Entrevista imaginária com D. Pedro II
A entrevista a seguir foi originalmente publicada no Blog http://lucabarbabianca.zip.net no dia 28 de abril de 2010.
Há algum tempo dei forma a uma entrevista imaginária com aquele que certamente é o último estadista que a História do Brasil nos concedeu. E, muito provavelmente, também o primeiro. Em épocas de escassez como a que vivemos - vacas magras, como se dizia antes - nada melhor do que resgatar aquilo que tivemos de bom no passado para nos fazer o presente menos indigesto. Comecemos supondo que a entevista está sendo concedida à hipotética Revista "Veja ora pois", numas tantas páginas verde-amarelas que, embora aparentem democrática independência em relação à linha editorial, recebem, antes da edição final, um tratamento que lhes põe em sintonia fina com o pensamento dos proprietários. Na verdade, ninguém sabe bem como é esse pensamento e nem se existe mesmo algum pensamento, mas não nos esqueçamos de que qualquer pretensa identificação entre a ficção e a realidade deve ser creditada à licença poética que todo autor se concede. Em outras palavras, qualquer semelhança entre o que veremos por aqui e acontecimentos reais havidos com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência. O que vale também para esta introdução. Outra coisa que precisa ser desde já esclarecida é que por sua generosa extensão a entrevista terá de ser publicada em partes. Portanto, como dizia o esquartejador, vamos por partes à entrevista imaginária com D.Pedro II.
Repórter: Vossa Alteza Imperial poderia declinar para nós o seu nome e o nome de seu pai completos?
D. Pedro II: Declinar é a palavra adequada. A profusão onomástica é uma característica dos herdeiros das casas reais. O nome completo de papai era: Pedro de Alcântara Francisco Antonio João Carlos Xavier de Paula Miguel Gabriel Rafael Paschoal Joaquim José Gonzaga Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon. E o meu: Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Habsburgo Bragança. Ufa!
Repórter: E por que tantos nomes, Deus do céu?
D. Pedro II: A principal função dos numerosos patronímicos dentre a nobreza é o sentido de prestar homenagem, reverenciar. Aos antepassados e aos santos de devoção. Meu nome, por exemplo, remete a São Pedro de Alcântara, padroeiro das famílias reais portuguesa e brasileira. Além disso, meu pai já era também Pedro de Alcântara, como há pouco lhe disse. João homenageia vovô, D. João VI, pai de papai, tal como Carlos é homenagem a minha avó Carlota Joaquina e, Leopoldo, à mamãe D. Leopoldina. Salvador reverencia a Nosso Senhor Jesus Cristo; Bibiano à virgem mártir Santa Bibiana, cujo dia é comemorado a dois de dezembro, dia do meu nascimento.
Repórter: Seus outros nomes também são homenagens?
D. Pedro II: São sim. Reverenciam São Francisco Xavier e São Francisco de Paula. O Leocádio é homenagem a Santa Leocádia, nobre padroeira de Toledo. Segue-se a referência aos três santos arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael e, ainda, uma respeitosa homenagem a São Luiz Gonzaga.
Repórter: Que personagem da nossa história julga Vossa Alteza Imperial que devesse ser mais bem lembrado? Alguém cujo exemplo de vida, na sua augusta opinião mereça ser seguido.
D. Pedro II: Muitos personagens da história pátria tem recebido até mais destaque do que fizeram por merecer, penso eu. Há, no entanto, uma figura que foi completamente esquecida e que, a meu ver, mereceria ser resgatada: Tebas. Consta que em meados do século XVIII, quando da construção da Catedral de São Paulo – no mesmo local em que hoje está a Catedral da Sé – as obras foram paralisadas porque não se encontrava quem aceitasse assumir a responsabilidade por erigir a torre. Na verdade as dificuldades técnicas que a empreitada apresentava eram julgadas acima dos recursos da engenharia da época. É nesse momento que se apresenta um negro escravo - Tebas - de quem até então ninguém ouvira falar e que expõe aos engenheiros o modo pelo qual achava que a torre devesse ser edificada. Desejava, em troca de orientar a construção, ser alforriado. Convencidos com a solução que lhes foi apresentada, os especialistas optaram por confiar a construção a Tebas em troca da alforria. A tarefa é cumprida com êxito e, em seguida, outra construção é delegada a Tebas: a torre de recolhimento de Santa Tereza. Seu feito mais notável, contudo, dá-se na ocasião em que se torna necessário um projeto para atender ao abastecimento de água do centro da cidade. Tebas imagina então um processo de canalização: constrói no Largo da Misericórdia um chafariz de pedra de cantaria e, por gravidade, conduz a água aí captada até o Vale do Anhangabaú. Como nessa época não existiam canos, Tebas os inventou fazendo-os de papelão betuminado. Canos que foram encontrados praticamente ainda funcionais no começo do século XX, quando eram feitas escavações no local em que hoje está a Praça das Bandeiras. Proponho aqui, se o nobre repórter me permite, um desafio aos pesquisadores patrícios: resgatar essa insigne figura esquecida, de quem nem o nome inteiro se sabe.
Repórter: Qual a opinião de Vossa Alteza Imperial: monarquia ou república?
D. Pedro II: Não creio que haja um regime político perfeito, imune a quaisquer críticas e acima de qualquer suspeita. Costuma-se ouvir às vezes que cada povo tem o governo que merece. Isso é um flagrante exagero; ninguém merece tanto assim, não é verdade? Agora veja: praticamente todas as almas tementes ao criador fazem menção ao Reino de Deus. E quando se quer bem adjetivar a um individuo probo e íntegro diz-se que tem nobreza de caráter. Poder-se-ia afirmar então que a monarquia é quase como se fosse divina. Ela foi imaginada para ser definitiva. Você, com certeza, já ouviu falar em república de estudantes – aquela bem conhecida bagunça – e jamais ouviu falar em república de Deus, certo? E, no entanto, a monarquia que foi pensada para ser perene, aqui em nosso sofrido Brasil, acabou dando lugar a uma república proclamada ‘provisoriamente’ por meio de um golpe deflagrado por um militar empedernido que se dizia muito meu amigo, apesar de me dever favores. E durma-se com um barulho desses!
Repórter: ‘Provisoriamente”? Vossa Alteza Imperial poderia nos explicar isso melhor?
D. Pedro II: Pois assim foi que ficou grafado para a posteridade:- “Fica proclamada provisoriamente e decretada como forma de governo a república...” O que inaugurou um hábito tipicamente brasileiro: deixar mesmo como definitivo o que era para ser provisório... Aliás, graças ao Patrocínio, o “Zé do Pato”, que teve a lembrança de publicar a dita proclamação no Diário Oficial do dia seguinte. Depois ficou meio desencantado com o rumo das coisas e andou se dedicando à navegação aérea com o seu malogrado aeróstato.
Repórter: Mas não é fato que logo depois da proclamação o Marechal Deodoro convocou a Assembléia Constituinte para elaborar a nova Carta Constitucional e fazer as coisas mais claras? Isso ainda durante o Governo Provisório, certo?
D. Pedro II: Estamos a ver! O próprio registro histórico, como você acaba de mencionar, vem de novo com o tal de ‘provisório’. Diga-se ‘en passant’ que o que se instalou com o golpe militar foi, na verdade, uma ditadura em que os governos das províncias foram depostos e substituídos por gente da confiança do Manuel Deodoro. E tem mais, no texto constitucional dos republicanos previa-se ainda que fosse realizado a seguir um plebiscito em que o povo deveria escolher entre monarquia e república. Isso acabou acontecendo realmente, só que mais de cem anos depois. Claro que nessa oportunidade todos aqueles que deveriam ter sido chamados para opinar já estavam completa e definitivamente mortos!
Repórter: A república então, pelo que diz Vossa Alteza Imperial, não veio para redimir a falta de democracia.
