CRISTAIS DO TEMPO: histórias da fotografia no interior do Estado de São Paulo, da última década do século XIX à primeira metade do século XX - CAPÍTULO I ( obra em andamento)
CRISTAIS DO TEMPO: histórias da fotografia no interior do Estado de São Paulo
Capítulo I (“Work in Progress”)*
[Prezados leitores,
A VERSÃO COM FOTOS DO PRESENTE TEXTO ENCONTRA-SE HOSPEDADA EM MEU BLOG, CUJO ENDEREÇO É:
http:imprimis.arteblog.com.br]
O FOTÓGRAFO E A MEMÓRIA
“Ler aquilo que nunca foi escrito.”
(Hofmannstahl)
Luminosa manhã azul puríssimo... É outono amarelo vivo, quase inverno. E eu sempre espectador de todas as cidades (1).
Dourada manhã esmaltando Ruas Republicanas: XV de Novembro sobre o Rio das Capivaras. ERA UMA VEZ... Uma longa estrada eternizada tanto na Geografia quanto na História do chão paulista a enlaçar fios, filetes, uma vasta franja paulista (Leste)Oeste. Destinos... ir para o Oeste: seguir as monções, perseguir as trilhas dos bandeirantes, das missões... Anhembi, Taquari, Iguatemi, as águas do Tietê... Águas claras: rio claro e sinuoso serpenteando florestas virgens – rumo Norte, as Geraes: lagoas, riachos irmãos: do Campo e de São João... Rio cristalino, lavouras, os passos, os rastros das bandeiras rumo à Minas; Rio Grande, o Pardo. Ribeirões, entremeio, a escorrer entre morros: Ribeirão do Meio. Pouso de viagem: Descanso na Velha-Casa-Pequena-Óca; entre quatro colinas irmãs, uma Villa Velha: a Freguesia de São Sebastião da Bôa Vista:
“_ Olhem para ahi essas ‘Mocóquinhas’!” (2)
Paulistas, por mercê de Deus! Sertões abençoados por todos os Santos!
“Não se percebeu devidamente até agora que a relação ingênua entre o ouvinte e o narrador é dominada pelo interesse em conservar o que foi narrado. Para o ouvinte imparcial o importante é assegurar a possibilidade de reprodução. A
memória é a mais épica de todas as faculdades. Somente uma memória abrangente permite à poesia épica apropriar-se do curso das coisas, por um lado, e resignar-se, por outro lado, com o desaparecimento dessas coisas, com o poder da morte (...) Mnemosyne, a deusa da reminiscência, era para os gregos a musa da poesia épica...”
(“O Narrador: Tese 13”. Walter Benjamin)
“Eu te vejo sair por aí
Te avisei que a cidade era um vão
_Dá tua mão
_Olha pra mim
_Não faz assim
_Não vai lá não (...)
Na galeria
Cada clarão
É como um dia depois de outro dia
Abrindo um salão
Passas em exposição
Passas sem ver teu vigia
Catando a poesia
Que entornas no chão.” (“As Vitrines”. Chico Buarque de
Holanda)
Depoimento da (3) :
Sra. PALMIRA MARIA DE AVELINO BOARAT (4) — viúva de Lauro D’Angelo — narra como veio a conhecer e a conviver junto ao fotógrafo paulistano da “Gazeta Esportiva”, a partir de 1954:
“Curiosa, toda gente
Mira um par n´estas alturas.
Que fazem pelo sol quente
Tão fidalgas creaturas?
Esbeltos, pela cintura
Enlaçados docemente,
Vão elles, de galgo á frente,
Entre o verdor das culturas;
O senhor de trajo leve,
E a dona, toda de neve,
Incertos ante o riacho...
Viver assim como é bello!
Cabeças juntas, debaixo
De um parasol amarelo!”
(“Chromos”- B. Lopes)
D.PALMIRA BOARATI:
ERA UMA VEZ...
_
_ ... na cidade de Mococa... Quando eu fui criança, a gente vivia mais na fazenda, porque meu pai tinha uma fazenda.
Meu nome é Palmira Maria de Avelino Boarati. Eu nasci em 18 de setembro de 1918, na “Fazenda Serrinha”, que fica aqui em Mococa. Tem até num livro essa “Fazenda Serrinha”; eu nasci lá, “Fazenda Serrinha”. Eu nasci lá...eu fiquei pouco tempo lá, porque meu pai mudava muito e, aí, depois, meu pai vendeu essa fazenda e comprou a “Fazenda da Glória”, que fica ali na “Estação Comendador Guimarães”. É quando tinha trem! é aqui perto. Tinha a “Estação Veneranda”... é! O trem é a Mogiana. E moramos lá. Tinha o quê, lá?! ... não lembro direito, eu tinha seis anos nessa fazenda. Aí, depois, meu pai mudou aqui pra cidade. Aí, ele comprou uma chácara, aqui, que se chama “Chácara dos Trombini”, uma chácara, aqui, próxima de Mococa. “Chácara dos Trombini”; chamam de Trombini, mas quando era do meu pai, a chácara não tinha nome, era só chácara mesmo; pertinho da cidade.
O meu pai ‘mexia com terra’; era filho de fazendeiro. Mas depois perdeu tudo. Meu pai ‘mexia com café’; tinha café nessa fazenda, ele ‘mexia com café’. Aí, depois, aconteceu de eu perder dois irmãos, em quarenta dias! Perdi um de treze anos e outro de três anos. Meu pai ficou muito desgostoso e vendeu a casa de lá; um chamava Avelino e o outro chamava Francisco. Então, em quarenta dias, meu pai perdeu os dois filhos. Aí, meu pai desgostou... Eles tiveram meningite; naquele tempo não tinha cura! Até hoje é difícil...
Aí meu pai vendeu a fazenda... aí desgostou. Faz tantos anos... Eu tinha seis anos, eu era a filha mais velha. Muitos anos, já em Mococa... meu pai mudava muito, sabe? Mudava, mudava pra um lado e pra outro; era ‘de praxe’ dele, sempre ‘mexendo com a terra’. O café... ele ‘mexia com café’; só nessa fazenda que ele plantou... Eram sessenta mil pés de café, é, sessenta mil pés de café! Depois ele perdeu tudo; porque meu pai também ‘não tinha muito juízo’, não, acabou perdendo tudo. Ele recebeu herança dos quatro... dos pais; recebeu quatro heranças! E o sítio dele, a cidade aqui, tudo foi do meu pai... os melhores lugares.
