Uma "entrevista" com Yde (Adelaide) Schloenbach Blumenschein

Para saber um pouco sobre o que queria a mulher do século XIX, esta entrevista de cunho ficcional concede a palavra a uma delas: Yde (Adelaide) Schloenbach Blumenschein.

O texto a seguir cria o que seria um diálogo com Yde e deve integrar uma pesquisa sobre a participação da mulher brasileira nas letras do século XIX.

A formulação do texto da entrevista foi conseguida a partir das informações pesquisadas em fontes eletrônicas. Tentamos, dessa forma ficcional, reviver a memória da importante brasileira do século XIX, trazendo-a para os dias atuais e lançando-lhe como tema a pergunta de Freud: o que quer a mulher?

Entrevistada_ Antes de dar a resposta sobre o que quer a mulher, preciso me apresentar, combinado? Assim fico mais íntima. Meu nome completo é Yde (Adelaide) Schloenbach Blumenschein, nasci no dia 26 de maio de 1882. Meu pai se chamava Otto Schloenbach e minha mãe, Adelaide Augusta Dorison. Estudei durante algum tempo na Alemanha. Por apreciar muito o estudo das línguas, terminei me tornando poliglota. Falo alemão, francês, inglês, espanhol e italiano. Então, tudo o que fiz foi por amor às letras, à cultura, às artes. Também estudei piano e canto. Desde os meus treze anos de idade que escrevo e até publiquei meus primeiros poemas em um jornal do qual ainda me recordo do nome. Era A Tribuna, da cidade de Santos. Colaborei em revistas e outros jornais: O Malho, Fon-Fon, Careta e Jornal das Moças. Era gratificante tudo isto e, tanto eu, quanto outras mulheres usávamos pseudônimos. Assinei meus trabalhos como Colombina, Paula Brasil e ganhei os cognomes de Cigarra do Planalto e Poetisa do Amor. Isto começou porque a sociedade não aceitava que nós exercêssemos atividades intelectuais públicas.

Entrevistadora_ Bonitos os seus pseudônimos. Atualmente os pseudônimos estão em moda. Especialmente no cinema e na televisão, são inúmeros os artistas cujos nomes conhecidos não são os de batismo. Falemos agora de casamento. Sabemos que, na sua época de juventude, era quase como uma obrigação para a mulher. E você, casou? Diga-nos sobre isto.

Entrevistada_ Sim, fui casada com Hanery Blumenschein, tivemos dois filhos. Mas veio a separação, o desquite e foi um verdadeiro escândalo. A mulher desquitada não era aceita socialmente, mas apontada, ridicularizada, menosprezada.

Entrevistadora_ Yde, tenho informações de que suas sobrinhas-netas mencionaram a sua elegância, seu talhe esguio e seus belos olhos azuis e, além do que, outras fontes dão conta de seus modos de mulher independente e que até fumava em público, frequentava reuniões literárias e organizava serões. O que você nos diz sobre tais afirmações?

Entrevistada_ Quanto à beleza, deixo que os outros tenham a palavra, rs rs rs. Esse sentido de liberdade e de independência são mesmo traços de minha personalidade e que transparecem na minha obra. Quanto à atividade em torno da cultura, no ano de 1932, tive a iniciativa de fundar a Casa do Poeta Lampião de Gás. Funcionava em minha residência e nos reuníamos para trocar ideias e compartilhar nossos trabalhos, mas só no dia 7 de novembro de 1948, a instituição foi oficializada. Meus amigos preferiram este nome por corresponder ao título de um livro de poemas que escrevi. Naquela época dirigi a casa e também estive à frente da publicação mensal do jornal O Fanal.

Entrevistadora_ Sua poesia é lírico-amorosa, principalmente. Em alguns poemas há uma característica mais acentuadamente transgressora, rompendo com as tradições burguesas. Nesses poemas você fala de desejos carnais, voluptuosidades. A crítica foi impiedosa com você, assim como o foi com outras poetas, a exemplo do que ocorreu com Delmira Agustini, a poeta uruguaia. Esse clima de intolerância por parte da crítica à manifestação da sensualidade feminina vai se encontrar com o lançamento de seu último livro, Rapsódia Rubra: Poemas à Carne - contendo poemas eróticos. O que gostaria de comentar a respeito desses aspectos?

Entrevistada_ Sim, tudo isto ocorreu, mas não por isto me intimidei. Gostaria de aproveitar este momento para declamar dois dos meus poemas: Vertigem e Intimidade. Assim, você tira as suas conclusões. Vertigem, diria, é mais “comportado” do que Intimidade. Em Vertigem o que há é um sentimento de paixão, uma semana de amor intenso e um beijo flamejante finalizando o texto. Já em Intimidade, como o diz o título, avanço um tanto mais, sou mais atrevida, refiro-me à nudez e às cenas envolventes e muito sensuais do ato amoroso. Ousei bastante, não? Mas valeu a pena e eu faria tudo outra vez.

VERTIGEM

Uma semana só. Nem mais um dia

durou aquela estranha sensação

que nos aproximava, nos unia...

e amor não era e nem era paixão.

Algo em mim te agradava, te atraía.

Tu tinhas para mim tal sedução

que, tendo-te ao meu lado, eu me sentia

a mulher mais feliz da criação.