D. Pedro II: Pode estar certo disso! Basta ver como se formou o Congresso Constituinte instalado um ano após a proclamação. Manuel Deodoro determinou que os governadores das províncias – que ele mesmo nomeara – elaborassem as listas dos eleitores confiáveis, obedientes à sua orientação para, a partir daí, organizar o dito Congresso. Esse tipo de coisa aconteceu com freqüência, às vezes de modo disfarçado, às vezes de modo descarado. Parece-me que ainda acontece aqui e ali, ou seja, por todo canto.
Repórter: A república teria vindo então com o propósito de criar condições mais favoráveis ao crescimento e ao desenvolvimento do Brasil, seria isso?
D. Pedro II: A sua afirmação é, digamos assim, burlesca. Teria lá a sua comicidade não fosse ela tão penosamente dramática. Com o Manuel Deodoro, finalmente o nosso tribuno Rui teve o seu cobiçado ministério e ficou logo com as responsabilidades de gestão da economia. Não sei se por ingenuidade ou esperteza o fato é que o gênio baiano parecia acreditar mesmo que se devesse conceder à raposa a administração do galinheiro. E à águia os pintinhos, talvez. Que outra explicação haveria para dar aos bancos a atribuição de emitir moeda? E olhe que o “encilhamento” - é certo que coberto e recoberto de sucessivas camadas cosméticas - continua por aí até hoje. Aliás, nestes novos tempos de globalização é até pior, pois a ação do sistema financeiro como um todo está posta em ganhos sobre ganhos com dinheiro virtual, sem que se crie qualquer riqueza ou progresso generalizável. Dinheiro ficcional; que não existe. Dinheiro negociado, convertido, rentabilizado sem qualquer sustentação em ativos reais. Falemos francamente: dinheiro falso. Penso que não há desastre econômico pior do que o desastre decorrente daquelas medidas supostamente destinadas a evitar esse desastre.
Repórter: Vossa Alteza Imperial parece ter ficado magoado com a forma como se deram as coisas, mas a quase unanimidade dos estudiosos atribui a queda do Império Brasileiro ao fim da escravidão e às famosas questões religiosa e militar.
D. Pedro II: Pois é. E diz-se também que alguns outros fatores contribuíram para isso: eu não ter um herdeiro varão, Isabel ser casada com um estrangeiro que praticava agiotagem explícita, grandes proprietários de escravos inconformados com a perda de poder político, os tais positivistas e por aí vai. Considero que todos esses fatores merecem ser ponderados. Comecemos com a abolição, que se fez pacificamente sem que tivéssemos que enfrentar, como nossos irmãos da grande nação do norte, os horrores de uma sangrenta guerra civil. Foi o corolário natural de um processo lento e gradual – proibiu-se o tráfico, veio a Lei do Ventre Livre, libertaram-se os escravos com mais de sessenta anos – de forma que quando o João Alfredo levou a Lei Áurea para Isabel assinar, a continuidade na produção agrícola estava praticamente assegurada com a substituição do trabalho servil pelo remunerado. Acrescente-se que em muitos casos um trabalhador pago passou a custar mais barato do que um escravo para a mesma função. Se isso não desculpa a ignomínia que a escravidão representava, ilustra bem o quanto a mudança foi pouco generosa.
Repórter: Se me permite Vossa Alteza Imperial, como assim “trabalhador pago mais barato que escravo”? O escravo não trabalhava “de graça”?
D. Pedro II: Claro que não! Nem relógio trabalha de graça. Para começo de conversa, a mão-de-obra escrava tinha que ser comprada. E não custava pouco, na medida em que se costuma pagar caro por artigos importados. Já o trabalho livre passou a ser – como é até hoje – alugado. O primeiro representava um investimento inicial muito maior. Era preciso mantê-lo com saúde e bem alimentado para que pudesse render nas tarefas. Imagine que você compra um animal de raça – uma vaca holandesa ou um touro reprodutor indiano, por exemplo – ou você lhe dispensa todos os cuidados de trato e manejo ou corre o risco de perder o seu investimento! Já com o empregado a quem você atribui a função de cuidar da vaca ou do touro, sua única obrigação é pagar-lhe um salário. Cabe a ele – se souber ou puder – tirar desse salário alimentação, saúde etc. Veja: longe de mim fazer a apologia da escravidão, apenas lhe digo que a troca não foi generosa para com o trabalho, até porque foi patrocinada pelo capital!
Repórter: E o caso da chamada questão religiosa? Foi ou não importante para o advento da república?
D. Pedro II: A questão religiosa foi uma rematada tolice de bispos reacionários. No sistema de padroado que então vigorava, os religiosos eram pagos pelo Estado – uma espécie de funcionalismo público – e as indicações para os postos eclesiásticos eram da minha competência em acordo com a Santa Sé de Roma. Além disso, as bulas papais só valiam por aqui depois que eu desse o meu aval, digamos o “nihil obstat” do Imperador, se me permite. Portanto, não se justificavam questiúnculas com a maçonaria que, por sinal, já havia sido condenada pela Igreja com o Cardeal Lorenzo Orsini, quando ele se fez Papa Clemente XII. Por aqui, que eu saiba, a condenação papal só fez fortalecer a maçonaria. E pelo amor de Deus! Isso foi em 1730! No tempo da minha estimada bisavó! Aconteceu quase cem anos antes da nossa Independência que, não esqueçamos, teve grande ajuda de eminentes maçons, inclusive papai que também pertencia à maçonaria onde era o grão mestre Pedro Guatimozim. E, além disso tudo, apesar de que os bispos de Olinda e do Pará tivessem sido denunciados, julgados e condenados à prisão com trabalhos forçados, eu comutei-lhes as penas para prisão simples. Convenhamos que impor trabalhos forçados a padres é picardia excessiva. Depois, aquiesci ao pleito de Pio IX, o nobre Cardeal Giovanni Maria Conte Mastai-Ferreti di Sinigaglia, que intercedia por seus bispos: concedi-lhes a anistia e tudo terminou na mais santa paz.
Repórter: E as questões militares? Não foram determinantes da queda da monarquia brasileira?
D. Pedro II: A coisa toda começou com o Sena Madureira. O tenente cismou de criticar um projeto de reforma do montepio militar e mandou bronca pelos jornais, o que feria a hierarquia do exército. Depois de por os pés pelas mãos mais de uma vez acabou sendo exonerado do seu comando. Ainda que sempre sobrem ressentimentos nesses episódios, o assunto não repercutiu maiores conseqüências. Outro caso deu-se no Piauí e parece que dizia respeito ao desaparecimento suspeito de umas tantas fardas. De novo discussões pela imprensa e coisa e tal. O Manuel Deodoro, por essa época servia em Porto Alegre e permitiu que os oficiais da sua guarnição se reunissem para discutir o pedido de instalação de Conselho de Guerra formulado pelo Sena Madureira – ele de novo! Vai não vai, isto e aquilo e, no fim das contas, tudo ficou por isso mesmo.
Repórter: Então o que teria levado o Marechal Deodoro à ruptura com o império?
D. Pedro II: Bem, vamos a isso. Em meados de 1889 coube aos liberais a formação do ministério cuja chefia ficou a cargo do Visconde de Ouro Preto. O Rui Barbosa – que tinha atacado severamente o ministério anterior do conservador João Alfredo, aquele da Lei Áurea – esperava ser contemplado com alguma pasta. Inconformado por não ter sido lembrado, recomeçou suas catilinárias, agora contra Ouro Preto e os liberais.