Naquele tempo, da minha mãe, que acendia...; a minha mãe... é que contam que acendiam as luzes da cidade com... Vinha um homem a cavalo, com lampião, era tudo lampião aqui em Mococa. Ele vinha e acendia às seis horas da tarde, às seis ele acendia os lampiões. Eu não cheguei a ver, acho que eu não era nascida nessa época. A minha mãe tinha treze anos ou nove, não sei... Acho que no século passado, ela que contava, é! Tinha isso, e eu achava engraçado, ela contava pra gente.
Mas depois, meu pai perdeu tudo o que tinha. Vivia, trabalhava nas fazendas, plantações, essas coisas, mas nem era dele mais. Sabe o que é perder tudo? Ele tinha dezesseis filhos; a minha mãe... teve família grande. Perdeu tudo, tudo, tudo, é isso aí.
Aí eu vim pra cidade, quando eu tinha dezessete anos, eu vim pra cidade. Foi quando eu aprendi a profissão de costurar, eu era costureira. Com dezessete anos, eu vim pra cidade, aprendi a costurar, é a minha profissão... foi o que me valeu! Quando eu fiquei viúva... porque eu costurava, costurava muito, e costurava para esse povo rico aí, que paga bem, aqui na cidade; eu costurava nas casas, costurava em casa também, mas eu gostava mais de costurar nas casas das freguesas.
Tem uma fazendeira aí, que é parente do Joaquim Lima Camargo... Eu morei com eles quinze anos; eu ia pra fazenda... ia, quando eu era moça solteira ... vinha, aí eu costurava, costurei muito tempo pra ela. Aprendi a costurar aqui, em Mococa mesmo; não foi na escola, foi com costureira mesmo, era aqui de Mococa mesmo. Isso tudo... depois eu fui praticando. A costureira se chamava Pariza, era uma turca. Então, depois eu fiquei...
Ah! tinha uma sala de costura muito grande e ela dava aulas, em Arceburgo [MG; a referida cidade faz divisa de município com Mococa]. É lá naquela Rua que ela morava, lá na ‘Rua dos Turcos’, eles falam ‘Rua dos Turcos’.
Então, depois, eu vim pra Mococa, e aí comecei a costurar pra esse povo. Em Arceburgo, morei foi uns dois anos, só enquanto eu ‘tava’ aprendendo lá a costurar, o corte-costura; eu morava na fazenda, na fazenda... Aí, nunca mais eu fui pra fazenda, fiquei sempre aqui, na cidade. Depois, eu namorei cinco anos, casei, fiquei viúva ‘de-novo’, fiquei viúva cinco anos. Depois, fui morar com a minha mãe, cinco anos fiquei com ela. Aí, depois é que apareceu... foi Deus que mandou. Apareceu o Lauro D’Angelo! Nossa, parece que foi uma graça de Deus.
Ah, meu filho, essa história é muito engraçada se eu te contar. Eu conto sempre pros outros. Foi assim: ele veio pra cá e ele montou uma fotografia. E depois ele montou, também, uma agência de jornais e revistas. E eu costurava, eu tinha freguesia; eu costurava muito. Então, eu morava lá com a minha mãe, de quem eu já falei.
Aí, acontece que... é tão complicado! Veio uma sobrinha minha, de Ouro Fino, estudar aqui no Ginásio. Então, ela precisava... ela ia morar na minha casa, na casa da minha mãe, onde eu também morava. Aí minha sobrinha falou assim:
“_ Tia, pra fazer matrícula, eu preciso tirar a fotografia.”
Por isso que eu falo, as coisas quando tem de acontecer, acontece.
“_ Tem que tirar uma fotografia, mas é pra hoje, tia!”
E ele [Lauro D’Angelo] então fazia fotografias na hora, ele fazia muita propaganda, tudo.
Mas, eu já ‘tava’ aqui e, pra mim, ele era um homem estranho, ouvia falar de tudo, mas nem nunca conversei com ele, nunca vi. Só ouvia falar dele. Aí eu falei pra minha sobrinha... eu ‘tava’ até costurando. Aí eu falei assim:
“_ Olha, tem um fotógrafo aí, ele tira fotografias e entrega na hora, ele é rápido... é pra hoje!”
.................
{CESURA:
MANCHETES EXTRAÍDAS DO JORNAL “A MOCOCA” - FUNDADO EM 1895:
. Edição 2552, de 07 de janeiro de 1951 - p.4:
“RADIUM ENFRENTA O SÃO BENTO”
. Edição 2554, de 21 de janeiro de 1951 – p.2:
‘ESPETACULAR VITÓRIA DO RADIUM EM BOTUCATU
. Edição 2555, de 04 de fevereiro de 1951 – p.3:
“ A UM PASSO DA PRIMEIRA DIVISÃO: RADIUM F. CLUBE”
. Edição 2557, de 18 de fevereiro de 1951 – Manchete e p. 4:
“RADIUM F. CLUBE. UM QUADRO DE FIBRA E CORAÇÃO.”
Manchete: O jogo de hoje: Radium x Botafogo R.P.
Radium e Botafogo frente a frente}
.................
“_ Mas tia, eu não sei onde que é, eu não o conheço” - Ela não sabia mesmo, tinha vindo lá de outra cidade.
Aí eu me levantei da máquina, porque eu costurava assim, pra fora, eu ‘tava’ sempre ‘arrumadinha’; quando precisava sair, eu já ‘tava’ no ‘jeito de sair’.
Acho que foi em ... É, outro dia eu ‘tava’ pensando qual ano que foi esse?! Espera aí... eu sei que ano era esse! A minha filha é de 1955... É 1954, lembrei!
Aí a minha sobrinha falou pra mim:
“_ Ah, eu preciso da fotografia!”
Aí eu falei:
_ “Eu vou até lá. Então vamos lá, vamos tirar a fotografia. E fui com ela. Levantei, deixei as costuras lá, e fui. Chegou lá, eu falei:
“_ Eu precisava de uma fotografia assim, assim, assim...” - aí ele tirou a fotografia.
