Entrevista com Archidy Picado Filho sobre seu novo livro “Sobre Deus & eus”
- Depois da publicação de Seis breves histórias sobre a Vida, o Tempo o Amor e a Morte (contos, 2009), A Máquina da felicidade e o cromossomo Zen (comentários, 2005), Lições de Voo (infanto-juvenil em três edições, a primeira em 1995, a segunda em 2000 e a terceira em 2003), Lições de Voo II – a descoberta de Zryr (2003), Janelas da Alma (romance “policial espiritualista de ficção científica”, 2001), A última história de Batman (sob o pseudônimo de “Andryus Tzappak”, em 1999); antes de Os Cães do Diabo - A história que Pero Vaz de Caminha não contou (novela, 2012) o que o motivou a falar sobre Deus?
- Sobre Deus & eus é resultado de uma palestra que proferi aqui em João Pessoa (PB), no Centro de Estudos e Pesquisas Psicobiofísicas, que busca entender e repassar o conhecimento sobre a realidade considerada em sua dimensão “espiritual” e suas influências na vida daqueles que querem ter certeza de que ela existe como fundamental início, meio e fim de tudo. O Centro, dirigido pelo Prof. Paulo Chaves, é um lugar onde me foi dado oportunidade de dizer, pela primeira vez para uma plateia, o que compreendi ser esse tal “Deus” e sua Vida eterna – que, dizem, pode ser “nossa”, se atendermos algumas exigências “divinas”, como aprendemos em sabatinas e/ou escolas dominicais. Quando em igrejas, depois de ouvir padres, pastores e sacerdotes de todos os tipos, quis estar num púlpito a dizer o que compreendi serem algumas verdades. E ali estava minha oportunidade. E aí começo a palestra falando sobre o que apreendi acerca do que seja e do que não seja “o Criador”, contando um pouco de minhas convivências infantis, familiares e entre “irmãos em Cristo”. Depois disto, atentei para “minhas” sensações e ideias daquele, daquilo ou ainda daquela a quem chamamos “Deus”. No livreto, conto também o que pude apreender com astrônomos, filósofos, psicólogos e artistas; e aí, depois de passar tudo num liquidificador e beber, fiz o que todos os que acreditam ter desvendado certos mistérios sobre a Vida e a morte devem fazer: contar pra todo mundo. Claro que todo o mundo não esteve em minha palestra e nem lerá meu livro; mesmo porque há somente quinhentos exemplares dele no planeta - considerando a possibilidade de que muitos, num surto de Idade Média, o jogarão fora como "malditas heresias". Porque precisam ter algumas outras vivências e leituras preliminares, ou porque não estão entre os escolhidos a certos entendimentos e desenvolvimentos, como muitos parecem estar. E então não podem ainda entender certas metáforas jesuínas, ou as de outros “avatares” contadas em outros livros “sagrados”, entre outros profanos.
- A pergunta básica que seu livro provoca, já que ouvi de um leitor que “o livro fala de tudo, menos de Deus”, é: você acredita em Deus?
- Eu e minha mãe, que se acreditava cristã e cria fielmente que tudo contido na Bíblia é verdade, discutíamos essa questão do valor diferencial do crer dela e do meu procurar compreender. Para mim, para que possa crer melhor e mais, preciso compreender como certas coisas aconteceram e acontecem; principalmente aquilo que se acreditam serem “grandes verdades”. Para encarar um desafio intelectual, e impor maior complexidade a minhas pretensões cognitivas, quis compreender para poder crer na Verdade que nos diz ser a Vida material reflexo luminoso manifesto da potência de "Deus". E então, nessa minha tentativa obstinada de entender esse tal “Deus” e sua presença – na verdade entender a presença da Vida e desses eus conscientes no meio do nada – cheguei a conclusões não tão obvias para a maioria. Porque, hoje, mais do que nunca, depois da vitória dos artistas, produtores de “ilusões” – benditos sejam! – vive-se intensamente uma vida virtual. Inserido nela, uma gota da Vida num oceano de conceitos, você não sabe exatamente quem é ou onde está. Você se torna o que lhe disseram pra você ser e seu lugar é aquele que lhe apontaram como “seu”. É sobre o que fala o filme "Matrix", por exemplo, embora abordando a questão do ponto de vista dos avanços e terrores da tecnologia. E aproveitando o que as artes nos legaram, enquanto produtoras de conhecimentos de modos de se representar a história das tensões entre as forças pelas quais tudo veio a ser, creio ser bom compreender as intenções do Cinema, tanto quanto do movimento abstracionista na pintura, por exemplo. Como exercício de representações, ele é base das manifestações objetivas da Vida. Obras abstratas nos dizem sobre o fundamental vazio do Universo onde quase tudo já foi posto, composto e decomposto de volta ao vazio fecundo. Mas apesar da observação do bíblico rei Salomão sobre que nada pode haver novo sob o sol, o escritor argentino Jorge Luis Borges valorizou a presença de um novo livro no Universo como algo bastante significativo, do ponto de vista de um acréscimo na Criação.