A propaganda republicana recrudescia. Benjamin Constant – professor de matemática da Escola Militar – que nunca escondera sua condição de republicano e positivista convicto, fazia proselitismo junto ao Manuel Deodoro. O velho marechal, herói da guerra do Paraguai, era o militar de maior prestígio no exército. Tanto ele como Floriano haviam hipotecado inteira lealdade a mim e a Isabel. Não creio que nenhum deles fosse verdadeiramente republicano. O que fervia era o descontentamento com o ministério. Depois, por causa de um boato falando em prisão para Benjamin Constant e até mesmo para o Manuel Deodoro é que os ânimos se exaltaram mais. O marechal ora mantinha-se fiel a monarquia, ora ameaçava deixar-se seduzir pelo poder que os republicanos lhe prometiam. Na manhã do dia quinze de novembro, depois de uma noite mal dormida – sim, porque estava enfermo o estafermo! - vestiu as calças de um uniforme e o casaco de outro e nem forças para meter a espada à cinta teve. Foi praticamente carregado para o Campo da Aclamação onde cercou o ministério do Afonso Celso exigindo a derrubada do gabinete e, à frente da tropa, agitou o quepe no ar e deu vivas ao Império: “Viva o Imperador!” E a tropa: “Para sempre viva!”. O professor Benjamim Constant Botelho de Magalhães ordenou uma salva de artilharia que encobriu a troca de saudações e o alarido da tropa, enquanto outros positivistas fanáticos gritaram vivas à República, apostando no impasse. Eu estava propenso a ceder às articulações, mas alguém mandou dizer ao Manuel Deodoro que o Gaspar Silveira Martins iria ser indicado por mim para chefiar o novo gabinete. O Manuel Deodoro ficou uma fera. Achou talvez que eu mofava dele com essa suposta indicação. Alias, só depois é que fiquei sabendo que além de divergências políticas ainda havia entre os dois o caso mal resolvido com uma certa dama da sociedade de Porto Alegre que era muito chegada, por assim dizer, às relações de ambos. No meu entender foi essa última e prosaica circunstância que precipitou tudo.
Repórter: Muitos historiadores consideram-no como tendo sido um monarca de conduta liberal e até simpático ao ideário dos republicanos...
D. Pedro II: Não se pode condenar esses estudiosos por terem lá suas idéias. O que acontece é que o historiador não tem como comprovar suas hipóteses com experiências de laboratório, não trabalha com uma ciência exata. O que ele faz são conjecturas, comparações, ilações; busca nexos capazes de preencher um enredo que dê textura aos fatos. E como a história é, via-de-regra, contada pelos vencedores, sempre haverá maquilagens, impropriedades e exageros.
Repórter: Devo entender que Vossa Alteza Imperial não era nem nunca foi simpático aos ideais republicanos. É isso?
D. Pedro II: Veja bem: - Eu, diferentemente de vovô, fui preparado desde o berço para ser um estadista. Tive os melhores preceptores e os mais ilustres mestres do meu tempo. Instruíram-me com profundidade na língua portuguesa e nas literaturas de Portugal e do Brasil. Adquiri fluência no Francês, no Inglês, no Italiano e no Alemão. Tive esmerada educação que incluiu o estudo da geografia, da economia, da geopolítica, das ciência sociais e das ciências naturais. O aprendizado de música, artes, fotografia, pintura, equitação e esgrima completaram a minha formação. Foi durante o meu longo e soberano período de governo – os quase cinqüenta anos do segundo reinado – que o Brasil consolidou sua integridade territorial, sua unidade de língua e sua identidade como nação verdadeiramente continental. No exercício do poder fui rigorosamente um patriota que amou seu país e seu povo. Agora eu pergunto: - Que tipo de estadistas a república nos tem apresentado?
Repórter: Mas Vossa Alteza Imperial discorda de que a república represente muito melhor as liberdades democráticas do que a monarquia?
D. Pedro II: Preciso deixar claro que defendo a monarquia constitucional e parlamentar; não sou nem nunca fui adepto das monarquias absolutistas. Para mim, nem despotismo esclarecido nem por esclarecer! E tampouco ditaduras! Alias, ditaduras são próprias das repúblicas. Na origem a república de Platão já era uma ditadura. Veja o meu caso: - Fiz um governo rigidamente honesto e equilibrado. Procurei por todos os meios ao meu alcance praticar lealdade e justiça para com toda a gente. E representei, acima de tudo, a plena garantia das liberdades de pensamento e de expressão. Talvez por este último atributo é que os menos avisados me tenham tomado por um liberal simpático à república. Lembremo-nos da velha e sempre nova máxima de Voltaire, o Senhor de Arouet: “Ainda que não concorde com uma só palavra do que dizes, defenderei até a morte o teu direito de dizê-las”. Essas palavras são o mais belo exemplo de postura democrática que eu conheço.
Repórter: Vossa Alteza Imperial poderia elucidar melhor esse seu pensamento sobre a monarquia constitucional parlamentar?
D. Pedro II: As atribuições de chefe de estado e chefe de governo estão nitidamente separadas na monarquia constitucional parlamentar. O chefe de estado é o monarca hereditário: representa a Nação, convoca eleições, indica o primeiro ministro, sanciona leis. Em suma, exerce o poder Moderador, mantendo a harmonia e o equilíbrio entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O governo propriamente dito é exercido pelo primeiro ministro, geralmente o líder do partido majoritário. É o partido ou coligação com maioria no Parlamento que forma o governo.
Repórter: Vossa Alteza Imperial fala em eleições, partidos e coligações. Na república também temos toda essa parafernália e, no parlamentarismo, até primeiro ministro...
D. Pedro II: Observe bem como é que entre nós tem-se desenrolado a história republicana. Uma sucessão permanente de crises. Crise após crise, datadas pontualmente do dia da posse ao último dia de cada mandato. E isso quando os mandatos são completados – o que nem mesmo é a regra geral! O certo é que quando um governante assume, junto com a posse instala-se a crise sucessória. E esse mesmo governante também já se põe em campanha novamente! Na verdade a república, mormente a nossa que é presidencialista, vive em crise perene.
Repórter: Será que Vossa Alteza Imperial poderia nos explicar melhor no que consiste essa “crise perene”?
D. Pedro II: Muito bem. Crise perene da república é essa inconstância, essa instabilidade, essa turbulência, essa ausência de projeto nacional estável que corrompe a democracia. Essa crise está na essência da república, mas na monarquia ela não encontra guarida. Um monarca hereditário, preparado desde o nascimento para as altas funções de estado e de diplomacia, não precisa se preocupar com os palanques e as palavras vazias e está de mãos soltas e limpas para, pelo exercício do poder Moderador, assegurar a harmonia entre os demais poderes e a gerir a Nação de forma a garantir a divisão mais fraterna da prosperidade e do conhecimento. A república, ao contrário, tem-se esmerado em disseminar a ignorância e a pobreza. Chama pomposamente de projetos sociais aos remendos de discriminação e indiferença que tece e que se reduzem à institucionalização da esmola assistencialista sem tocar nem de leve na estrutura viciada e crudelíssima geradora, essa sim, da miséria generalizada. Esses pseudo programas, em última instância se resumem a distribuição das sobras da riqueza principalmente às crianças magras e aos velhos doentes que o sistema social injusto teima em produzir.
Repórter: Por falar em crianças e velhos, se me permite, parece que os livros didáticos de História do Brasil fizeram blague com Vossa Alteza Imperial transformando-o talvez no único filho muito mais velho que o próprio pai. Sabe, neles as fotos parecem ter sido trocadas: o pai, um rapagão bem apanhado, e o filho um senhor de longas barbas brancas...
D. Pedro II: Papai sempre foi um homem jovial, intempestivo, irreverente e, por vezes, até irresponsável. Além disso morreu muito cedo, com apenas trinta e seis anos. Não teve tempo de envelhecer para uma foto em barbas brancas. Outra coisa: papai teve vida aventurosa, duas esposas, várias mulheres e prole de dúzia e meia de filhos!
Por minha parte sempre fui um temperamento mais soturno, introspectivo, meditabundo e sorumbático. Antes mesmo de completar meus quinze anos já estava Imperador e no exercício do cargo. Convenhamos que um garoto com um destino tão prodigioso havia de ser um velho precoce. Mas na questão das fotos – meu pai com vinte e poucos e eu com cinqüenta e muitos – direi que sinto que fui mesmo barbarizado, com trocadilho e tudo.
Repórter: A vida amorosa de D.Pedro I sempre foi tratada pela história de modo superficial, banalizado, como se tudo fosse ou pecado ou intriga. O que Vossa Alteza Imperial pode nos dizer de Dona Domitila de Castro Canto e Melo? Consta que teve um caso com seu pai de 1822 até 1829, quando ele casou-se em segundas núpcias com a Princesa Dona Amélia.