E eu falei assim:
“_ Que hora que eu posso vir buscar a fotografia?”
“_ Ah, você pode vir buscar às três horas, você pode vir buscar porque estará pronta.”
Aí eu mandei a minha sobrinha.
Falei assim:
“_ Agora você sabe onde é que é”. O nome dela era Tereza; Tereza, a filha do meu irmão. Então, a minha sobrinha foi buscar as fotografias, foi buscar as fotografias, e eu nunca tinha conversado com o Lauro, nada, sabe? Mas ele conversava com os amigos que eram, por exemplo, uns colegas dele, que ele tinha aí. Um que hoje mora em Piracicaba, o Abdala Eli... até o Malim [Zamarian] conhece?!... O Giordano Dal Rio também, Giordano Dal Rio. O Lauro até chamava o Giordano de ‘padrinho’; Abdala Eli era um sírio.
Aí eu fui buscar a fotografia. Primeiro mandei minha sobrinha ir buscar. Ela foi buscar a fotografia. Chegou lá, ele falou:
“_ Mas não está pronta a fotografia.”
Aí eu fiquei muito nervosa. A minha sobrinha chegou aqui e disse:
“_ Ah, tia, a fotografia não ‘tá’ pronta!”
Eu falei:
“_ Mas ele falou que aprontava!” - não sei o que, não sei o que...
Daí eu levantei e falei assim:
“_ Mas eu vou lá agora mesmo.” - fiquei nervosa.
“_ Eu vou lá agora mesmo, e vou saber por que é que ele não aprontou a fotografia.”
Aí eu cheguei lá; o Lauro era uma pessoa muito ativa. Eu cheguei lá, eu falei:
“_ Eu mandei buscar a fotografia, por que não ‘tá’ pronta?”
“_ Não, ‘tá’ pronta, sim! Mas eu não entreguei porque eu queria que você viesse aqui buscá-las.”
Aí eu fiquei toda sem graça, não esperava aquilo... Eu fiquei toda sem graça, assim... Aí eu falei assim:
“_ E quanto que é?” - fiquei assim meio assustada ...
“_ Quanto que é?” Ele falou assim, pra mim:
“_ Ah, é quarenta, mas pra você eu faço vinte.”
Aí eu peguei a fotografia, paguei e saí. Saí, e ficou essa história engraçada...
Daí, eu saía pra costurar. Saía pra costurar... Um dia, quando eu ia subindo... porque eles ficavam todos lá do lado de fora, ali, embaixo do Hotel, onde hoje é o “Palace Hotel”; esse Hotel aqui era um Hotel velho, “Hotel Terraço”, isso! Aí, eu ia subindo, assim... quando eu ia subindo, que eu passo em frente, eu via que ele ‘tava’ ali; e eu, por causa da conversa dos outros, eu já fiquei meio assim...
...................
{CESURA
MANCHETES E NOTÍCIAS EXTRAÍDAS DO JORNAL “A MOCOCA” - Manchetes:
. Edição 2560, de 11 de março de 1951:
“GRANDE INTERESSE PELA ‘GAZETA ESPORTIVA’ – CENTENAS DE PESSOAS AGUARDAM A CHEGADA DO MAIS COMPLETO JORNAL ESPORTIVO DO BRASIL...”
. Idem acima:
“CASO O RADIUM VENÇA, O POVO MOCOQUENSE SOLICITARÁ À DIREÇÃO DA ‘GAZETA ESPORTIVA’ A CRIAÇÃO DE UMA SUCURSAL EM NOSSA CIDADE...”
. Edição 2561, de 18 de março de 1951:
“A APOTEOSE DO PACAEMBÚ/ O NOVO ESTÁDIO DO RADIUM/AUXÍLIO OFICIAL AOS ESPORTES: VULTUOSO DONATIVO DE CR$ 150.000,00 DO BANCO F. BARRETO S/A PARA A CONSTRUÇÃO DO ESTÁDIO”}
..................
Quando eu ia subindo, eu via que ele ‘tava’ ali, ‘tava’ o seu Mota... ‘tava’ os amigos dele, tudo ali; que eu passava... eu não queria passar em frente dele. Eu vinha assim... quando eu vinha, eu virava a esquina. Até ele brincava... eu via ele e ele falou assim:
“_ Ah, mas as coisas quando é difícil é melhor!”
Ele brincava e eu fugia. Fugia, fugia... Mas quando foi um dia, eu fui passando lá na porta da fotografia, quando eu ia passando assim... ele saiu e, de repente, demos de encontro. Aí ele parou pra conversar, aí ficamos conversando.
Perguntou se eu era viúva, porque ele sabia que eu tinha dois filhos. Eu tinha dois filhos mesmo, o Paulo e o Marcos. Ele dizia:
“_ Você tem de trabalhar tanto, com essas crianças pequenas!”
Aquelas coisas, ‘dando voltinhas’, assim, falando... aí eu falei; e ele conversou comigo. Aí ele falou pra mim, falou pra mim, pra eu falar com a minha mãe, que eu podia falar com a minha mãe, conversar com minha mãe. Porque... e se a minha mãe não gostasse; ele falou:
“_ Eu sou desquitado.”
..................
{CESURA:
MANCHETES E NOTÍCIAS EXTRAÍDAS DO JORNAL “A MOCOCA”:
. Edição 2577, de 08 de julho de 1951 – Editorial:
“ESTÁDIO S. SEBASTIÃO OU CAMPO DA CAIXA D’ÁGUA?”
. Idem acima, p.4:
“LAURO D’ANGELO e MARY D’ANGELO têm o prazer de comunicar a inauguração de seu Atelier Fotográfico denominado FOTO RADIUM, à Rua Visconde do Rio Branco, 651, às 17 horas do dia 9 do corrente.”
. Edição 2578, de 15 de julho de 1951 – última página:
“LAURO D’ANGELO: UM NOVO ARTISTA PARA MOCOCA”}
...................
Aí a gente conversou lá um tempo, tudo... ele falou assim:
“_ Eu dou um prazo de seis meses!”
Ele deu um prazo de seis meses, deu um prazo de seis meses!
Aí, depois, num outro dia, a gente se encontrou, e ele falou assim:
“_ Não, eu falei por brincadeira... seis meses, porque seis meses é muita coisa. Eu queria resolver esse negócio era logo.”
