As Veias Abertas da América Latina
Eduardo Galeano é um dos escritores, jornalistas e historiadores mais conceituados da América Latina. Sua obra clássica é As veias abertas da América Latina. Entre outros livros desse autor estão O livro dos abraços, Nós dizemos não e a premiada trilogia Memória do fogo. Sob as tonalidades suaves e envolventes do discurso uruguaio de Galeano, há um intelecto aguçado, infundido com sensibilidade poética, sagacidade mordaz e compromisso com a justiça social.
Nascido em Montevidéu, em 1940, foi editor de vários jornais e publicações, entre os quais o diário La Época. Em 1973, exilou-se na Argentina, onde fundou e editou a revista Crisis. Um crítico contundente da mídia e do consumismo, Galeano escreve em Nós dizemos não:
Os meios de comunicação de massa não revelam a realidade; mascaram-na. Não ajudam a gerar mudança; ajudam a evitá-la. Não incentivam a participação democrática; induzem à passividade, à resignação e ao egoísmo. Não geram criatividade; criam consumidores.
Em seu livro Dias e noites de amor e guerra, ele explica por que faz o que faz:
Escreve-se em conseqüência da necessidade de se comunicar e reunir-se com os outros, para denunciar o que causa dor e compartilhar o que traz felicidade. Escreve-se contra a própria solidão e contra a solidão do outro...Despertar a consciência, revelar a identidade – será que a literatura pode reivindicar melhor função nos dias de hoje?
As veias abertas da América Latina vendeu mais de um milhão de cópias e foi traduzido para muitos idiomas. Você o escreveu em três meses, que é um período de tempo excepcionalmente curto. Como você gerou essa explosão de energia?
Café. O verdadeiro autor desse livro foi o café. Eu bebi oceanos de café porque, na época, em 1970, pela manhã eu trabalhava na universidade em Montevidéu no cargo de editor de publicações universitárias. À tarde, eu trabalhava para editoras privadas, também como editor, reescrevendo e corrigindo livros sobre qualquer assunto que você possa imaginar, por exemplo, a vida sexual dos mosquitos. Depois, de sete ou oito da noite até cinco ou seis da manhã, escrevia As veias Abertas. Não dormir durante três meses, mas foi uma propaganda para as virtudes do café. Portanto, cuidado com ele, se não quer se tornar um esquerdista.
Qual a razão do poder de permanência do livro?
Masoquismo talvez. Não consigo entender. O livro dá muitas informações históricas ao leitor não especializado. Não descobri os fatos que relato em As veias abertas. Tentei reescrever a história em uma linguagem que pudesse ser entendida por qualquer um. Talvez seja por isso que o livro faz tanto sucesso. No início, não fez nenhum, mas, depois, ele abriu o próprio caminho e continuou prosseguindo e ainda o faz.
Talvez a ideia central do livro, que pode funcionar como uma coluna vertebral, seja a de que não se pode confundir uma anão com uma criança. Ambos têm o mesmo tamanho, mas são muito diferentes. Portanto, quando ouvimos todos os tecnocratas falarem sobre os países em desenvolvimento, estão sugerindo que vivemos nos primórdios do capitalismo, afirmativa que não é verdadeira. A América Latina não é uma etapa no caminho para o desenvolvimento. Ela é o resultado do desenvolvimento – o resultado de cinco séculos de história.
Você poderia ter uma vida confortável escrevendo para revistas ou lecionando em universidades, mas há muito tempo resolveu trabalhar a favor dos que não têm voz.
Acho que todos têm esse direito. Todos têm algo a dizer e que merece ser ouvido. Portanto, nunca ostentei essa atitude de me tornar a voz dos que a têm. O problema é que apenas alguns têm o privilégio de ser ouvidos. Não sou mártir, nem herói.