D. Pedro II: Meu pai morreu quando eu tinha nove anos; não posso lembrar muita coisa dessa época. Mas sei que a Marquesa de Santos foi mulher das relações de papai. Dona Domitila teve ao todo cinco filhos com o prolífero senhor meu pai. Por essa época ele costumava dizer que não era tanto pela monarquia, era mais pela monogamia, o que para ele significava uma mulher de cada vez. Mas fazia isso com toda a nobreza! Para dizer a verdade, fez também até com uma monja!
Repórter: Já que estamos falando de D. Pedro I, aquelas estórias da viagem a Santos montado num burro e de que o Grito do Ipiranga decorreu de uma indisposição gastrintestinal tem alguma coisa de verdade?
D. Pedro II: Muito bem. Vamos aos fatos. Estamos em setembro de 1822. Reza a crônica historiográfica que “no dia cinco o Imperador e toda sua comitiva vai de São Paulo a Santos”. Note-se: àquela época levava-se de São Paulo a Santos a bagatela de uma semana de viagem no lombo de uma boa montaria. Portanto papai não tinha ido a Santos (a cidade) mas sim à Santos (a marquesa) cuja residência ficava bem mais perto, em São Paulo mesmo; por isso os mensageiros vindos esbaforidos do Rio de Janeiro encontram a comitiva ali às margens do Riacho do Ipiranga, no dia sete de setembro - dois dias depois do dia cinco - como todos sabemos. Outra coisa: papai não montava aquele magnífico cavalo imaginado pelo insigne pintor patrício Pedro Américo; montava uma “mula baia gateada, animal excelente”. E a dar-se crédito ao testemunho do Padre Belchior Pinheiro que estava presente e a tudo assistiu, “vinha de quebrar o corpo à margem do riacho Ipiranga, agoniado por uma desinteria com dores”. Agora veja; estes fatos não descoram o brilho daquilo que então acontece: papai “abotoando-se e compondo a fardeta” monta e, voltando ao local onde a comitiva o aguarda, berra luzitanamente: - “Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus... Independência ou Morte!” Acho pessoalmente que papai, no caso, obrou muito bem.
Repórter: Vossa Alteza Imperial pode nos esclarecer se procede a estória de que o verde da bandeira representa nossas matas, o amarelo, nosso ouro e o azul, nosso céu?
D. Pedro II: Essas ingenuidades são cheias de poesia, não é mesmo? Após a Independência o país necessitava de uma bandeira e logo se pensou no verde e no amarelo para homenagear respectivamente as cores da Casa de Bragança, de papai, e da Casa de Habsburgo-Lorena, de mamãe. Régis Debret – o inigualável desenhista e ilustrador – a quem foi confiada a tarefa da confecção do pavilhão nacional, traçou, sobre um retângulo verde, um losango amarelo contendo o Brasão do Império. Depois, com a chegada da República, substituíram o Brasão pelo círculo azul estrelado e nele imprimiram a legenda: Ordem e Progresso. Na verdade a expressão positivista de Auguste Comte falava em “Amor, ordem e progresso” contudo os republicanos acharam melhor banir definitivamente o amor da nossa bandeira. Se você quer saber minha opinião, eu achava a bandeira imperial mais bonita.
Repórter: Como Vossa Alteza Imperial vê o Brasil de hoje?
D. Pedro II: Somos uma nação com a extensão territorial de um quase continente. Se o nosso solo não é bem aquele que o Caminha referiu como o “em se plantando tudo dá”, tampouco está muito longe disso. Hoje, com preparo e manejo adequados, até em regiões desérticas pode-se praticar com sucesso a agricultura e a pecuária. Já virou chavão dizer-se: - “Brasil, celeiro do mundo!”; isso sem falarmos nas imensas riquezas do nosso subsolo!
Repórter: Sabemos todos que Vossa Alteza Imperial, eterno apaixonado pela pátria, continua ainda hoje e continuará sempre, de onde quer que esteja, a observar atentamente o desenvolvimento brasileiro e a torcer pelo Brasil. Mas, geologicamente falando, nosso solo é que é o verdadeiro “velho mundo”. Nossas terras agricultáveis são, em geral, pobres em fósforo e tanto as plantações como a criação se ressentem de carências nutricionais de macro e micro elementos. E nos dois casos a correção do solo encarece a produção. Se essas afirmações são corretas, como ficamos?
D. Pedro II: Em primeiro lugar, devo dizer que todas essas ponderações que você fez procedem. Nunca afirmei que o futuro nos sorriria por obra do acaso. Há que trabalhar e trabalhar duro para construí-lo digno e próspero. Mas, como já lhe disse, hoje podemos plantar e colher até no deserto e, por piores que sejam as condições do solo brasileiro em algumas regiões, por certo são condições melhores que as do deserto. E há povos inteiros plantando no deserto, logo temos plenas condições de competição, não é verdade?
Repórter: E nosso subsolo? É mesmo tão rico?
D. Pedro II: Dona Carolina Josefa Leopoldina, minha mãe, era mulher de erudição. Estudiosa de mineralogia e de botânica mandara vir da Europa toda uma coleção mineralógica e, também, diversas plantas originárias do velho mundo para que aqui se aclimatassem. Alguns sábios naturalistas estiveram entre nós graças a seu empenho, tendo contribuído grandemente para que nossa cultura científica desse os primeiros passos. Infelizmente perdi mamãe quando tinha um ano apenas. Mas foi nos seus cadernos e apontamentos que pude ver desde logo que a riqueza do solo brasileiro no futuro não se limitaria ao ouro, a prata e as pedras preciosas como não se limitara no passado apenas à exploração do pau-brasil, da cana-de-açúcar, do fumo, e, depois, da borracha e do café. Chamou minha atenção em particular a possibilidade da extração de riquezas insuspeitadas para a época, como o petróleo, o quartzo, o nióbio... Mamãe acreditava - como eu também acredito - no imenso potencial de nosso país. Não sei se você sabe, mas somos hoje responsáveis por 97% das reservas mundiais de nióbio e por 98% das de quartzo. Ambos são metais indispensáveis e extraordinariamente valiosos no atual estágio de desenvolvimento do mundo moderno. Sem o nióbio não mais se concebem motores de foguetes espaciais, como sem o quartzo não há como prosseguir com a evolução da cibernética. E o que fazem nossos governantes hoje? Vendem a alma aos capitais internacionais, deixam-se facilmente corromper e entregam nossas riquezas a preços aviltados. Canalhas!
Repórter: Que tipo de projeção Vossa Alteza Imperial faz do futuro do Brasil?
D. Pedro II: Temos sido bem aventurados nestes mais de quinhentos anos desde a descoberta. Livres das grandes catástrofes naturais que tem dizimado tanta gente boa por esse mundo afora. Temos clima invejável, vegetação exuberante, praias belíssimas. E é bom não esquecer que também temos bola, carnaval, mulatas... Falta-nos fazer deste país um país que sirva nosso povo. De que nossa gente se possa orgulhar. Será pedir muito?
Repórter: Quero agradecer a Vossa Alteza Imperial por seu precioso tempo, pela paciência, pelas respostas fluentes, pela inteligência das ponderações e pela grande distinção que representou para mim a concessão desta entrevista. Mas, já que Vossa Alteza Imperial tocou no assunto bola e que o futebol tornou-se a verdadeira paixão nacional, permita-me perguntar: - qual é o time brasileiro a que a nobreza dá preferência?
D. Pedro II: Tenha certeza absoluta de que todos torcemos é pelo Brasil. Aposto com você que vamos levantar de novo a taça na África. Agora, respondendo diretamente à sua pergunta, acredito que talvez por uma questão de fidelidade ao passado, muitos da nossa família são torcedores do vetusto Clube de Regatas Vasco da Gama. Mas eu vou confessar a você: “...eu sou Flamengo e tenho uma nega chamada Tereza”. Isso é que é real; todo o resto é especulação.