- Mas esse “Deus” representado pelos artistas profetas poetas existe?
- Se tal artística literária representação da potência da Vida não existia antes, passou a existir depois da invenção artística da reprodução de imagens, da palavra e da escrita. “Deus” é um arquétipo ideal, como o reconheceu Jung, a influenciar formação de certas culturas num determinado momento da história e que produziram representações artísticas daquilo que vive para sempre, fundamento de “nossas” vidas. “Deus”, como o conhecemos e, principalmente, como o desconhecemos, apareceu na história há mais de quinze mil anos. Entre tudo o que foi concebido sobre as caras de “Deus”, para mim a melhor representação da Vida eterna personificada é a figura que Brahma como "Krishna", o deus de pele azul da cultura hindu, mostra ao seu discípulo Arjuna como sendo expressa em muitas faces. Tanto quanto a figura do deus ou a palavra “Krishna” para os indianos, a palavra “Deus”, para nós, é uma representação artístico-literária da Vida eterna sob a perspectiva judaico-cristã – embora para os judeus seja mais substancialmente apropriado escrevê-la “D’us”, já que não se pode pronunciar o nome de “Deus” por inteiro. Mesmo que a força vital que tudo gera, e a que tais nomes se referem, não seja de fato nenhum deus. Se tivesse sido perguntado se acreditava em “Deus”, tenho certeza que o artista pop norte-americano Andy Warhol diria: “se a Coca-Cola existe, Deus existe”. Isto é o que digo sempre àqueles que me perguntam se acredito ou não em Deus.
- E o que tem a ver Deus com a Coca-Cola?
- Como bem disse o educador indiano J. Krishnamurti (http://pt.wikipedia.org/wiki/Jiddu_Krishnamurti), vivemos simultaneamente em dois mundos, embora seja visível a variedade de mundos que a imaginação e os recursos das artes criaram ao longo da história das civilizações. Dessa forma, os dois mundos fundamentais são o mundo natural e os que são produtos da imaginação, promovidos pelas filosofias e pelas ciências desenvolvidas com auxílio das artes, que, então, desencadearam culturas, identidades, civilizações... O mundo natural é constituído por uma incrível variedade de espontâneas apresentações luminosas, materiais, orgânicas e “inorgânicas” da potência da Vida eterna – entre elas aqueles que reconhecemos “nós” mesmos. Os mundos culturais, portanto, são estes inventados por gerações de nós que, juntos, proporcionaram o desenvolvimento de personalidades, de eus e a invenção os primeiros objetos como as colheres e, mais tarde, o usufruto da “Coca-Cola”, bem como de representações mais sofisticadas da figura de “Deus” e de tudo mais que não dá espontaneamente no ar, em árvores, nos mares ou nos rios. E tudo isso em milênios de convivências, guerras, grandes sacrifícios e enormes conquistas na construção e aprimoramento dessas identidades individuais, coletivas e dos valores que, com o tempo, os povos atribuíram a si mesmos, aos seus objetos e objetivos existenciais. E então apreendemos de nossos ancestrais “tudo” sobre nós: o que “devemos ser” e os muitos outros sentidos que, então, atribuíram a esta quase incrível força criativa a que ou a quem também chamaram “Vida”.
- Você vai fundo.
