aberta. Nós sempre estamos buscando definições precisas: sim ou não, branco ou negro. Gostei de viver em uma sociedade onde não há essa tensão e rigidez. Por isso me tornei cidadão canadense.
Em A cidade das palavras o senhor discute o que nos mantém juntos e nos faz reconhecer-nos como parte de um grupo. Em contrapartida, nos diferencia dos estranhos a esse grupo. Como fica o homem nas cidades contemporâneas?
Cada sociedade trata de se definir para criar uma circunferência dentro da qual possa atuar. Ao criar esse círculo cria-se o espaço de fora e a presença do outro que está além das muralhas da cidade. Ao mesmo tempo, faz com que os cidadãos que atuam dentro do círculo queiram buscar o que está fora. Nesse jogo de tensões entre o que está permitido e o proibido, o que está incluído e o que está excluído, é que acontece a vida da sociedade. Uma sociedade que não tem essa tensão é uma sociedade morta.
E por que veio parar em Poitiers?
Lugares chegam a nós da mesma maneira que pessoas. A gente se enamora de alguém ou alguém se converte no melhor amigo por absoluta casualidade. Com as cidades sucede o mesmo. Estava buscando um lugar para viver na França. Eu não dirijo carro e queria um lugar perto de uma estação de trem. No Canadá era complicado encontrar esse lugar, pois não há trens no país e viver na cidade era caro. Tudo parecia caro aqui na França também. Convidaram-me a fazer uma noite de autógrafos na livraria La Belle Aventure, em Poitiers. E descobri uma cidade que me fascinou. Arraigada na Idade Média, com a igreja românica mais linda de todo o mundo. E havia uma oferta de casas que custavam pouquíssimo. Assim descobri esse presbitério em Mondion, e as pessoas daqui foram muito generosas comigo.
Aqui em Poitiers fica a casa onde nasceu Michel Foucault. Vargas Llosa, no recente A civilização do espetáculo, faz uma crítica cruel a Foucault, Lacan, e em especial a Baudrillard, como cúmplices da perda de respeito pelos intelectuais após Maio de 1968.
Não sei se esses juízos absolutos são úteis. Dizer que Lacan é um imbecil ou que Foucault não vale nada. Isso não são argumentos intelectuais. São posições absolutistas [longa pausa]. A mim interessam ideias particulares, não sou um leitor de teorias. Penso que na obra de Foucault ou de Lacan encontram-se muitas ideias interessantes.
Lacan menos, pois ele não escreveu, escreveram por ele.
São notas tomadas de seus cursos. O mesmo se pode dizer de Platão, já que ele não escrevia, os alunos da academia tomavam nota. Não sei como responder a esses argumentos absolutistas porque não os comparto. Para mim, cada ideia vale no contexto em que se lê e no sentido em que se utiliza. Já a respeito de Vargas Llosa escrevi bastante e de forma crítica. No livro No bosque do espelho há dois ensaios sobre ele, “O fotógrafo cego” e “Os espiões de Deus”. Neles, tomo elementos de sua ficção e de seus ensaios e faço uma comparação e digo que o ensaísta Vargas Llosa não leu o novelista Vargas Llosa. Há contradições ferozes e há ideias que se aproximam a certas noções fascistas em seus ensaios, racista em outros casos, numa contradição com sua ficção. É interessante isso.
Llosa fala da perda da importância do intelectual hoje.
O intelectual não tem prestígio numa sociedade em que o que vale é o financeiro. As pessoas falam todo tempo que as crianças e os jovens não leem. Não é um problema isolado, mas consequência. Instruem a não nos ocuparmos de coisas que tomam tempo, que são profundas, lentas ou difíceis. Dizer que o intelectual não tem importância hoje leva aonde? É um tema mais profundo: que tipo de sociedade estamos propondo. Hanna Arendt define cultura como aprendizagem da atenção. Aprender a prestar atenção. Toda a cultura que alimentamos hoje é contra a atenção, com um elenco de gadgets que requerem um salto constante de uma coisa a outra. Interrupção de toda atividade pelo toque do celular, de e-mail, do que seja, o que implica que a conversação atenta e longa é menos importante. Uma estrutura estética para todas as artes visuais em que a duração do período de atenção, o parágrafo visual, é demasiadamente breve. O sistema utilizado pelas séries televisivas é formulado assim: alguém fala algo, o outro responde, segue nova cena. Há um corte rápido para dar lugar ao comercial, também editado muito freneticamente. Tudo contribui para a educação da atenção breve. Educam-se as crianças para que não dediquem a algo atenção maior do que cinco minutos. Depois de um minuto já muda de canal ou deixa o que está fazendo, muda a conversação. Isso é grave porque o tempo de reflexão deveria ser mais longo do que o tempo de observação. Vejo algo e logo precisaria de tempo para pensar, discutir ou experimentar novamente se fosse o caso. Estamos eliminando isso de nossa sociedade, para dar lugar ao elemento mais necessário que temos hoje, que é ser consumidor. Este necessita não refletir nada, não prestar atenção, porque um consumidor que preste atenção, que reflita quando olha um jeans a 500 euros pode achar ridículo e pensar: por que comprar? Se ele refletir, não irá comprar, não irá consumir. É fundamental que ele veja a publicidade e diga “eu quero comprar”, e passamos à próxima etapa ou fase, como num videogame. Isto parece ser o problema essencial. Civilização do espetáculo, como fala Llosa, sim. Mas por quê? Como? E, sobretudo, o que fazer para mudar?
Carlos Costa
é professor titular de História da Comunicação na
Faculdade Cásper Líbero e autor do livro A revista no Brasil do século XIX (Alameda Editorial, 2013)