A entrevista a seguir foi originalmente publicada no Blog http://lucabarbabianca.zip.net no dia 28 de abril de 2010.
Há algum tempo dei forma a uma entrevista imaginária com aquele que certamente é o último estadista que a História do Brasil nos concedeu. E, muito provavelmente, também o primeiro. Em épocas de escassez como a que vivemos - vacas magras, como se dizia antes - nada melhor do que resgatar aquilo que tivemos de bom no passado para nos fazer o presente menos indigesto. Comecemos supondo que a entevista está sendo concedida à hipotética Revista "Veja ora pois", numas tantas páginas verde-amarelas que, embora aparentem democrática independência em relação à linha editorial, recebem, antes da edição final, um tratamento que lhes põe em sintonia fina com o pensamento dos proprietários. Na verdade, ninguém sabe bem como é esse pensamento e nem se existe mesmo algum pensamento, mas não nos esqueçamos de que qualquer pretensa identificação entre a ficção e a realidade deve ser creditada à licença poética que todo autor se concede. Em outras palavras, qualquer semelhança entre o que veremos por aqui e acontecimentos reais havidos com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência. O que vale também para esta introdução. Outra coisa que precisa ser desde já esclarecida é que por sua generosa extensão a entrevista terá de ser publicada em partes. Portanto, como dizia o esquartejador, vamos por partes à entrevista imaginária com D.Pedro II.
Repórter: Vossa Alteza Imperial poderia declinar para nós o seu nome e o nome de seu pai completos?
D. Pedro II: Declinar é a palavra adequada. A profusão onomástica é uma característica dos herdeiros das casas reais. O nome completo de papai era: Pedro de Alcântara Francisco Antonio João Carlos Xavier de Paula Miguel Gabriel Rafael Paschoal Joaquim José Gonzaga Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon. E o meu: Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Habsburgo Bragança. Ufa!
Repórter: E por que tantos nomes, Deus do céu?
D. Pedro II: A principal função dos numerosos patronímicos dentre a nobreza é o sentido de prestar homenagem, reverenciar. Aos antepassados e aos santos de devoção. Meu nome, por exemplo, remete a São Pedro de Alcântara, padroeiro das famílias reais portuguesa e brasileira. Além disso, meu pai já era também Pedro de Alcântara, como há pouco lhe disse. João homenageia vovô, D. João VI, pai de papai, tal como Carlos é homenagem a minha avó Carlota Joaquina e, Leopoldo, à mamãe D. Leopoldina. Salvador reverencia a Nosso Senhor Jesus Cristo; Bibiano à virgem mártir Santa Bibiana, cujo dia é comemorado a dois de dezembro, dia do meu nascimento.
Repórter: Seus outros nomes também são homenagens?
D. Pedro II: São sim. Reverenciam São Francisco Xavier e São Francisco de Paula. O Leocádio é homenagem a Santa Leocádia, nobre padroeira de Toledo. Segue-se a referência aos três santos arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael e, ainda, uma respeitosa homenagem a São Luiz Gonzaga.
Repórter: Que personagem da nossa história julga Vossa Alteza Imperial que devesse ser mais bem lembrado? Alguém cujo exemplo de vida, na sua augusta opinião mereça ser seguido.
D. Pedro II: Muitos personagens da história pátria tem recebido até mais destaque do que fizeram por merecer, penso eu. Há, no entanto, uma figura que foi completamente esquecida e que, a meu ver, mereceria ser resgatada: Tebas. Consta que em meados do século XVIII, quando da construção da Catedral de São Paulo – no mesmo local em que hoje está a Catedral da Sé – as obras foram paralisadas porque não se encontrava quem aceitasse assumir a responsabilidade por erigir a torre. Na verdade as dificuldades técnicas que a empreitada apresentava eram julgadas acima dos recursos da engenharia da época. É nesse momento que se apresenta um negro escravo - Tebas - de quem até então ninguém ouvira falar e que expõe aos engenheiros o modo pelo qual achava que a torre devesse ser edificada. Desejava, em troca de orientar a construção, ser alforriado. Convencidos com a solução que lhes foi apresentada, os especialistas optaram por confiar a construção a Tebas em troca da alforria. A tarefa é cumprida com êxito e, em seguida, outra construção é delegada a Tebas: a torre de recolhimento de Santa Tereza. Seu feito mais notável, contudo, dá-se na ocasião em que se torna necessário um projeto para atender ao abastecimento de água do centro da cidade. Tebas imagina então um processo de canalização: constrói no Largo da Misericórdia um chafariz de pedra de cantaria e, por gravidade, conduz a água aí captada até o Vale do Anhangabaú. Como nessa época não existiam canos, Tebas os inventou fazendo-os de papelão betuminado. Canos que foram encontrados praticamente ainda funcionais no começo do século XX, quando eram feitas escavações no local em que hoje está a Praça das Bandeiras. Proponho aqui, se o nobre repórter me permite, um desafio aos pesquisadores patrícios: resgatar essa insigne figura esquecida, de quem nem o nome inteiro se sabe.
Repórter: Qual a opinião de Vossa Alteza Imperial: monarquia ou república?
D. Pedro II: Não creio que haja um regime político perfeito, imune a quaisquer críticas e acima de qualquer suspeita. Costuma-se ouvir às vezes que cada povo tem o governo que merece. Isso é um flagrante exagero; ninguém merece tanto assim, não é verdade? Agora veja: praticamente todas as almas tementes ao criador fazem menção ao Reino de Deus. E quando se quer bem adjetivar a um individuo probo e íntegro diz-se que tem nobreza de caráter. Poder-se-ia afirmar então que a monarquia é quase como se fosse divina. Ela foi imaginada para ser definitiva. Você, com certeza, já ouviu falar em república de estudantes – aquela bem conhecida bagunça – e jamais ouviu falar em república de Deus, certo? E, no entanto, a monarquia que foi pensada para ser perene, aqui em nosso sofrido Brasil, acabou dando lugar a uma república proclamada ‘provisoriamente’ por meio de um golpe deflagrado por um militar empedernido que se dizia muito meu amigo, apesar de me dever favores. E durma-se com um barulho desses!
Repórter: ‘Provisoriamente”? Vossa Alteza Imperial poderia nos explicar isso melhor?
D. Pedro II: Pois assim foi que ficou grafado para a posteridade:- “Fica proclamada provisoriamente e decretada como forma de governo a república...” O que inaugurou um hábito tipicamente brasileiro: deixar mesmo como definitivo o que era para ser provisório... Aliás, graças ao Patrocínio, o “Zé do Pato”, que teve a lembrança de publicar a dita proclamação no Diário Oficial do dia seguinte. Depois ficou meio desencantado com o rumo das coisas e andou se dedicando à navegação aérea com o seu malogrado aeróstato.
Repórter: Mas não é fato que logo depois da proclamação o Marechal Deodoro convocou a Assembléia Constituinte para elaborar a nova Carta Constitucional e fazer as coisas mais claras? Isso ainda durante o Governo Provisório, certo?
D. Pedro II: Estamos a ver! O próprio registro histórico, como você acaba de mencionar, vem de novo com o tal de ‘provisório’. Diga-se ‘en passant’ que o que se instalou com o golpe militar foi, na verdade, uma ditadura em que os governos das províncias foram depostos e substituídos por gente da confiança do Manuel Deodoro. E tem mais, no texto constitucional dos republicanos previa-se ainda que fosse realizado a seguir um plebiscito em que o povo deveria escolher entre monarquia e república. Isso acabou acontecendo realmente, só que mais de cem anos depois. Claro que nessa oportunidade todos aqueles que deveriam ter sido chamados para opinar já estavam completa e definitivamente mortos!
Repórter: A república então, pelo que diz Vossa Alteza Imperial, não veio para redimir a falta de democracia.