- Não tão fundo quanto o lugar de onde a Vida surge a influenciar elementos pré-existentes, ou outros que ela mesma cria à feitura de tudo luminosamente presente no tenebroso gelado vazio universal. Entre as interpretações representativas de valores sobre os fenômenos materiais do calor e do frio, por exemplo, nas igrejas sempre aprendemos que o fogo é elemento infernal, enquanto "frio-suave" é o “fogo” celestial que gera a manifesta luminosidade do “Senhor” - geralmente representado como uma chama azul, como no filme "O Príncipe do Egito, quando Moisés encontra a sarça ardente. Mas o frio, presente em todo espaço sideral, é o frio que leva a “morte”, esta impossível ausência da Vida; vazio friorento inescapável fundamento das fumegantes explosões estelares que fazem aparecerem outras formas da Vida no cosmos. Assim é; incontestavelmente. É só prestar bem atenção e aquecidos pela força da Vida é só onde podemos facilmente nos perceber inseridos. Você pode duvidar do que quiser, mas uma das muitas verdades é que a Vida, que nos formou e nos mantém aqui uns como todos, é eterna. Nunca teve um princípio ou um fim porque sempre existiu e existirá.
- Você não acha que tudo tem que ter um princípio e um fim?
- De alguma forma, quando ouvi pela primeira vez que a Vida sempre existiu, senti ter finalmente transcendido a noção dos opostos do mundo percebido em três dimensões, o que não é a realidade da dimensão essencial onde todos os tempos e espaços coexistem. A “dimensão-Deus” não está na quarta dimensão, na quinta ou na milésima. Um raciocínio assim leva a supor que necessariamente algo tem que vir de algo, numa busca inútil de um princípio para frente ou para trás. Mas esta “dimensão-Deus” só pode ser percebida por este “eu” quando sentir que o único tempo é o eterno e o único absoluto é aquele, aquilo ou aquela que nomeamos “Deus”. E então, depois disto, me pareceu absurdamente lógico assimilar o fato de que a Vida sempre existiu. Porque, de fato, a Vida se impõe dentro do vazio universal. Ninguém, nada escapa das intenções e do poder de existir da Vida.
- Nem da morte.
- Entre outros, as histórias contam que Jesus Cristo, entre outros, descobriu que a morte não existe, um fato de simples entendimento se se considerar que quem morre está ausente da Vida. A despeito de crenças em ressurreições por parte dos cristãos, baseados nas “promessas de Jesus”, em breve estes eus que consideramos “nossos” estarão ausentes. Mas não deveríamos nos assustar com isso, como ocorre às vezes com o crente mais fervoroso; quer pela possibilidade de encontrar Jesus Cristo face a face, quer pelo receio de não encontrá-lo. Porque, depois que o corpo desanimar, estaremos da mesma forma como quando ainda não vivíamos: "mortos". E por mais que uma infinidade de eras tenham se passado “antes” de nós, num momento do tempo eterno chamado “agora”, simplesmente nascemos. E como escreveu o filósofo francês Voltaire, “nascer duas vezes não é mais espantoso do que nascer uma”. Porque nascer sempre é o que espantosamente faz a Vida. E se você não percebe isso com facilidade a sua volta, em seu cotidiano, basta passar um dia numa maternidade.
- Há influência da teoria da reencarnação em sua forma de pensar o mundo espiritual em relações com o material.