Porque ele já tinha ‘casa montada’, tinha tudo. Ele tinha ‘casa montada’, ‘tava’ sozinho, porque ele era desquitado também. Aí eu falei pra minha mãe, conversei com a minha mãe, e falei... A minha mãe falou assim:
“_ Ah, minha filha! Seu eu tivesse ‘bem de vida’, tudo, eu não deixava, porque ele não pode casar - essas coisas e tal -, eu não deixava. Como você é viúva, você têm dois filhos pra criar. Eu não posso te ‘dar de conforto’, não tem, senão eu te dava, eu não deixava. Mas como eu não posso fazer isso... Então, você é viúva, você é ‘dona do seu nariz’. Não quero que amanhã você fale que achou uma pessoa pra te olhar e tudo, e que eu atrapalhei sua vida. Então você faça o que você quiser, eu não proíbo nada.”
Aí a gente se combinou e ficamos juntos.
A gente não se casou, a gente viveu, sabe quanto? Vinte e quatro anos e meio! Mais do que com o meu primeiro marido, com quem eu fiquei só cinco anos. Vinte quatro anos e meio! Ele já ‘tava’ preparando uma festa pra Bodas de Prata. Faltavam seis meses só, ele queria convidar todos os parentes.
Eu já falei: eu casei duas vezes, e nem assim eu fiz Bodas, nem de prata nem de ouro, não deu pra fazer. E foi assim, mas o Lauro ‘caiu do céu’!
Uma pessoa maravilhosa, uma pessoa maravilhosa... uma pessoa que ‘caiu do céu’. Depois, ele foi tão bom ‘pros’ filhos! Criou meus filhos, não fazia diferença, não fazia diferença... não fazia diferença dos dois meninos com a menina, com a minha menina, a minha filha Rina Tereza D’Angelo. Ele não fazia diferença; quando eu fazia uma coisa pra ela, ele já fazia uma coisa ‘pros’ meninos, era desse jeito. Meus meninos adoravam ele. Meus meninos cresceram, ficaram moços, estudaram e tudo.
Nossa Senhora! Eu nunca vi gostar tanto dos filhos! Também, uma pessoa boa. Pessoa muito boa.
Ah! ele veio de São Paulo! Ele veio de São Paulo, ele morava na Lapa, em São Paulo. Ele veio porque o “Radium” ganhou aqui, o time de Mococa, o time de futebol ganhou a “Primeira Divisão do Futebol”. Ele disputou com Ribeirão Preto, aí Mococa ganhou. E ele veio fazer a reportagem, sabe? Veio fazer toda a reportagem. Ele era da “Gazeta Esportiva”, ele veio fazer a reportagem. Ele trabalhou dezessete anos na “Gazeta Esportiva”. Aí ele veio fazer toda a reportagem; chegou aí e todo mundo gostou dele, e não deixaram ele ir embora. Ele também gostou, não deixou... e ainda falou assim:
“_ Quando eu morrer, eu quero ser enterrado aqui. Não é pra me levar pra lugar nenhum, é pra ser aqui!”
E amizades que ele tinha! Conquistou a Mococa! Ele recebeu - não sei se o Paulo falou pra você?! - o título de cidadão mocoquense, o título de cidadão mocoquense! Foi uma festa, viu? É, mas foi uma festa... você precisava ver que festa bonita! Ah!, ali deve... tá marcado!
O Lauro tinha uma irmã fotógrafa... a irmã dele; ela se chamava Amélia, mas todos tratavam ela de Froid [Freud (?!)], mas o nome dela, verdadeiro mesmo, era Amélia. Froid, todo mundo chamava ela de Froid. É... Froid, mas o nome dela, verdadeiro mesmo, era Amélia. O Lauro era mais velho, acho que um ano ou dois. Ele perdeu a mãe; ela tinha vinte e três anos! O Lauro disse que foi meningite que deu nela. O Lauro tinha só três anos. Ela morreu nova, ela morreu com vinte e três anos; ela casou nova, e sabe onde o pai do Lauro conheceu a mulher dele? Ela trabalhava no “Teatro Municipal de São Paulo”. Foi lá que o pai do Lauro a conheceu. É que ela cantava no “Teatro Municipal de São Paulo”. O Lauro disse que ela trabalhava lá. Eu sei que o nome dela era Rina. Rina... eu coloquei o nome da mãe do Lauro na minha filha, na neta dela.
Então, ele conheceu ela no Teatro, trabalhando no Teatro; o pai do Lauro não perdia ópera, não perdia ópera! Conheceu ela lá, e acabou casando. Só que ela morreu muito jovem... vinte e três anos, e deixou os dois filhos, parece que o Lauro tinha três anos e a outra, a irmã, não sei se tinha dois ?! Era uma coisa assim. Eles eram muito pequenos.
O Lauro e a Amélia, o Lauro e a Amélia, os dois eram fotógrafos. Eles aprenderam fotografia com o pai, que se chamava Miguel D’Angelo; tinha uma casa fotográfica lá em São Paulo, na Lapa, na Rua 12 de Outubro. Acho que ainda tem, até hoje ?!; Não sei se tem até hoje, porque ficou pro filho, depois o pai do Lauro teve o segundo casamento, ele teve o segundo casamento, e teve mais três filhos. Acho que era “Foto D’Angelo”. É, “Foto d’Angelo!” Ele tirava... depois já tinha até uma Ótica junto com a “Foto D´Angelo”. Aí passou pro filho dele, do segundo casamento. E o Lauro com essa irmã, a Amélia, aprenderam com o pai, os dois, os dois eram fotógrafos muito bons! ‘Pegaram tudo’ do pai. A Amélia tinha casa fotográfica, é, tinha Ateliê, tinha tudo. Aprendeu com o pai, aprendeu com o pai; depois ela montou pra ela, como o Lauro D’Angelo também montou, uma casa de fotografia na casa do pai.
É, ali era a casa do pai, depois ela mudou. Aí montou uma fotografia pra ela, porque aquela casa do pai ficou pro filho, do segundo casamento.
Sobre ela ?! Não, eu nem sei, é que eu não tenho tido notícias dela, mas ela já deve estar com muita idade; ela era muito doente, eu não sei se ela vive ainda... Mas ela teve Fotografia; meu marido, o Lauro, montou uma Fotografia pra ela em Guaxupé [MG]; ela ganhou dinheiro aí que só vendo! Mas só que ‘ela não tinha juízo’!... Os dois eram fotógrafos.