D. Pedro II: Pode estar certo disso! Basta ver como se formou o Congresso Constituinte instalado um ano após a proclamação. Manuel Deodoro determinou que os governadores das províncias – que ele mesmo nomeara – elaborassem as listas dos eleitores confiáveis, obedientes à sua orientação para, a partir daí, organizar o dito Congresso. Esse tipo de coisa aconteceu com freqüência, às vezes de modo disfarçado, às vezes de modo descarado. Parece-me que ainda acontece aqui e ali, ou seja, por todo canto.
Repórter: A república teria vindo então com o propósito de criar condições mais favoráveis ao crescimento e ao desenvolvimento do Brasil, seria isso?
D. Pedro II: A sua afirmação é, digamos assim, burlesca. Teria lá a sua comicidade não fosse ela tão penosamente dramática. Com o Manuel Deodoro, finalmente o nosso tribuno Rui teve o seu cobiçado ministério e ficou logo com as responsabilidades de gestão da economia. Não sei se por ingenuidade ou esperteza o fato é que o gênio baiano parecia acreditar mesmo que se devesse conceder à raposa a administração do galinheiro. E à águia os pintinhos, talvez. Que outra explicação haveria para dar aos bancos a atribuição de emitir moeda? E olhe que o “encilhamento” - é certo que coberto e recoberto de sucessivas camadas cosméticas - continua por aí até hoje. Aliás, nestes novos tempos de globalização é até pior, pois a ação do sistema financeiro como um todo está posta em ganhos sobre ganhos com dinheiro virtual, sem que se crie qualquer riqueza ou progresso generalizável. Dinheiro ficcional; que não existe. Dinheiro negociado, convertido, rentabilizado sem qualquer sustentação em ativos reais. Falemos francamente: dinheiro falso. Penso que não há desastre econômico pior do que o desastre decorrente daquelas medidas supostamente destinadas a evitar esse desastre.
Repórter: Vossa Alteza Imperial parece ter ficado magoado com a forma como se deram as coisas, mas a quase unanimidade dos estudiosos atribui a queda do Império Brasileiro ao fim da escravidão e às famosas questões religiosa e militar.
D. Pedro II: Pois é. E diz-se também que alguns outros fatores contribuíram para isso: eu não ter um herdeiro varão, Isabel ser casada com um estrangeiro que praticava agiotagem explícita, grandes proprietários de escravos inconformados com a perda de poder político, os tais positivistas e por aí vai. Considero que todos esses fatores merecem ser ponderados. Comecemos com a abolição, que se fez pacificamente sem que tivéssemos que enfrentar, como nossos irmãos da grande nação do norte, os horrores de uma sangrenta guerra civil. Foi o corolário natural de um processo lento e gradual – proibiu-se o tráfico, veio a Lei do Ventre Livre, libertaram-se os escravos com mais de sessenta anos – de forma que quando o João Alfredo levou a Lei Áurea para Isabel assinar, a continuidade na produção agrícola estava praticamente assegurada com a substituição do trabalho servil pelo remunerado. Acrescente-se que em muitos casos um trabalhador pago passou a custar mais barato do que um escravo para a mesma função. Se isso não desculpa a ignomínia que a escravidão representava, ilustra bem o quanto a mudança foi pouco generosa.
Repórter: Se me permite Vossa Alteza Imperial, como assim “trabalhador pago mais barato que escravo”? O escravo não trabalhava “de graça”?
D. Pedro II: Claro que não! Nem relógio trabalha de graça. Para começo de conversa, a mão-de-obra escrava tinha que ser comprada. E não custava pouco, na medida em que se costuma pagar caro por artigos importados. Já o trabalho livre passou a ser – como é até hoje – alugado. O primeiro representava um investimento inicial muito maior. Era preciso mantê-lo com saúde e bem alimentado para que pudesse render nas tarefas. Imagine que você compra um animal de raça – uma vaca holandesa ou um touro reprodutor indiano, por exemplo – ou você lhe dispensa todos os cuidados de trato e manejo ou corre o risco de perder o seu investimento! Já com o empregado a quem você atribui a função de cuidar da vaca ou do touro, sua única obrigação é pagar-lhe um salário. Cabe a ele – se souber ou puder – tirar desse salário alimentação, saúde etc. Veja: longe de mim fazer a apologia da escravidão, apenas lhe digo que a troca não foi generosa para com o trabalho, até porque foi patrocinada pelo capital!
Repórter: E o caso da chamada questão religiosa? Foi ou não importante para o advento da república?
D. Pedro II: A questão religiosa foi uma rematada tolice de bispos reacionários. No sistema de padroado que então vigorava, os religiosos eram pagos pelo Estado – uma espécie de funcionalismo público – e as indicações para os postos eclesiásticos eram da minha competência em acordo com a Santa Sé de Roma. Além disso, as bulas papais só valiam por aqui depois que eu desse o meu aval, digamos o “nihil obstat” do Imperador, se me permite. Portanto, não se justificavam questiúnculas com a maçonaria que, por sinal, já havia sido condenada pela Igreja com o Cardeal Lorenzo Orsini, quando ele se fez Papa Clemente XII. Por aqui, que eu saiba, a condenação papal só fez fortalecer a maçonaria. E pelo amor de Deus! Isso foi em 1730! No tempo da minha estimada bisavó! Aconteceu quase cem anos antes da nossa Independência que, não esqueçamos, teve grande ajuda de eminentes maçons, inclusive papai que também pertencia à maçonaria onde era o grão mestre Pedro Guatimozim. E, além disso tudo, apesar de que os bispos de Olinda e do Pará tivessem sido denunciados, julgados e condenados à prisão com trabalhos forçados, eu comutei-lhes as penas para prisão simples. Convenhamos que impor trabalhos forçados a padres é picardia excessiva. Depois, aquiesci ao pleito de Pio IX, o nobre Cardeal Giovanni Maria Conte Mastai-Ferreti di Sinigaglia, que intercedia por seus bispos: concedi-lhes a anistia e tudo terminou na mais santa paz.
Repórter: E as questões militares? Não foram determinantes da queda da monarquia brasileira?
D. Pedro II: A coisa toda começou com o Sena Madureira. O tenente cismou de criticar um projeto de reforma do montepio militar e mandou bronca pelos jornais, o que feria a hierarquia do exército. Depois de por os pés pelas mãos mais de uma vez acabou sendo exonerado do seu comando. Ainda que sempre sobrem ressentimentos nesses episódios, o assunto não repercutiu maiores conseqüências. Outro caso deu-se no Piauí e parece que dizia respeito ao desaparecimento suspeito de umas tantas fardas. De novo discussões pela imprensa e coisa e tal. O Manuel Deodoro, por essa época servia em Porto Alegre e permitiu que os oficiais da sua guarnição se reunissem para discutir o pedido de instalação de Conselho de Guerra formulado pelo Sena Madureira – ele de novo! Vai não vai, isto e aquilo e, no fim das contas, tudo ficou por isso mesmo.
Repórter: Então o que teria levado o Marechal Deodoro à ruptura com o império?
D. Pedro II: Bem, vamos a isso. Em meados de 1889 coube aos liberais a formação do ministério cuja chefia ficou a cargo do Visconde de Ouro Preto. O Rui Barbosa – que tinha atacado severamente o ministério anterior do conservador João Alfredo, aquele da Lei Áurea – esperava ser contemplado com alguma pasta. Inconformado por não ter sido lembrado, recomeçou suas catilinárias, agora contra Ouro Preto e os liberais.