- Não compreendo a presença da reencarnação como uma teoria. O erro da interpretação da reencarnação dos espíritas, por exemplo, é que eles constroem suas visões do mundo “espiritual” apegados ao que, sob a perspectiva de “Deus”, já deveriam considerar ultrapassadas relações familiares. Ao invés de entenderem o sentido da metáfora do poema que diz um anjo formado por duas pessoas que se amaram na Terra, os espíritas, entre outros reencarnacionistas, transferem seu desejo de reencontrar "seus” eus, entre outros conhecidos, em outras dimensões “espirituais” da Vida, ou de "purgação de débitos" a fazê-los evoluírem em direção à reunião com um “Grande Espírito", como creem outros. Compreendo que seja assim para os espíritas, mas não concordo com eles, apesar de ter visto “o espírito” de minha mãe depois que ela morreu. E logo ela que, como a esmagadora maioria das pessoas, reclamava nunca ter visto nenhum morto conhecido durante a vida a crer que continuamos além do túmulo. Mas desconfiei da veracidade de minha visão, pois já refletia sobre a substância dos eus. Imaginemos que o corpo que formara a imagem de minha mãe possa ter um espírito correspondente a sua forma física. Mas o mesmo não pode acontecer as roupas dela. Porque o espírito de minha mãe apareceu vestido, e as roupas de seus usuários não têm forma espiritual correspondente a suas existências. Ou têm? Diante de tantas dúvidas e crenças, penso que o cientista Carl Seagan e o psicólogo C. G. Jung me explicaram porque eu a vi como vi. Quem quiser saber por que vê ou não vê certas coisas é só ler "O mundo assombrado pelos demônios", de Carl Seagan, ou "Psicologia da Religião Oriental e Ocidental", de Jung. Quanto à reencarnação, é um processo natural das sucessivas manifestações ininterruptas da Vida eterna em muitas de suas formas, micro e macrocósmicas; todas com tempo limitado de vida, embora umas tantas possam viver por eras. Mas o que reencarna a continuidade dos muitos modos de poder ser é sempre e sempre a Vida, ela mesma; não a “minha” vida, a vida efêmera do “meu” eu psíquico, constituído pela memória acumulada de minhas vivências terrestres, junto com as de nossos ancestrais. Apesar de termos conquistado certos domínios, nada podemos possuir aqui, sendo “meu” eu, na Verdade – como o "seu", como tudo que vive – de propriedade exclusiva da Vida. Como bem observou o filósofo e escritor inglês Aldous Huxley, “estamos organicamente vinculados ao Criador” e tudo pertence a “ele”.
- Então você acredita que há um Deus.
- “Creio porque sei”. Jung disse isto. Mas o que apreendi em cinquenta anos de vida, estudos e convivências com “Deus” e ateus é que seu nome é uma representação do que também chamamos “Vida eterna”. E que ele anda sendo dito em vão durante muitos séculos. Agora, depois de sua “metástase” global, absolutamente desgastado pela ignorância e pelos preconceitos - embora ainda com algum poder de influência, tanto boa quanto má, partindo desta última condição ainda a possibilidade da realização da concepção artístico-bélica do Apocalipse. Para que tal não aconteça, convém começarmos a chamar o que nos deu a existir, e nos mantém por aqui, não mais como “Deus” – principalmente em respeito aos Seus valores primeiros e necessidade de preservação de sua importância cultural – mas como simplesmente “Vida”.
- Aparentemente, a perspectiva não vai mudar tanto, já que também nos foi dito que “Deus é Vida”.
- Mas escolher dizer a palavra “Vida” como símbolo daquilo que existe para sempre, ao invés de chamá-la “Deus”, implica uma mudança de paradigma, não apenas na consideração libertária da possível inexistência de um “Deus Pai criador, tirano vigia de tudo”, como creem e temem ser ele muitos. Porque é bom quando você se liberta de coisas que lhe causam temores, e este “Deus” que persegue e pune ainda causa muita síndrome do pânico àqueles que nele acreditam sem o compreenderem, o que causa a herética rejeição dos ateus aos tais. A mudança de paradigma que proponho diz também respeito a considerações sobre o “gênero primeiro” deste tal “Deus”. Porque aquilo que se refere à “Vida” representa o que é essencialmente dadivoso, como são suas apresentações naturais e seus principais representantes humanos: as mulheres quando boas mães. A imagem de “Deus” como um pai foi inicialmente engendrada pelo fato de que foram os homens que, produzindo culturas e civilizações, imaginaram muitas representações formais de si mesmos e de seu “Criador”, atribuindo-lhe, então, aspectos masculinos. Mas certos povos reivindicaram já adoração de imagens fêmeas da divindade – um sacrilégio para velhos patriarcas machistas – já que a Vida não se manifesta exclusivamente como macho ou fêmea, muitas vezes apresentando-se de formas hermafroditas no reino vegetal e animal. Dessa forma, nas artes, entre todas as representações visuais de “Deus”, a figura suave e andrógina de Krishna é minha preferida.
- Então “Deus” é apenas um nome, uma pintura?