Uma semana só... No meu caminho

um vislumbre de sol e de carinho:

uma sombra, talvez, na tua estrada...

Sete dias ardentes de Novembro...

Deves ter esquecido. E eu só me lembro

que nunca fui com tanto amor beijada!

INTIMIDADE

Toda alcova em penumbra. Em desalinho o leito,

onde, nus, o meu corpo e o teu corpo, estirados

na fadiga que vem do gozo satisfeito,

descansam do prazer, felizes, irmanados.

Tendo a minha cabeça encostada ao teu peito,

e, acariciando os meus cabelos desmanchados,

és tão meu…Sou tão tua. Ainda sob o efeito

da louca embriaguez dos momentos passados.

Porém, na tua carne insaciável, ardente,

o desejo reacende, estua…E, de repente,dos meus seios em flor beijas a rósea ponta…

E se unem outra vez a lúbrica bacante

do meu ser e o teu sexo impávido, possante,

na comunhão sensual das delícias sem conta…

Entrevistadora_ (Aplausos incontidos). Sim, são muito bons os seus poemas, são muito vivos e atuais, demonstram uma poeta de personalidade vibrante e cujos versos demonstram a sua veia poética, talento e maestria. Da forma precisa e contundente como você utilizou a linguagem foi possível ver a cena em toda a sua riqueza erótica. Ainda gostaria de frisar o seu desempenho com o soneto. Além do trato com o rigor da forma, sua reflexão chega a ser filosófica em

A CARNE

Exiges. É ciumenta e egoísta. Não admites

qualquer rivalidade, ou que algo te suplante.

És forte e audaz no teu domínio sem limites...

capaz de transformar a vida num instante.

És mísera e brutal. Mas, nada obsta que agites

e açambanques o mundo, e que esta alucinante

e estranha sensação que aos humanos transmites,

tenha, como nenhuma, um halo deslumbrante.

Oh, carne que possuis no teu imo maldito

mais lodo que contém num charco pantanoso,

mais esplendor, também, que os astros do infinito...

Rugindo de volúpia e de sensualidade,

espalhando na terra apoteoses de gozo,

ó, carne, serás tu a única verdade?

Entretanto, Yde, em seu soneto Espírito, você nos sugere renegar a crueza da questão materialista levantada no soneto Carne, e, então, percebe a perspectiva da espiritualidade. Posso ler o seu soneto?

ESPÍRITO

Não! A verdade és tu! A tua flama pura

sobre a matéria e além dos séculos cintila!

Plasmas o sonho e dás à humana criatura

forças para vencer a própria triste argila.

Conduzes ao saber, a ti pertence a altura;

tudo que é belo vem da tua luz tranquila.

Sem ti seria o mundo uma caverna escura;

nem a morte cruel te vence ou te aniquila.

Revelação de Deus, de toda a Sua imensa

sabedoria, que dizendo ao homem: pensa!

no cérebro lhe pôs a forja das ideias.

Sim, a verdade és tu, espírito que elevas

as criaturas; tu, que enches de luz as trevas,

transformando a miséria e a dor em epopeias!

O desentendimento entre casais, a traição, a revolta contra o amado, os momentos de fúria comuns a todas as mulheres, a declaração do fim do relacionamento amoroso, o clímax da discussão e todo o clima de refinada sensualidade que inunda a cena no quarto até que os dois se envolvem e o amor e a sexualidade saem vitoriosos _ ah, Adelaide, tudo isto ficou de tal forma dito nos versos de Rusga que chega a nos impressionar e a nos fazer rever a cena se passando conosco. Que mulher nestes seus versos não se reconheceria? Permita-me a leitura, sim?

RUSGA

Vai-te! Não quero mais saber de ti; maldito

e cínico traidor! - exclamo, revoltada.

Não quero mais te ver - furiosa, repito.

Acabou-se. Entre nós não pode haver mais nada!

E a cada instante mais me enraiveço e me excito:

digo-lhe algo pior do que uma bofetada...

Ele reage e entre nós vai-se armando um conflito,

desenrolado atrás de uma porta fechada...

E, louca, em meu furor, continuo a insultá-lo.

Porém, não sei porque, de repente, me caio,

nos seus braços viris sentindo-me espremida.

A briga terminou sobre o leito macio:

e nunca foi tão louco o nosso desvario

e nem houve jamais gozo maior na vida.

Agradeço a você, Yde, a oportunidade deste diálogo que contribui para que os professores e os alunos conheçam o trabalho desenvolvido pela mulher do século XIX, pela luta da mulher em função de incluir sua voz, seu trabalho em prosa ou em verso numa sociedade preconceituosa e marcadamente excludente no que diz respeito à participação feminina na construção da literatura brasileira e da própria cidadania.

Entrevistada_ eu me sinto emocionada, agradecida e feliz pela oportunidade que me foi dada, congratulo-me com a mulher do século XXI por dar continuidade à obra iniciada por um grupo de mulheres que acreditou na mudança. E para responder à pergunta de Freud, acrescento que, isto que fiz, o que as outras fizeram e o que as de hoje continuam fazendo é o que a mulher quer. Que a nossa voz jamais seja silenciada.

REFERÊNCIAS

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