A propaganda republicana recrudescia. Benjamin Constant – professor de matemática da Escola Militar – que nunca escondera sua condição de republicano e positivista convicto, fazia proselitismo junto ao Manuel Deodoro. O velho marechal, herói da guerra do Paraguai, era o militar de maior prestígio no exército. Tanto ele como Floriano haviam hipotecado inteira lealdade a mim e a Isabel. Não creio que nenhum deles fosse verdadeiramente republicano. O que fervia era o descontentamento com o ministério. Depois, por causa de um boato falando em prisão para Benjamin Constant e até mesmo para o Manuel Deodoro é que os ânimos se exaltaram mais. O marechal ora mantinha-se fiel a monarquia, ora ameaçava deixar-se seduzir pelo poder que os republicanos lhe prometiam. Na manhã do dia quinze de novembro, depois de uma noite mal dormida – sim, porque estava enfermo o estafermo! - vestiu as calças de um uniforme e o casaco de outro e nem forças para meter a espada à cinta teve. Foi praticamente carregado para o Campo da Aclamação onde cercou o ministério do Afonso Celso exigindo a derrubada do gabinete e, à frente da tropa, agitou o quepe no ar e deu vivas ao Império: “Viva o Imperador!” E a tropa: “Para sempre viva!”. O professor Benjamim Constant Botelho de Magalhães ordenou uma salva de artilharia que encobriu a troca de saudações e o alarido da tropa, enquanto outros positivistas fanáticos gritaram vivas à República, apostando no impasse. Eu estava propenso a ceder às articulações, mas alguém mandou dizer ao Manuel Deodoro que o Gaspar Silveira Martins iria ser indicado por mim para chefiar o novo gabinete. O Manuel Deodoro ficou uma fera. Achou talvez que eu mofava dele com essa suposta indicação. Alias, só depois é que fiquei sabendo que além de divergências políticas ainda havia entre os dois o caso mal resolvido com uma certa dama da sociedade de Porto Alegre que era muito chegada, por assim dizer, às relações de ambos. No meu entender foi essa última e prosaica circunstância que precipitou tudo.
Repórter: Muitos historiadores consideram-no como tendo sido um monarca de conduta liberal e até simpático ao ideário dos republicanos...
D. Pedro II: Não se pode condenar esses estudiosos por terem lá suas idéias. O que acontece é que o historiador não tem como comprovar suas hipóteses com experiências de laboratório, não trabalha com uma ciência exata. O que ele faz são conjecturas, comparações, ilações; busca nexos capazes de preencher um enredo que dê textura aos fatos. E como a história é, via-de-regra, contada pelos vencedores, sempre haverá maquilagens, impropriedades e exageros.
Repórter: Devo entender que Vossa Alteza Imperial não era nem nunca foi simpático aos ideais republicanos. É isso?
D. Pedro II: Veja bem: - Eu, diferentemente de vovô, fui preparado desde o berço para ser um estadista. Tive os melhores preceptores e os mais ilustres mestres do meu tempo. Instruíram-me com profundidade na língua portuguesa e nas literaturas de Portugal e do Brasil. Adquiri fluência no Francês, no Inglês, no Italiano e no Alemão. Tive esmerada educação que incluiu o estudo da geografia, da economia, da geopolítica, das ciência sociais e das ciências naturais. O aprendizado de música, artes, fotografia, pintura, equitação e esgrima completaram a minha formação. Foi durante o meu longo e soberano período de governo – os quase cinqüenta anos do segundo reinado – que o Brasil consolidou sua integridade territorial, sua unidade de língua e sua identidade como nação verdadeiramente continental. No exercício do poder fui rigorosamente um patriota que amou seu país e seu povo. Agora eu pergunto: - Que tipo de estadistas a república nos tem apresentado?
Repórter: Mas Vossa Alteza Imperial discorda de que a república represente muito melhor as liberdades democráticas do que a monarquia?
D. Pedro II: Preciso deixar claro que defendo a monarquia constitucional e parlamentar; não sou nem nunca fui adepto das monarquias absolutistas. Para mim, nem despotismo esclarecido nem por esclarecer! E tampouco ditaduras! Alias, ditaduras são próprias das repúblicas. Na origem a república de Platão já era uma ditadura. Veja o meu caso: - Fiz um governo rigidamente honesto e equilibrado. Procurei por todos os meios ao meu alcance praticar lealdade e justiça para com toda a gente. E representei, acima de tudo, a plena garantia das liberdades de pensamento e de expressão. Talvez por este último atributo é que os menos avisados me tenham tomado por um liberal simpático à república. Lembremo-nos da velha e sempre nova máxima de Voltaire, o Senhor de Arouet: “Ainda que não concorde com uma só palavra do que dizes, defenderei até a morte o teu direito de dizê-las”. Essas palavras são o mais belo exemplo de postura democrática que eu conheço.
Repórter: Vossa Alteza Imperial poderia elucidar melhor esse seu pensamento sobre a monarquia constitucional parlamentar?
D. Pedro II: As atribuições de chefe de estado e chefe de governo estão nitidamente separadas na monarquia constitucional parlamentar. O chefe de estado é o monarca hereditário: representa a Nação, convoca eleições, indica o primeiro ministro, sanciona leis. Em suma, exerce o poder Moderador, mantendo a harmonia e o equilíbrio entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. O governo propriamente dito é exercido pelo primeiro ministro, geralmente o líder do partido majoritário. É o partido ou coligação com maioria no Parlamento que forma o governo.
Repórter: Vossa Alteza Imperial fala em eleições, partidos e coligações. Na república também temos toda essa parafernália e, no parlamentarismo, até primeiro ministro...
D. Pedro II: Observe bem como é que entre nós tem-se desenrolado a história republicana. Uma sucessão permanente de crises. Crise após crise, datadas pontualmente do dia da posse ao último dia de cada mandato. E isso quando os mandatos são completados – o que nem mesmo é a regra geral! O certo é que quando um governante assume, junto com a posse instala-se a crise sucessória. E esse mesmo governante também já se põe em campanha novamente! Na verdade a república, mormente a nossa que é presidencialista, vive em crise perene.
Repórter: Será que Vossa Alteza Imperial poderia nos explicar melhor no que consiste essa “crise perene”?
D. Pedro II: Muito bem. Crise perene da república é essa inconstância, essa instabilidade, essa turbulência, essa ausência de projeto nacional estável que corrompe a democracia. Essa crise está na essência da república, mas na monarquia ela não encontra guarida. Um monarca hereditário, preparado desde o nascimento para as altas funções de estado e de diplomacia, não precisa se preocupar com os palanques e as palavras vazias e está de mãos soltas e limpas para, pelo exercício do poder Moderador, assegurar a harmonia entre os demais poderes e a gerir a Nação de forma a garantir a divisão mais fraterna da prosperidade e do conhecimento. A república, ao contrário, tem-se esmerado em disseminar a ignorância e a pobreza. Chama pomposamente de projetos sociais aos remendos de discriminação e indiferença que tece e que se reduzem à institucionalização da esmola assistencialista sem tocar nem de leve na estrutura viciada e crudelíssima geradora, essa sim, da miséria generalizada. Esses pseudo programas, em última instância se resumem a distribuição das sobras da riqueza principalmente às crianças magras e aos velhos doentes que o sistema social injusto teima em produzir.
Repórter: Por falar em crianças e velhos, se me permite, parece que os livros didáticos de História do Brasil fizeram blague com Vossa Alteza Imperial transformando-o talvez no único filho muito mais velho que o próprio pai. Sabe, neles as fotos parecem ter sido trocadas: o pai, um rapagão bem apanhado, e o filho um senhor de longas barbas brancas...
D. Pedro II: Papai sempre foi um homem jovial, intempestivo, irreverente e, por vezes, até irresponsável. Além disso morreu muito cedo, com apenas trinta e seis anos. Não teve tempo de envelhecer para uma foto em barbas brancas. Outra coisa: papai teve vida aventurosa, duas esposas, várias mulheres e prole de dúzia e meia de filhos!
Por minha parte sempre fui um temperamento mais soturno, introspectivo, meditabundo e sorumbático. Antes mesmo de completar meus quinze anos já estava Imperador e no exercício do cargo. Convenhamos que um garoto com um destino tão prodigioso havia de ser um velho precoce. Mas na questão das fotos – meu pai com vinte e poucos e eu com cinqüenta e muitos – direi que sinto que fui mesmo barbarizado, com trocadilho e tudo.
Repórter: A vida amorosa de D.Pedro I sempre foi tratada pela história de modo superficial, banalizado, como se tudo fosse ou pecado ou intriga. O que Vossa Alteza Imperial pode nos dizer de Dona Domitila de Castro Canto e Melo? Consta que teve um caso com seu pai de 1822 até 1829, quando ele casou-se em segundas núpcias com a Princesa Dona Amélia.