- O importante não é considerar as muitas imagens ou nomes daquilo que chamamos “Deus”, pois há tantos nomes quantos idiomas existem para dizê-los. E é nesse nível simbólico que “Deus” é tão real quanto a “Coca-Cola”. Porque ele e o refrigerante, assim como o “seu” eu e o “meu”, existem apenas nesta dimensão histórica da Vida, sendo a Coca-Cola, hoje, quase mais adorada do que “Deus”, entre outras grifes. No meio de todas essas apresentações viscerais e representações culturais da Vida, o importante é saber exatamente a que tais nomes de “Deus” se referem e, mais importante, a quê servirá para nós a perspectiva desta “Dimensão-Deus” na melhoria das relações na vida cotidiana.
- Para lhe perguntar como Pilatos perguntou a Jesus, o que é a Verdade?
- No meio de tantas incertezas, compreendi que, no que diz respeito à nossa presença aqui, se constroem os eus a partir da sensibilidade da fisiologia do corpo que os abriga, associada aos poderes da mente que gera. Entre eles, o poder de armazenar memórias que, com o passar dos anos, se tornam este ou aquele eu. E aí, como temos medo da aniquilação e, diante dela, enfrentar então o absurdo da “falta de sentido” da Vida, todos imaginaram que existem tais eus capazes de sobreviver à dissolução do corpo que os gera e abriga. E que não apenas podemos nos recompor como os eus individuais que fomos antes, ou melhores do que fomos – intenção de uma “evolução espiritual” – mas também reencontrar pessoas que viveram conosco neste mundo em algum outro lugar além da Vida, o que compreendo não ser possível. Porque nada é possível além da Vida. Nos que acreditamos mortos – estando eles na verdade como nós quando ainda ausentes da Vida – a não ser nossa lembrança deles, não há memória de coisa alguma neles capaz de preservar “espiritualmente” aquela velha individualidade que serviu a identificações fisiológicas e cidadãs do que foram por aqui. Mas, em outros eus a Vida vive - e "nós" com ela - agora e sempre, se engendrando em milhares de formas de ser e, ao ser-nos em ossos, carnes, sangue, mentes e vontades, dá continuidade ao seu impulsivo processo de materializar-se, objetivar-se em eus, se sentindo uns e outra a, enfim, saber que existe. Pois sem que haja algum de seus pequenos eus com a mínima consciência de que exista e a Vida não existirá para si. Em consequência, não existirá para nada e para ninguém. Por isso, ela se desenvolve também em nós até o ponto da máxima consciência que pode ter conosco de si mesma. Mesmo que “nossa” consciência seja considerada muito limitada por quem crê que todos nós usamos somente dez por cento da capacidade cognitiva de “nossos” cérebros.
- Então você acredita, ou melhor, compreende que a Vida é para sempre, mas quer saber de si através de nós. Em última instância, sempre seremos com ela para que ela possa sempre saber de si mesma.
- É isso. Muitos acham que “o Caos”, irmão do “Acaso”, gera os movimentos da Vida. Mas, em todas as suas dimensões, ela se manifesta organizando o caos. O Acaso é pai dos acidentes que acontecem quando a harmonia da Vida é abalada, também, por influências da primitiva inevitável ignorância que gerou e perpetuou o chamado “pecado original”, produtor dos cânceres e das deficiências em meio ao que a Vida quer por vivo e saudável.
- Você pode provar isso?
- Sim. Já provei. E você também pode provar. Não posso provar nada por você. Você só saberá se é ou não como estou dizendo se provar a coisa por você mesmo. Mesmo porque, se assim não fosse, não seríamos e não estaríamos aqui, embora nenhum eu é vivo: apenas está vivo. O verbo Ser determina a condição daquilo que é, somente, desde sempre e para sempre. Nesta perspectiva, só a Vida é assim, como antes eu diria como certos orientais disseram em relação à divindade: “só Deus é, nada mais existe”. Olhe para si mesmo. Olhe a sua volta, para cima, para o sol brilhando junto com outros bilhões de estrelas e você perceberá que a Vida se torna e se destorna; como, onde e quando quer – embora seu tempo de atuações seja sempre o hoje eterno. Somos absolutamente produtos dependentes desta Vida eterna. Desta forma, compreendo que, em relação àquilo que chamamos “morte”, não é possível para ninguém saber-se ausente da Vida, pois é óbvio que os eus não subexistem desvinculados dos corpos e das mentes que os objetivaram. Não se pode existir estando desvinculado da Vida e não se pode ser algo desvinculado dela. Enquanto apresentações temporais da Vida eterna, nós só podemos sentir e saber sobre grandes e pequenos prazeres e sobre pequenas e grandes dores – todas, enfim, passageiras – mas nunca se sentir morto.