Todos nós temos o direito de conhecer e de nos expressar, o que hoje é dificílimo se estivermos obedecendo a ordens de uma ditadura invisível. É a ditadura da palavra, da imagem, da melodia isolada, talvez a mais perigosa de todas as ditaduras, porque age em escala mundial. É uma estrutura internacional de poder que impõe valores universais centrados no consumo e na violência. Ou seja, você é o que possui. Se não possui nada, não é. O direito de ser depende de sua capacidade de compra. A pessoa é definida pelo que possui. É como se você fosse dirigido por seu carro, comprado pelo supermercado, visto pela tela da TV, programado pelo computador. Nós nos tornamos ferramentas de nossas ferramentas.
Existe um fim para esse ciclo?
Se a sociedade de consumo impuser seus valores ao mundo todo, então o planeta desapareceria. Não podemos bancar isso. Não temos ar, terra ou água suficientes para pagar o preço desse desastre.
O modelo imposto à América Latina não é Amsterdã, Florença ou Bolonha; nessas cidades, os carros não são os donos das ruas. São cidades com bicicletas, transporte público, pedestres, das quais as pessoas sentem-se donas. Cidades que proporcionam um lugar comum. As cidades nasceram da necessidade humana de reunião, em conseqüência de: “Quero encontrar meus amigos. Quero estar com outras pessoas.” Hoje, as cidades são lugares onde as máquinas encontram máquinas. Nós, humanos, tornamo-nos intrusos.
E com o que queremos parecer? Com Los Angeles, uma cidade onde os carros ocupam muito mais espaço do que as pessoas. Trata-se de um sonho impossível. Não podemos nos tornar outrem. Se o mundo inteiro tiver a mesma quantidade de carros que os EUA, com sua proporção de um carro por habitante, o planeta explodirá. Contaminaremos o ar, a terra, as águas, as almas humanas. Tudo será contaminado.
Quando um presidente latino-americano diz em seu discurso: “Estamos nos tornando parte do Primeiro Mundo”, para começo de conversa, ele está mentindo. Em segundo lugar, isso é quase impossível. E em terceiro, ele deveria estar preso porque isso é incitar ao crime. Se dissermos: “Queremos que Montevidéu se transforme em Los Angeles”, estaremos fazendo um convite à destruição de Montevidéu.
Há muitas pessoas nos EUA que, quando pensam na América Latina, imaginam uma praia extensa, um playground, de Cancun e Acapulco a Copacabana e Mar del Plata. Ou imaginam uma faceta ameaçadora e intimidante: os bandidos do narcotráfico, guerrilhas de esquerda e favelas. Qual a sua opinião da atitude dos Estados Unidos em relação à América Latina?
Fico perplexo, cada vez que vou aos EUA, com a ignorância de elevada porcentagem da população, que, praticamente, nada sabe sobre a América Latina ou sobre o mundo em geral. Ela é cega e surda a tudo o que acontece fora das fronteiras de seu país.
Essa ignorância do que está acontecendo fora dos Estados Unidos implica um grau elevado de impunidade. O poder militar pode fazer o que bem entender, porque a população não tem ideia de onde é Kosovo, Iraque, Guatemala ou El Salvador. E ela não tem ideia, por exemplo, de que séculos antes da fundação de Nova York, Bagdá tinha um milhão de habitantes e uma das culturas mais elevadas do mundo.
A mesma coisa é válida para “nossa” América, a outra América – não somos apenas ecos da voz do amo.
Nem a sombra do corpo dele.
Até mesmo as classes dominantes, na América Latina, sonham em se tornar sombras e ecos. Sempre digo que o pior pecado da América Latina é o da estupidez, porque gostamos de olhar para nossa própria caricatura. Por exemplo, quando encontro latino-americanos aqui nos Estados Unidos, dizem: “Agora estou na América”. Ah, você agora está na América porque está nos Estados Unidos. Onde estava antes? Na Groenlândia? No Japão? Aceitamos essa visão distorcida de nós mesmos ao olharmos no espelho que nos despreza e ridiculariza.
Você escreve sobre a injustiça da pobreza.
Temos injustiça em grande escala. A diferença, a lacuna entre ricos e pobres, em aspecto material, multiplicou-se desde que escrevi As veias Abertas. O relatório mais recente da ONU diz que 225 indivíduos possuem uma fortuna equivalente à quantia total do que a metade da humanidade ganha. É uma distribuição muito injusta de pães e peixes.