Aí o marido dela também era fotógrafo, aprendeu com ela. O marido da Froid aprendeu a fotografar, com ela! Ela se casou e o marido dela aprendeu, também, a fotografar. Ah! Daí eles largaram da fotografia e montaram uma fábrica de pingentes, de cortina preta, aqueles pingentes bonitos!
Depois, foram infelizes, porque a fábrica pegou fogo, perderam tudo. Aí o Lauro ficou com dó, veio pra ela... como ela tinha a profissão de fotógrafa, ela era fotógrafa, tanto que trabalhava uma perfeição! Aí o Lauro montou a Fotografia pra ela, montou em Guaxupé [MG]. Ele alugou... Era de uma pessoa que era fotógrafo lá em Guaxupé, e que não quis mais trabalhar, e ela trabalhou muito tempo lá.
Ela, depois, voltou pra São Paulo, porque lá [em Guaxupé] ela ‘se encrencou’. A Rina devia ter... a Rina tá com quarenta e quatro anos, acho que a Rina tinha uns três anos, três ou quatro anos. Já faz tempo isso, já faz tempo isso...
É, a Froid tirou fotografia, trabalhou muito tempo, depois voltou pra São Paulo. O marido dela ficou doente, teve um câncer no pulmão, é uma história... e não tinha nenhum filho; e trabalhava, mas ‘muito sem juízo’, eles não ‘tinham juízo’. Os dois eram fotógrafos, mas ela trabalhava melhor do que ele. É porque o pai dela já era fotógrafo; o pai, o irmão... A técnica dela, da fotografia dela, era uma perfeição! E todo mundo gostava dela como fotógrafa...
Ah! Eu tenho muitas fotografias do Lauro, tenho, sabe quantos álbuns? Se eu falar... doze álbuns! O Lauro fez fotografia da Rina, depois de cinco minutos que ela nasceu; já começou a fotografar cinco minutos depois da Rina nascer. Tem fotografia da minha família, tudo...
Mas, acontece que a minha filha ‘teve’ aí [em Mococa]... e nos álbuns ‘tava’ escrito “Minha filha, minha filha”; em todos os álbuns: “Minha filha”. E a Rina levou pra ela, Chegou aí, falou pra mim, e eu, às vezes, eu tenho saudade, tenho vontade de ver os álbuns todos, mas eu não podia falar nada; como é que eu ia falar se ele deixou os álbuns pra ela? Ela falou pra mim: “_ Ah, mãe! eu vou levar os álbuns, senão podem sumir”... qualquer coisa assim.
“_ Esses álbuns aí são meus, do meu pai”. E em todos eles ‘tava’ escrito: “Da minha filha”. Não falei nada, levou... É, tinha de até de cinco minutos depois que ela nasceu, até a formatura, tudo! Nossa, ela gostava do pai! Desde a hora que nasceu...
Tem um fotógrafo aí, que é o Matheus, você conhece o Célio Matheus? O Matheus, o sr. Célio... o pai dele veio aqui ver os álbuns que o Lauro fez. O Lauro mostrou todos os álbuns. Ele falou assim:
“_ Ah, seu Lauro, ‘casa de ferreiro espeto de pau’, só que a tua aqui é casa de ferreiro, e o espeto é de ferro mesmo! Porque eu não tenho uma fotografia dos meus filhos.” - ele falou, o pai do sr. Célio: “_ Eu não tenho fotografia dos meus filhos...” – E quando ele viu aquele monte de álbuns, ele ‘ficou bobo’, não acreditava.
O Lauro era muito bom, é como o pai, Miguel D’Angelo: ele veio da Itália.
Ah, ele [Lauro] fotografou Mococa toda. Aqui ele tinha fotografia de tudo quanto é coisa; ele fazia muitos casamentos, tanto aqui na cidade como fora. Ele era muito chamado, ele ganhou muito dinheiro aqui. Era Bodas de Prata, Bodas de Ouro, todas essas coisas de fazendeiros por aí; tudo, ele ia fazer, formaturas então!!
Tem fotografia de casamento, de Bodas de Ouro... Às vezes, eu acompanhava o Lauro, porque eu aproveitei muito a minha vida, porque tudo quanto era festa, assim que eu podia ir, o Lauro me levava. Eu participava... Ah, então, em formatura, tudo eu ia! Tem um álbum de fotografias aí que você ‘ia vê’; ‘fica bobo’, ‘fica bobo’; se você visse os álbuns que a Rina tem lá na Bahia...‘Tava’ tudo junto...
A gente participava muito: piscina, essas coisas... Tudo aquilo ele ajudava muito... ajudava, ajudava assim... Quando estavam construindo a piscina, tudo... Ele, então, diz que ele é sócio lá, sócio remido. Eu tenho a piscina lá, até passei pra minha neta. É... E então ele é até sócio remido, e como eu não a freqüento a piscina, passei pra minha neta, a filha do Paulo, pra ela freqüentar, a Maria Laura. Então passei pra ela.
Botcha! de muitas coisas, de tudo ele participava: ele foi “Presidente dos Esportes” em Mococa. Presidente... o Malim sabe tudo isso. Presidente do Esporte, foi diretor lá, não sei ?! esse negócio de “botcha”, do “Círculo Operário” também. Ah! em tudo ele ‘tava’! Falou que é esporte; era ele que organizava o esporte da cidade. Ele gostava de organizar tudo: era carnaval, era tudo ele, ele era muito social...
Ele fotografava no trabalho, trabalhando, porque era o ‘ganha pão’ da gente.
Ele entrava lá no Ateliê só pra revelar e pra tirar fotografia de algum que aparecia lá, pra tirar foto de título de eleitor. Você não lembra ?! Antigamente, tirava fotografia pequenininha, 3 por 4, pra colocar no título [de eleitor]. Até te conto uma história muito engraçada: apareceu um lá, pra tirar fotografia. O Lauro pôs o banquinho, pra ele sentar; ao invés dele se sentar - dizem que era um homem alto -, em vez dele se sentar, ele subiu no banquinho; daí, o Lauro falou:
“_ Não precisa”. Ele contava isso, e ria... Então, o Lauro falou assim:
“_ O sr. quer fazer o favor de descer... o sr. quer fazer o favor de descer.” Imagina só, colocou o banquinho pra sentar e ele subiu!