- Diante de tudo o que você deduziu, será justo dizer que os artistas são os melhores representantes desse “Deus” criador ou desta Vida criativa? – já que criadores dos mundos alternativos existentes além da natureza onde também eles, muitas vezes a serviço de religiosos, inseriram os valores divinos à Vida.
– A palavra “artista” está numa situação parecida com a da palavra “Deus”, que sucinta desconfiança pela ambiguidade de seus significados. Porque aprendemos que quem faz trapaças é um “artista”. Mas na verdade às vezes os artistas são bons quando servem à criação de coisas boas, agradáveis, necessárias, e às vezes são maus, quando servem exclusivamente à destruição das coisas boas existentes; como todo mundo, embora “Deus” já tenha inspirado seus mais próximos reconhecê-lo justamente amoral – o que muitas vezes alguns artistas querem demonstrar ser também, e aí é quando mora o perigo. Mas, a rigor, a prerrogativa as genuínas apresentações e subtrações de fragmentos substanciais da Vida no vazio pertencem exclusivamente à sua potência eterna, sendo os artistas-cientistas, educadores, filósofos, engenheiros, médicos e advogados que ela encarna, na qualidade de expressivos apresentantes de seu poder criativo, necessários colaboradores à construção de melhores formas de usufruir suas dimensões natural e humana.
- Outro dia, noutra conversa, você me disse que “Deus é o maior materialista” sobre quem você já ouviu falar. Pelo que me consta, toda religião defende fundamentalmente a supremacia do valor de um mundo espiritual sobre o material. O que você quis dizer com “Deus é o maior materialista” que você conhece?
- O materialismo sustenta que a única coisa da qual se pode afirmar a existência com certeza é a matéria; que todas as coisas são compostas de matéria e todos os fenômenos são o resultado de interações materiais; que todas as substâncias são materiais etc. Diz-se que o materialismo está em franca oposição ao idealismo e a metafísica, dimensão das manifestações “mais puras” daquilo que também se chama “Espírito”. Mas compreendo que idealistas somos todos. Porque tudo o que expressamos são representações ideológicas daquilo que sentimos, compreendemos e cremos a partir de nossas relações conosco, com os outros e com o mundo. Concordo com os materialistas porque, como já foi mostrado, há um mundo luminoso material fundamental infinitamente pequeno que, em “interações quânticas”, como dizem físicos quânticos à comprovação da intuição de certos “místicos” do oriente, manifesta das maiores estrelas do Universo a formas de vida orgânica, organizada, capazes de apresentar considerável potencial da inteligência cósmica observada desde as atuações dos genes que geram a inteligência inconsciente das plantas, dos vermes e a consciência das pessoas. Quanto à crença de que a encarnação é algo essencialmente mau, indesejável porque decorrência de um projeto de “aprisionamento de um espírito devedor” a enfrentar necessário “castigo” por maus feitos em vidas passadas – embora haja muita verdade nisso quando observamos o fato de que os filhos pagam pelos erros dos pais – me faz pensar como pensaram muitos: que o mundo material é obra de um deus mau, um demônio, já que expressão das separações primeiras de um “Espírito Único”, da perda de sua harmoniosa integridade, de sua unidade em muitos eus conflitantes. Senão isto, “Deus” é mesmo ontológico amoral materialista por considerar a matéria absolutamente indispensável a suas manifestações em certas formas de ser, mesmo quando deficientes ou destrutivas. Dentro do que compreendo, então, se o mundo é obra de um “Deus”, e é formado por matérias, “Deus”, a Vida, é mesmo o maior materialista que conheço. E aí tem razão aqueles que, inspirados em Jesus Cristo, querem construir um poderoso reino de paz e amor verdadeiro "assim na Terra como no céu". Principalmente depois que, com Galileu, descobrimos que tudo vive mesmo no céu.