Mas, ao mesmo tempo, o mundo iguala-se nos hábitos que impõe. Estamos condenados a aceitar a uniformização global, como se fosse uma mcdonaldização do mundo todo. Trata-se de uma forma de violência contra todos os mundos que o mundo contém. Costumo dizer que rejeito a ideia de ser obrigado a escolher entre duas possibilidades: morrer de fome ou de tédio. Diariamente, praticamos um tipo de massacre de nossa capacidade de diversidade, de termos diversas formas de viver a vida, de comemorar, de comer, de dançar, de sonhar, de beber, de pensar e de sentir – que não percebemos, pois ele é invisível, secreto, e que nos obriga, cada vez mais, a aceitar um único caminho, que é, em sua maioria, produzido em fábricas dos Estados Unidos.
Você abraçou a política radical ainda muito jovem. Foi influência da família?
Não, foi meu fígado. Talvez eu ainda esteja tentando organizar a indignação. Minha mente, que não é exatamente brilhante, às vezes serve para organizar meus sentimentos, tentar dar sentido a eles, mas o processo vem do sentimento para o pensamento, e não ao contrário.
Na política, como em tudo o mais, sempre busco uma comunhão; talvez impossível, mas desejável; entre o que penso e o que sinto, que é também uma intenção de desenvolver, de vencer, de conquistar, de descobrir uma linguagem capaz de expressar, de uma só vez, emoções e idéias, linguagem que os colombianos, em pequenas cidades da costa caribenha, chamam de “linguagem do sentir-pensando”. Ela é capaz de unir o que foi separado pela cultura dominante, que sempre deixa em pedaços tudo que toca. Há uma linguagem para as idéias e outra para as emoções – o coração e a mente divorciados, bem como o discurso público e o da vida privada. A história e o presente também acabam separados.
Você diz que a história não é uma Bela Adormecida em um museu.
A história oficial é uma Bela Adormecida, às vezes um monstro adormecido, nos museus. Mas creio na memória, não como um ponto de chegada, mas sim de partida, uma catapulta que nos arremessa ao tempo presente, permitindo-nos imaginar o futuro, em vez de o aceitar. Caso contrário, seria impossível para mim ter qualquer vínculo com a História, se ela fosse apenas um conjunto de pessoas, de nomes e de fatos mortos. Por isso escrevi Memória do fogo no presente do indicativo, na tentativa de manter vivo tudo o que aconteceu e permitir que aconteça de novo assim que o leitor ler.
A trilogia Memória do fogo é uma variação dramática da História tradicional. Você usou uma amálgama de poesia, de notícias e de erudição. O que o inspirou?
Nunca aceitei as fronteiras da alma, nem as aceitei na arte de escrever. Na infância, recebi educação católica. Fui treinado a aceitar que o corpo e a alma eram inimigos, que o corpo era a origem do pecado, da culpa, do prazer, infectando a alma. Achei dificílimo internalizar essa ideia, essa separação. Sempre notei a contradição entre o que eu sentia dentro de mim e o que eu recebia como verdade revelada, oriunda de Deus. Naquela época, eu acreditava nele e acreditava que ele acreditava em mim; por isso, não foi fácil vivenciar essa contradição.
Quando eu tinha dez ou onze anos, tive uma crise terrível. Entrei em pânico com o sentimento de culpa sobre meu corpo – associado, suponho, ao despertar de minha sexualidade. Para mim, meu corpo era como uma fonte de perdição, que me condenava ao inferno. Agora eu o aceito. Sei perfeitamente que vou para o inferno e estou treinando em países tropicais para aceitar as chamas. Não será tão ruim.
Quando comecei a escrever, percebi que não respeitava a fronteira que separa as monografias e a não-ficção dos outros gêneros como a poesia, contos ou romances. Detesto ser classificado. Este mundo é obcecado pela classificação. Somos todos tratados como insetos. Deveríamos ter uma etiqueta presa ao corpo. Assim, muitos jornalistas dizem: “Você é um escritor político, certo?” Dê-me o nome de algum escritor na história da humanidade que não seja político. Todos nós somos políticos, mesmo quando desconhecemos esse fato.
