Falta de alimentos passa a influir no xadrez geopolítico
Gustavo Faleiros (Londres)
Alguém que já tenha lido livros ou artigos de Lester Brown quase sempre se admira com a capacidade do ambientalista americano de relacionar dados aparentemente desconexos. Foi assim também na conversa, numa tarde cinzenta de janeiro, em Londres, em que falou ao Valor sobre as mudanças climáticas e a alta recorde nos preços dos alimentos. Aos 76 anos, Brown (que é agrônomo) já não lidera o renomado Worldwatch Institute, que fundou e presidiu por 26 anos. Agora, porém, à frente do Earth Policy Institute, parece cada vez mais reconectado com as causas que o levaram ao ambientalismo. Ele acaba de lançar "World on the Edge", um ensaio com indicadores sobre segurança alimentar e questões ambientais. Nesse livro ele também apresenta o que tem chamado de "plano B", uma estratégia radical para mudanças na economia mundial.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Valor: Em seu livro, o senhor afirma que a atual alta nos preços dos alimentos parece mais uma tendência do que um evento isolado. O que sustenta essa análise?
Lester Brown: Estamos passando por uma situação interessante em termos de economia dos alimentos. Em 2010, tivemos um déficit de mais de 50 milhões de toneladas. Quando você combina isso com as projeções de aumento da demanda para este ano - de mais de 14 milhões de toneladas - isso significa que a colheita de grãos tem que ser quase 100 milhões de toneladas maior, só para se ficar na mesma situação, não para reduzir os preços ou restabelecer os estoques. Há dois fatores notáveis no mercado de grãos. O primeiro é que pessoas dessa área, seja num país importador, ou exportador, ou um "trader", estão começando a entender o que os cientistas querem dizer com maior ocorrência de eventos extremos no clima. A onda de calor na Rússia no ano passado foi um exemplo. A média de temperatura em Moscou ficou 7,6 graus centígrado's acima do normal. É algo que nunca se tinha tinha visto acontecer. O segundo é que a China está entrando no mercado de outros grãos, como fez com a soja anos atrás. A China tomou a decisão de sacrificar a produção de soja há 15 anos, enquanto estimulava o cultivo de outros grãos, por meio de apoio técnico. Não fizeram nada pela soja. Como resultado, em 1995, a China produziu e consumiu 14 milhões de toneladas de soja. Em 2010, produziu 14 milhões de toneladas e consumiu 70 milhões de toneladas, ou seja, teve que importar 56 milhões de toneladas, equivalentes a 80% do seu consumo.
Valor: Também parece haver perda de terras agricultáveis...
Brown: Sim, a uma taxa recorde, por causa do aumento da frota de carros. Há alguns anos, a venda de carros era de 5 a 7 milhões/ano. Para este ano, a projeção é de 20 milhões. Para acomodar 20 milhões de carros, são necessários no mínimo 100 mil hectares. Você precisa de espaço para estacionar, dirigir, estacionar no destino. Quando se adicionam carros, pavimenta-se solo e perde-se terra agricultável. Então, está chegando o momento em que a China está se dando conta de que terá que entrar no mercado mundial em busca de grãos. Acho que eles estão avaliando o melhor momento de fazer isso, para não assustar o mercado. Mas a questão é: já não existe um melhor momento. Em qualquer hipótese, terão que ir aos Estados Unidos para importar. E a ideia de competir com 1,4 bilhão de chineses por grãos não agrada aos americanos. Isso seria totalmente novo: nunca os Estados Unidos se preocuparam com segurança alimentar, e isso agora pode se tornar realidade da noite para o dia. A escassez de alimentos começa a fazer parte da nova geopolítica.
Valor: O presidente Nicolas Sarkozy disse recentemente que o G20 deveria direcionar os governos a intervir no mercado e conter a alta de preços dos alimentos. O que realmente pode ser feito?
Brown: Os governos estão lidando com os sintomas e não com as causas do problema. Não estão lidando, por exemplo, com o alto consumo de água na produção agrícola. Tampouco estão lidando com a questão da população. Todos acham que podemos continuar adicionando 80 milhões de pessoas por ano ao mundo sem saber como alimentá-las. Também não se fala da competição entre carros e grãos. Como um consumidor americano, não estou feliz em subsidiar o aumento de preço dos alimentos. Pois é isso que estamos fazendo, quando subsidiamos a produção de etanol à base de milho. É com isso que os governos têm que lidar. Mas o que eles estão tentando fazer é colocar teto no preço dos grãos, nos óleos vegetais, no açúcar. Os países exportadores tentam barrar a saída dos bens, os importadores baixam tributos para tornar mais fácil a entrada dos produtos. Mas ninguém ouve Sarkozy falando de mudanças climáticas, população ou erosão dos solos.
Valor: Avanços tecnológicos não poderiam ser a solução para o problema? Qual seria o papel dos transgênicos?
Brown: As companhias envolvidas gostam de justificar a modificação genética como uma solução para o problema da fome mundial, dizendo que a produção vai dobrar. Na verdade, o que já foi feito em termos de cruzamentos tradicionais garantiu a duplicação, a triplicação das lavouras entre os anos 1960 e 80. Os aumentos foram dramáticos e não houve transgenia envolvida. O que mais pode ser feito para aumentar a produtividade? Sinceramente, já fizemos quase tudo que era possível, pressionamos até mesmo o limite da capacidade fotossintética das plantas. Isso me lembra os limites dos corredores. Antigamente, corria-se uma milha (aproximadamente 1,6 km) em 6 minutos. Depois, em1894, na primeira Olímpiada moderna, em Atenas, baixou-se essa marca a menos de 5 minutos. Em 1952, Roger Bannister correu uma milha abaixo de 4 minutos e desde então ninguém chegou a falar que um dia chegaremos a menos de 3 minutos. Atingimos nosso limite fisiológico. A mesma coisa acontece com plantas: pode-se fazer um pouquinho mais ali e aqui, mas não muito mais.
Valor: Em seu livro, o senhor propõe um "plano B", bastante ambicioso, como solução para os problemas que enfrentamos: o corte de 80% das emissões de carbono até 2020. Será de fato possível difundir a aceitação dessa proposta?
Brown: Não acho que exista um indicador mais sensível do que o preço dos alimentos. Talvez nem todos entendam sobre gases de efeito estufa e temperatura global, mas todos compreendem o aumento no custo da alimentação. Se ficar claro - e acho que ficará bem cedo - que mudanças climáticas são responsáveis pelo aumento do preço dos alimentos, vai ser difícil não notar o que está acontecendo. Quando começarmos a assistir ao jornal na TV mostrando situações como vimos na Rússia neste verão, a percepção vai ser de que soltamos um monstro e que para estabilizar o clima vamos precisar prendê-lo novamente. Para mim, salvar a camada de gelo da Groenlândia é uma metáfora para salvar a humanidade. Se deixarmos que as concentrações de carbono sejam altas o suficiente para que a temperatura do planeta derreta toda a Groenlândia, teremos sete metros de aumento do nível do mar. Um de meus medos e que nós já tenhamos passado do ponto em que será possível fazer algo. Mas temos que ter esperança e nos unir.
Jornal Valor Econômico - 15/02/2011