O Lauro era fotógrafo mais de reportagens, cadeia e tudo, quanto ele fotografava. Repórter, repórter... Trabalhou na “Gazeta Esportiva”, naquele tempo que, quando marcava o gol, o fotógrafo ficava ali, lembra?! Você chegou a ver esse ‘tempo de pega’...?! Deixava com o dono, mas, naquele tempo, já os fotógrafos, quando faziam o gol, batiam a fotografia. Não tecnologia, não tinha nada, não! Não tinha nada disso, não tinha... Ele era fotógrafo mais de reportagens, tudo quanto era reportagem.
Ele foi o primeiro que chegou com a máquina... A máquina de fotografia dele era eletrônica, quando batia aquilo piscava, brilhava. E aqui ninguém tinha, nunca tinham visto; ficava tudo assustado aqui em Mococa. Flash, flash! Porque nunca viram, nunca viram...
Na igreja... ele fazia casamento, fazia reportagem, todo casamento. Nossa! Casamentos aqui que ele fez nem tem conta. Olha, pra você ter uma idéia, parece que hum mil e quinhentos casamentos... Não sei quantos negativos tem aí. Eu sei que é uma infinidade de negativos, tudo guardado. O Lauro ficou guardando, guardando, coitado! Porque, mais tarde, ele ia por tudo numa exposição, ele ia ganhar um dinheirão mesmo, mas não deu... Ele faleceu em 1978. Enfarte. Foi, uai! Ele ‘tava’ assistindo televisão e se sentiu mal.
O Lauro morava aqui, nessa casa mesmo. O Lauro ‘tava’ encostado no canto, no encosto do sofá...
Minha nora foi... chegou lá, na Santa Casa, ele faleceu, teve enfarte. Ele nunca ficou doente, era esperto, Nossa Senhora! Ele tinha sessenta e sete anos, mas ninguém falava, pensavam que ele tinha menos.
Deu enfarte e edema pulmonar, isso mata na hora. E o meu marido morreu; o primeiro com trinta e quatro anos, foi enfarte também, enfarte. Ele ‘tava’ trabalhando, sentiu a dor no peito, quando repetiu... Terrível, dois, não é? Acho que Deus levou os dois na mesma condição, na mesma proporção. Eu falei assim: “_ Deus não quis que eu sofresse, não, porque uma pessoa na cama... Porque todos os dois morreram assim”. Acho que Deus falou: “_ Não vou deixar ela sofrer assim, não!” Faz quatro anos que o meu irmão ‘tá’ na cama, com derrame, dois derrames deram. E a sorte é o que ele fez no coração... pôs ponte de safena, agora o coração dele ficou bom. Ele teve derrame na hora que ‘tava’ fazendo a ponte de safena, ele teve o derrame...
O Lauro ouvia óperas. Ouvia e trazia os amigos que gostavam de ópera, trazia de São Paulo, porque ele trabalhou na “Gazeta Esportiva”. Ele tinha aqueles amigos, que vinham aqui em Mococa, e vinham mesmo! Vinham aqui visitar o Lauro, e eles ficavam aí, ‘assistindo’ ópera.
Sabia que eles gostavam.
“_ Ô, Lauro! vim pra ‘assistir’ uma ópera com você!”
Ele tinha também negócio de esporte, porque o Lauro ‘mexia’ muito com esporte. Ah! O Lauro foi correspondente da “Gazeta Esportiva”, é! Ele também foi presidente da “Banda Filarmônica de Mococa”.
Ah, isso eu me lembro! Era aniversário da Banda... foi lá em casa tocar. Isso deve ser a uns... a minha filha tá com quarenta e quatro anos, ela tinha uns três anos; deve fazer uns 40 anos.
O Lauro foi diretor lá do “Círculo Operário”; ele estava sempre no meio desse esporte aí; ele e o Malim, é! O Malim é nosso amigão; quando ele fazia aniversário, eu não fazia nada, porque você tinha muito o que fazer, porque começavam a aparecer os amigos do Lauro. Ah! o mais próximo dele era o José André de Lima, já morreu também. O José André de Lima foi prefeito, aqui. Já morreu, morreu, teve uma morte muito triste, porque morreu na estrada, o carro pegou fogo... O José André de Lima era muito amigo do Lauro, não saía daqui, era prefeito de Mococa. Então, vinha o prefeito, vinha o Malim, vinha o Dim Bernardi, você conheceu o Dim Bernardi? Uai! Ele tá sempre junto com o Malim, eu pensei que você conhecesse Dim Bernardi; ele é coletor, o Malim aposentou e ele ficou no lugar do Malim.
Ele tinha muitos amigos, Nossa Senhora! É que todo mundo gostava dele. Mas, então, foi no ano em que ele morreu... foi muito triste, porque, quando ele morreu, em setembro, ele morreu em setembro... quando foi dia 29 de setembro; quando foi 29 de dezembro: aniversário dele... Aí, o José André, o Malim e o Dim Bernardi e os outros aí, que agora eu não me lembro, eu sei que eles falaram assim:
“_ A gente vai lá na casa do Lauro pra cumprimentar, é aniversário dele hoje.”
Aí, quando eu soube disso, encontrei com a mulher do José André e falei... e falei:
“_ Bem, pelo amor de Deus! Você não deixa isso acontecer, nunca. Você vai encontrar com o José André e falar pra ele, pro Malim, pra não ir lá em casa, não!”
Você já pensou que tristeza? Eu não ia suportar uma coisa dessas. Fazia três meses que o Lauro tinha morrido, eles vinham até aqui, no dia do aniversário do Lauro. É que o Lauro costumava convidar todo mundo, ele é que servia bebida, ele é que servia tudo... naquela alegria!!
Aí eu falei:
“_ Não, vai mexer muito comigo. Se vocês quiserem fazer uma homenagem pro Lauro, então vai lá no túmulo dele, leva qualquer coisa, mas não vem aqui, não.”
Ah! Eu fiz bem porque o que eu ‘tava’ sentindo... Não, não gente, eu quero que vocês entendam, faz de conta que vocês vieram.