Penso que estou violando fronteiras e fico feliz sempre que posso faze-lo. Suponho que eu deveria trabalhar como contrabandista em vez de escritor, porque essa alegria de violar uma fronteira é, na verdade, a revelação do contrabandista em mim, um delinqüente.
Em sua opinião, por que os Estados Unidos constituem uma sociedade tão violenta?
Eu não diria isso. Eles também têm energias de beleza e de democracia. Eu não cairia em minha própria armadilha, dizendo: “Os Estados Unidos são o vilão do mundo.” A realidade é muito mais complexa. Há uma cultura da violência, uma cultura militar impregnando tudo, marcando, disseminando e permeando tudo que toca. Por exemplo, temos a indústria do entretenimento, que é repleta de violência, oceanos de sangue saindo da TV ou do cinema. Tudo explode o tempo todo – carros, pessoas. É a velha história: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? A indústria do entretenimento diz: “Somos inocentes. O espelho dos filmes ou da TV apenas reflete uma realidade violenta. Nós não a inventamos, ela vem das ruas.” Mas nesse círculo, a mídia exerce influência.
O mundo é um lugar violento. É muito simples condenar os pobres que roubam, seqüestram ou matam. É como condenar viciados em drogas. Mas não é tão fácil encontrar as raízes e condenar o sistema que gera o crime e o uso de drogas. Diariamente, todos comem e bebem muita ansiedade e angústia.
Como você, que é de esquerda, reagiu à queda da União Soviética?
Nunca me identifiquei com o chamado socialismo da União Soviética. Sempre achei que não era socialismo. Foi um exercício de poder burocrático sem vínculo com o povo. O governo agia em nome da população, mas a desprezava – fazia-lhe homenagens nos discursos e na linguagem oficial, mas a tratava como minoria, a exemplo de crianças e ovelhas. Por isso não pensei que o socialismo estivesse morto quando a União Soviética caiu. O fato de ela ter caído com tanta facilidade foi eloqüente: quase não houve sangue, nem lágrimas, nada. Mas o socialismo não está morto porque ainda não nasceu. Espero que a humanidade o encontre.
A situação atual – do ponto de vista dos países pobres, ou seja, dos arredores do mundo – é muito pior que antes, porque com a União Soviética havia ao menos um certo equilíbrio de poder que, agora, desapareceu.
Você pode destacar alguns sinais de esperança?
Há muitos deles dentro dos Estados Unidos, do México e também de outros países. Existem inúmeros movimentos, mas a maioria não tem voz nos meios de comunicação de massa. São mais ou menos secretos, porque agem localmente. Às vezes, são muito pequenos, mas personificam uma resposta, ao buscar um mundo diferente, sem aceitar como seu destino o que está posto. Encaram-no como um desafio. Em toda parte, temos muitos movimentos pequenos lutando pelos direitos humanos, contra a discriminação sexual, contra a injustiça, contra a exploração de menores, preservando e desenvolvendo formas agrícolas que não prejudicam o solo.
Há um movimento popular no México chamado El Barzón. Ninguém o conhece no exterior, mas é importantíssimo. Trata-se de um movimento espontâneo que nasceu da necessidade de resistir às pressões dos bancos mexicanos. No início, o movimento não contava com mais de cem pessoas defendendo suas posses – seus lares, seus negócios, suas fazendas – contra as vorazes forças financeiras. Mas ele cresceu e, agora, há mais de um milhão de pessoas envolvidas. Essas se tornaram tão importantes que, quando uma delegação de El Barzón foi a Washington, foi recebida pelo vice-presidente do Fundo Monetário Internacional. Suponho que esse homem seja tão importante que nem mesmo fala com a esposa, mas ele recebeu o El Barzón.
Muitos movimentos nos dizem que a esperança é possível, que amanhã não é apenas outro nome para hoje.
Entrevista da revista The Progressive, por David Barsamian.