Dona Dorvalina, índia Terena, de 106 anos
Advertência: O texto abaixo foi publicado, em 2008, em um jornal que eu trabalhava. Dona Dorvalina morreu há poucos meses. Achei interessante usar esse espaço para partilhar e eternizar suas memórias.
Segue o texto:
Exigem respeito: as mãos trêmulas, as rugas no rosto, o sorriso, a história. E deve-se, com humildade, respeitar. Todo esse conjunto pertence – e lhe cai muito bem – à índia terena Dorvalina Generoso Gonçalves, que completa 106 anos em menos de três meses. Sua história, feita de dores e alegrias, não pode deixar de ser rememorada na data em que se convencionou comemorar o Dia dos Índios em meio a tantos outros dias em que caem no esquecimento.
Filha de índios terena paraguaios, dona Dorvalina nasceu quando o século passado completava o seu segundo aniversário. Com audição curta pelo tempo e com memória não afetada pelos tantos anos, ela se lembra das pessoas que se foram, da infância sofrida, do marido que a salvou do sofrimento, da vinda para a cidade... E fala de suas paixões: o feijão com arroz, as atividades domésticas, o crochê, o tereré, o finado marido e a família.
“Eu lembro que eu socava arroz no pilão. Tinha 11 anos”, conta a índia, após se certificar da pergunta com a filha – como fez várias vezes durante a entrevista. “O que é mesmo, minha filha?”, sanava as dúvidas com sua “intérprete”. A menina trabalhadeira socando arroz na aldeia Buriti, em Dois Irmãos (MS), é uma das cenas mais antigas que a memória de Dorvalina lhe permite chegar. “Meus pais eram paraguaios, mas eu nasci em Bela Vista. Depois que meu pai morreu, eu fui pra aldeia Buriti e fui criada por um tio”, conta.
Ela foi ensinada pela vida a perder pessoas queridas. Isso desde criança. A primeira a morrer foi a mãe. Dorvalina chegara ao mundo havia cinco dias. “Ela morreu de dieta”, diz a índia, com sua maneira singular de ver a morte. O ano era 1902 e – se a memória de dona Dorvalina não estiver lhe traindo – o dia era 8 de julho. “Meu pai teve uma briga feia com o irmão dele. Minha mãe se assustou e morreu de dieta”, narra. Nove anos depois, era a vez de o pai deixar Dorvalina.
As mortes dos pais a levaram para a aldeia de Dois Irmãos do Buriti, a cem quilômetros de Campo Grande. O mundo se articulava para a Primeira Guerra Mundial enquanto Dorvalina vivencia uma guerra pessoal com seu novo responsável. “Ele não gostava de mim. Ele não me dava muita comida. Só trabalho. Tinha muita comida na aldeia, mas ele não queria me dar”, lembra-se, com tristeza.
O sofrimento se arrastou até os 14 anos quando ela conheceu o "seu rapaz" José Martins. “Esse rapaz me tirou da aldeia”, afirma, trazendo à tona as palavras de seu amor: “Ele me disse: ‘Tenho dó de você. Ninguém dá comida pra você. Vou carregá você daqui. Vou levá você embora’”, conta. Após a fuga, o casal andou por várias fazendas, onde José conseguia trabalho.
Dorvalina foi embora da aldeia, mas levou o fantasma da morte consigo. Ele teve 12 filhos, sendo sete homens e cinco mulheres. Todos os homens morreram – seis, quando ainda crianças. Ela foi levada a ver em si mesma a razão das mortes. “Eles viviam bem. Tudo tinha saúde. Mas morriam. Não conseguiam viver. O médico falou que era o meu leite. Eu não podia dar de mamar pra homem, só pra mulher”, afirma.
As mulheres sobreviveram. E com força suficiente para multiplicar, e muito, a família iniciada por Dorvalina e seu marido. Por mais que calculem, as filhas, os genros e os netos não conseguem chegar em números exatos, mas têm uma certeza: são muitos. Por suas contas, são 30 netos, cerca de 30 bisnetos, mais de 20 trinetos e dois tetranetos. A mais novinha, uma tetraneta, tem apenas cinco dias, a mesma idade que dona Dorvalina tinha quando perdeu sua mãe.
Mesmo que não consiga trazer à tona uma lembrança feliz, a terena sorri ao falar de suas preferências. “Eu gosto de lavar, de passar, fazer comida... Mas quase não faço mais isso”, diz. O seu dia é preenchido com outra paixão: o crochê. “Também gosto muito de arroz e feijão”, revela, numa sintonia perfeita entre o mais brasileiro dos pratos e a mais brasileira das etnias: a indígena.