D. Pedro II: Meu pai morreu quando eu tinha nove anos; não posso lembrar muita coisa dessa época. Mas sei que a Marquesa de Santos foi mulher das relações de papai. Dona Domitila teve ao todo cinco filhos com o prolífero senhor meu pai. Por essa época ele costumava dizer que não era tanto pela monarquia, era mais pela monogamia, o que para ele significava uma mulher de cada vez. Mas fazia isso com toda a nobreza! Para dizer a verdade, fez também até com uma monja!
Repórter: Já que estamos falando de D. Pedro I, aquelas estórias da viagem a Santos montado num burro e de que o Grito do Ipiranga decorreu de uma indisposição gastrintestinal tem alguma coisa de verdade?
D. Pedro II: Muito bem. Vamos aos fatos. Estamos em setembro de 1822. Reza a crônica historiográfica que “no dia cinco o Imperador e toda sua comitiva vai de São Paulo a Santos”. Note-se: àquela época levava-se de São Paulo a Santos a bagatela de uma semana de viagem no lombo de uma boa montaria. Portanto papai não tinha ido a Santos (a cidade) mas sim à Santos (a marquesa) cuja residência ficava bem mais perto, em São Paulo mesmo; por isso os mensageiros vindos esbaforidos do Rio de Janeiro encontram a comitiva ali às margens do Riacho do Ipiranga, no dia sete de setembro - dois dias depois do dia cinco - como todos sabemos. Outra coisa: papai não montava aquele magnífico cavalo imaginado pelo insigne pintor patrício Pedro Américo; montava uma “mula baia gateada, animal excelente”. E a dar-se crédito ao testemunho do Padre Belchior Pinheiro que estava presente e a tudo assistiu, “vinha de quebrar o corpo à margem do riacho Ipiranga, agoniado por uma desinteria com dores”. Agora veja; estes fatos não descoram o brilho daquilo que então acontece: papai “abotoando-se e compondo a fardeta” monta e, voltando ao local onde a comitiva o aguarda, berra luzitanamente: - “Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus... Independência ou Morte!” Acho pessoalmente que papai, no caso, obrou muito bem.
Repórter: Vossa Alteza Imperial pode nos esclarecer se procede a estória de que o verde da bandeira representa nossas matas, o amarelo, nosso ouro e o azul, nosso céu?
D. Pedro II: Essas ingenuidades são cheias de poesia, não é mesmo? Após a Independência o país necessitava de uma bandeira e logo se pensou no verde e no amarelo para homenagear respectivamente as cores da Casa de Bragança, de papai, e da Casa de Habsburgo-Lorena, de mamãe. Régis Debret – o inigualável desenhista e ilustrador – a quem foi confiada a tarefa da confecção do pavilhão nacional, traçou, sobre um retângulo verde, um losango amarelo contendo o Brasão do Império. Depois, com a chegada da República, substituíram o Brasão pelo círculo azul estrelado e nele imprimiram a legenda: Ordem e Progresso. Na verdade a expressão positivista de Auguste Comte falava em “Amor, ordem e progresso” contudo os republicanos acharam melhor banir definitivamente o amor da nossa bandeira. Se você quer saber minha opinião, eu achava a bandeira imperial mais bonita.
Repórter: Como Vossa Alteza Imperial vê o Brasil de hoje?
D. Pedro II: Somos uma nação com a extensão territorial de um quase continente. Se o nosso solo não é bem aquele que o Caminha referiu como o “em se plantando tudo dá”, tampouco está muito longe disso. Hoje, com preparo e manejo adequados, até em regiões desérticas pode-se praticar com sucesso a agricultura e a pecuária. Já virou chavão dizer-se: - “Brasil, celeiro do mundo!”; isso sem falarmos nas imensas riquezas do nosso subsolo!
Repórter: Sabemos todos que Vossa Alteza Imperial, eterno apaixonado pela pátria, continua ainda hoje e continuará sempre, de onde quer que esteja, a observar atentamente o desenvolvimento brasileiro e a torcer pelo Brasil. Mas, geologicamente falando, nosso solo é que é o verdadeiro “velho mundo”. Nossas terras agricultáveis são, em geral, pobres em fósforo e tanto as plantações como a criação se ressentem de carências nutricionais de macro e micro elementos. E nos dois casos a correção do solo encarece a produção. Se essas afirmações são corretas, como ficamos?
D. Pedro II: Em primeiro lugar, devo dizer que todas essas ponderações que você fez procedem. Nunca afirmei que o futuro nos sorriria por obra do acaso. Há que trabalhar e trabalhar duro para construí-lo digno e próspero. Mas, como já lhe disse, hoje podemos plantar e colher até no deserto e, por piores que sejam as condições do solo brasileiro em algumas regiões, por certo são condições melhores que as do deserto. E há povos inteiros plantando no deserto, logo temos plenas condições de competição, não é verdade?
Repórter: E nosso subsolo? É mesmo tão rico?
D. Pedro II: Dona Carolina Josefa Leopoldina, minha mãe, era mulher de erudição. Estudiosa de mineralogia e de botânica mandara vir da Europa toda uma coleção mineralógica e, também, diversas plantas originárias do velho mundo para que aqui se aclimatassem. Alguns sábios naturalistas estiveram entre nós graças a seu empenho, tendo contribuído grandemente para que nossa cultura científica desse os primeiros passos. Infelizmente perdi mamãe quando tinha um ano apenas. Mas foi nos seus cadernos e apontamentos que pude ver desde logo que a riqueza do solo brasileiro no futuro não se limitaria ao ouro, a prata e as pedras preciosas como não se limitara no passado apenas à exploração do pau-brasil, da cana-de-açúcar, do fumo, e, depois, da borracha e do café. Chamou minha atenção em particular a possibilidade da extração de riquezas insuspeitadas para a época, como o petróleo, o quartzo, o nióbio... Mamãe acreditava - como eu também acredito - no imenso potencial de nosso país. Não sei se você sabe, mas somos hoje responsáveis por 97% das reservas mundiais de nióbio e por 98% das de quartzo. Ambos são metais indispensáveis e extraordinariamente valiosos no atual estágio de desenvolvimento do mundo moderno. Sem o nióbio não mais se concebem motores de foguetes espaciais, como sem o quartzo não há como prosseguir com a evolução da cibernética. E o que fazem nossos governantes hoje? Vendem a alma aos capitais internacionais, deixam-se facilmente corromper e entregam nossas riquezas a preços aviltados. Canalhas!
Repórter: Que tipo de projeção Vossa Alteza Imperial faz do futuro do Brasil?
D. Pedro II: Temos sido bem aventurados nestes mais de quinhentos anos desde a descoberta. Livres das grandes catástrofes naturais que tem dizimado tanta gente boa por esse mundo afora. Temos clima invejável, vegetação exuberante, praias belíssimas. E é bom não esquecer que também temos bola, carnaval, mulatas... Falta-nos fazer deste país um país que sirva nosso povo. De que nossa gente se possa orgulhar. Será pedir muito?
Repórter: Quero agradecer a Vossa Alteza Imperial por seu precioso tempo, pela paciência, pelas respostas fluentes, pela inteligência das ponderações e pela grande distinção que representou para mim a concessão desta entrevista. Mas, já que Vossa Alteza Imperial tocou no assunto bola e que o futebol tornou-se a verdadeira paixão nacional, permita-me perguntar: - qual é o time brasileiro a que a nobreza dá preferência?
D. Pedro II: Tenha certeza absoluta de que todos torcemos é pelo Brasil. Aposto com você que vamos levantar de novo a taça na África. Agora, respondendo diretamente à sua pergunta, acredito que talvez por uma questão de fidelidade ao passado, muitos da nossa família são torcedores do vetusto Clube de Regatas Vasco da Gama. Mas eu vou confessar a você: “...eu sou Flamengo e tenho uma nega chamada Tereza”. Isso é que é real; todo o resto é especulação.