Gostei de você!
_ Obrigado, pela entrevista! – respondo.
(FINAL DA PRIMEIRA ENTREVISTA)
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SEGUNDA ENTREVISTA:
O Lauro me ensinava as músicas, ele gostava das músicas, mas eu não entendia nada. Era ele que falava na hora:
“_ Isso quer dizer isso, isso aqui tá falando isso, tá falando aquilo”. Mas a gente aprendia muito pouco. Ah! tinha, ele falava aí das óperas; tinha “Aída”, tinha “Carmen”. Ele tinha a ópera completa, saía só com disco. Mas o que tinha! O que tinha, aí! Tinha [ópera] completinha... desde o primeiro até... É o que ele mais gostava, mas eu tenho uns discos ainda, tudo que é abertura de óperas. “Aída”, tão linda! Só que eu não tenho nem ouvido, tocado, porque esses instrumentos, essas vitrolas, esses aparelhos novos não tocam, não aceitam os discos. Eu tenho aquele aparelho bom ali, que tem todas voltagens. É, do lado de lá, tem, está todo ali... que tocava todos os discos...
Mas não, ele não escutava com a gente; isso acontecia quando vinham os amigos. Então o Lauro colocava as óperas pra eles, é ! Ele sabia que eu gostava também. A gente sentava no carro e sempre também escutava. E tinha muitos discos também, além das óperas, tinha muitos discos de músicas clássicas que o Lauro gostava. A gente ouvia, aqui mesmo, nesta casa.
Primeiro eu morei numa casa, lá na Quintino Bocaiúva, lá em cima. Morei lá três anos, por aí. Depois ele comprou aqui, comprou essa casa aqui. A gente mudou pra cá. Ah! foi tudo aqui... Ah! ele viveu aqui, viveu todo esse tempo aqui...
O Lauro ainda trabalhava com revista, ele era um homem bem informado. Eu trabalhei na banca, ajudava, trabalhava porque... depois, depois eu ficava na banca com ele. Ele se dedicou mais às revistas, o Lauro era distribuidor... trabalhava mais com a...
A banca [de revistas do Lauro d‘Angelo) era no “Hotel Terraço”, depois passou pra “Rodoviária”; mas o Mercado não era ainda reformado, o Mercado era um mercado velho, e lá nós tínhamos uma banca de revistas [no interior do antigo mercado]. Nós tínhamos um cômodo na Rodoviária de Mococa. Era grande, era dentro da Rodoviária. Aí, depois, quando reformaram a Rodoviária, meu marido já tinha morrido, e a gente ficou sem a banca de revistas. Puseram a banca do lado de fora. Era uma sala grande, dentro do mercado. Não era banca, era uma casa, uma loja, tinha de tudo! Eu trabalhava com dez editoras; no fim, a gente perde tudo, não é? Revistas “Veja”, “Quatro Rodas”, “Cláudia”, “Playboy”, até hoje, até hoje são as mais vendidas, é... e a gente trabalhou trinta anos. Mas depois que ele morreu, a gente mudou tudo. Mudou tudo, porque os editores também mudaram: a “Editora Abril”, por exemplo, a gente era distribuidor, da Abril, de todas as editoras...
Outro dia eu ainda ‘tava’ contando no caderninho, eu tenho tudo marcado! Eram mais ou menos dez editoras que eu tinha que trabalhar; pesado, viu! Porque é milhões, e é pesado, é pesado... É difícil, é difícil, agora tá difícil, tá difícil, porque... olha! Era só a gente, era o único distribuidor que tinha na cidade, sabe? Era assim, a gente era o único, ficava ‘assim’ o dia inteiro, vendendo revistas. Agora, hoje, tem dez bancas por aí...
A gente vendia mais de duzentos jornais por dia, duzentos e cinqüenta “Estado”, vendia cento e não sei quantas “Folhas”, duzentas, uma pilha ‘assim’!
Era a única banca da cidade, chamava...?! Era só a dele, não tinha mais nenhuma, era só a dele, a gente era distribuidor e vendia... Era “Radium”, “Agência Radium”, “Agência Radium”, o nome da banca! “Agência Radium”, é! A Rodoviária era um mercado velho, a Rodoviária tinha um cômodo grande.
Tem aquele cômodos lá do lado, ainda tem. Mas ali da frente tiraram tudo. Era lá, lá ficava a sala, era uma sala grande; era de dois andares.
Era um cômodo grande. O meu marido mandou forrar o forro e, lá em cima, a gente tinha um depósito de livros. Era uma loja, não era banca, banca é agora, que tem nas ruas, por aí... Era uma loja. Tinha livros de coleções, coleções! Tudo de coleções, tinham muitos livros de coleções, vendia muito. Mas, depois, a Abril também ‘tava’ na pior...
Então, o que ele fez? A Abril reduziu tudo quanto era distribuidor que ela tinha. Porque, aqui, o distribuidor era a gente. Lá, em São José do Rio Pardo, era outro; em Guaxupé, era outro; em Casabranca, outro... Todo mundo recebia as revistas como nós. A “Editora Abril”... os distribuidores, depois que o meu marido morreu, tirou. Ainda que tirasse só de mim, podia dizer, uai! Porque fez isso, não é? A gente era pontual, pagava certinho. Aí a Abril começou... ela tirou de São José do Rio Pardo, tirou da gente, tirou do outro e pôs só um distribuidor. Ele é que tem de distribuir pras cidades vizinhas. Já atrapalhou, aí já atrapalhou, porque a “Editora Abril” é a que mais vendia.
A gente ganhava muito dinheiro, só que meu marido era um pouco ‘mão solta’, ajudava em Mococa, em tudo ele ‘tava’ junto.
Ele era muito querido, e em tudo ele ‘tava’ ajudando.
Ah! quando ele viu que a Banda não tinha farda, ele deu um jeito: comprou farda pra Banda. Ele dava um jeito, pedia, fazia qualquer coisa. O uniforme da Banda foi ele que pôs; iniciativa dele, ele era muito ativo!
Ah! quem organizava aqui a “São Silvestre” era ele, é! Nossa Senhora! Que pessoa! Era demais! ‘Da água pro vinho, da água pro vinho’.
Nesses vinte anos, vinte e um anos, desde que ele morreu, muita coisa, muitas casas desmancharam, tudo negócio! Eram casas velhas, e Mococa cresceu muito, cresceu muito, cresceu demais, mudou, estragou muita coisa.
Tenho até dó do meu filho, porque aquela banca é até minha. Eu acabei, eu acabei com ela [com a antiga banca].
E eu falei:
“_ Essa aqui eu não vendo, aos menos essa aí fica, porque eu me aposentei”.
Eu falei:
“_ Essa daí fica, vocês tomam conta, vocês compram, vendem. Mas essa aí não é pra vender por dinheiro nenhum enquanto eu for viva, não quero que venda, não quero que faça negócio, nada. É a herança, porque eu vendi a minha banca, a loja lá. Quando eu larguei a loja... sorte que eu não perdi tudo, porque, com o dinheiro, eu comprei um rancho, eu construí o rancho. Eu comprei um terreno lá perto do rio e construí um rancho. Quer dizer que eu não perdi a banca. Tá ‘empatado’ o dinheiro lá, não é? Que o duro é a gente ficar sem nada... Nem uma coisa nem outra, quer dizer que o dinheiro tá empregado.
Eu mesmo construí a casa lá onde eu moro. Depois que o meu marido morreu...
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CONSIDERAÇÕES SOBRE O FOTODOCUMENTALISMO E O FOTOJORNALISMO
“Com Atget, as fotos se transformam em autos no processo da história. Nisto está a sua significação política latente.” (Walter Benjamin)
“A verdadeira imagem do passado passa célere e furtiva. É somente como imagem que lampeja no instante exato de sua recognoscibilidade, para nunca mais ser vista, que o passado deve ser retido. ´A verdade não nos escapará´ — essa frase de Gottfried Keller indica, na imagem, que o Historicismo se faz da história, exatamente o ponto em que ela é batida na brecha pelo materialismo histórico. Pois é uma imagem irrestituível do passado que ameaça desaparecer com cada presente que não se reconhece visado nela.”
(“Sobre o Conceito da História: Tese 5”. Walter Benjamin. Tradução Jeanne-Marie Gagnebin, Marcos Müller)
Retomando uma passagem do depoimento de D. Palmira:
“O Lauro era fotógrafo mais de reportagens, cadeia e tudo quanto ele fotografava. Repórter, repórter... trabalhou na ‘Gazeta Esportiva’, naquele tempo que, quando marcava o gol, o fotógrafo ficava ali, lembra?! Você chegou a ver esse ‘tempo de pega’...?! Deixava com o dono, mas, naquele tempo, já os fotógrafos, quando faziam o gol, batiam a fotografia. Não tecnologia, não tinha nada, não! Não tinha nada disso, não tinha... Ele era fotógrafo mais de reportagens, tudo quanto era reportagem...” (o grifo é meu).
D.Palmira: _ “Você chegou a ver esse ‘tempo de pega’...?!”, isto é, a D.Palmira refere-se ao ‘pegar o instante’ mediante o aparelho fotográfico; do fotógrafo procurar mostrar (no ato do fotografar) o que acontece no momento, no aqui e agora.
As fotografias jornalísticas são “artefactos de gênese pessoal, social, cultural, ideológica e tecnológica” (5).
No fotodocumentalismo, a beleza do registro sobrepõe-se à beleza da arte. A idéia do fotógrafo, do autor e do artista visa à construção social da realidade. O fotógrafo deixa de ser participante num jogo — num jogo de espelhos —, para desembocar no jogo bem mais elaborado e complexo dos mundos de signos e de códigos, de linguagem e de cultura, de ideologia e de mitos, de história e tradições, de contradições e convenções.
No fotojornalismo, a atividade é orientada para a produção de fotografias para a imprensa. O fotojornalismo procura mostrar o que acontece no momento, no aqui e agora. No fotojornalismo ocorre a combinação de palavras e imagens; as primeiras devem contextualizar as segundas. O fotojornalismo é o discurso do instante, é a linguagem do instante.
NOTAS
1. A presente introdução inspira-se e procede do meu ato de puxar um fio do novelo de uma bela crônica intitulada “Que Restará Depois? (10.05.1944)”, cuja autoria é de Tarsila do Amaral in AMARAL, Aracy. Tarsila Cronista. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 2001, pp.189-191.
2. QUEIROZ, Humberto de. A Mococa: de sua fundação até 1900. São Paulo. Typographia do “Diário Official”, 1913, p.5. O referido trabalho foi apresentado ao “Segundo Congresso Brasileiro de Geographia no “Instituto Historico e Geographico de S.Paulo” e publicado na Revista do mesmo Instituto.
3. Entrevista concedida pela sra. Palmira Boarat durante o mês de Setembro de 1999.
4. Por uma questão de preferência pessoal, no que se refere à originalidade dos fatos históricos, tanto no depoimento quanto nas citações de livros (as quais contém antiga ortografia) manterei, ao longo deste trabalho, respectivamente, a ortografia da fala coloquial de cada depoente, bem como a escrita ortográfica convencional da ocasião dos escritos.
5. SOUSA, Jorge Pedro. “Uma História crítica do Fotojornalismo Ocidental”. Universidade Fernando Pessoa: Porto, 1998, p.1. Trata-se do argumento central da bela tese do referido estudioso; o presente texto foi extraído da internet, local onde ele se encontra disponível, na íntegra.
BIBLIOGRAFIA
AMARAL, Aracy. “Tarsila Cronista”. (Orga. Aracy Amaral). São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
BENJAMIN, Walter. “Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura.” Tradução Sérgio Paulo Rouanet. In Obras Escolhidas, v.1. São Paulo: Brasiliense, 1985.
LOPES, B. “Chromos”. 2 ed. Rio de Janeiro: Fauchon & C. – Editores, 1896.
QUEIROZ, Humberto de. “A Mococa: de sua fundação até 1900”. São Paulo: Typographia do ‘Diario Official’, 1913.
SOUSA, Jorge Pedro de. “Uma História Crítica do Fotojornalismo Ocidental”. São Paulo: Ed. Letras Contemporâneas, 2000.
* Do autor: caros leitores, por gentileza, aguardar, para breve, a seqüência do presente trabalho, isto é, o Capítulo II.
PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS
Campinas, é verão-fevereiro de 2007