Guido CAmpos entrevistado pelo blog (www.jecabit.blogspot.com)
Verborragia marginal: Crack e filosofia cristã na periferia do mundo industrializado
Guido Campos, 26 anos, taubateano, viveu a adolescência em um bairro pobre, São Gonçalo. Ali teve seus primeiros contatos com o rap. Imergiu ativamente na cultura hip hop de 1995 a 2005, tendo fundado grupos como Ponto 50 e Na Mira do Rap. Realizou trabalhos sociais na comunidade por seis anos, conheceu as drogas e, depois de passar por experiências devastadoras com o crack, decidiu lutar pela consciência do menos favorecido. Hoje busca se firmar como escritor de literatura marginal, vem participando de saraus, festivais de literatura e expondo seus trabalhos em eventos culturais locais. Alguns de seus escritos podem ser lidos em seu blog pessoal e no site .
Livros escritos:
4+1 drogas e poesias
A cidade de Livertow
Lendas urbanas
Jecablog: Defina arte.
Guido Campos: Eu defino arte como expressão da alma, algo que emerge do ser humano chegando a ser transcendental, acredito que seja a fala entre a alma e o corpo.
Jb: Você acredita em uma separação da alma e do corpo?
GC: Não, por mais que na primeira pergunta a resposta mostre um dualismo, não acredito, acredito que somos um todo. Até podemos melhorar a primeira colocando que a arte seria a fala entre a alma interna com a alma externa.
Jb: Um diálogo.
GC: Sim, podemos dizer que sim.
Jb: Mas então o que você chama de alma interna e externa?
GC: Duas pessoas. O eu interior interagindo com o seu EU, que para mim é exterior.
Jb: Você está dizendo que a arte só existe na relação com o espectador?
GC: De forma alguma. A arte surge no indivíduo, mas ele sente necessidade de expor, de transmitir isso, talvez por uma força maior que ele mesmo nem saiba explicar, ela por si só emerge. A arte não é estática.
Jb: E o que você está chamando de alma interior e alma exterior, e o diálogo entre elas, então?
GC: acredito que o que chamo de alma interior é quando quero falar da pessoa como um todo, e muitas vezes a arte se torna esta ponte, sabe, entre um e outro.
Jb: Um meio de comunicação?
GC: Sim, claro. Uma ferramenta a mais que o ser tem para se comunicar.
Jb: Então para você arte é somente um meio de comunicação?
GC: Não somente, isso seria esterilizar a arte. A arte é também expressão do ser, não só uma comunicação entre os seres, mas também é uma comunicação entre o ser e o mundo e principalmente com ele mesmo. Fala-se através da pintura, da dança, fala-se através da música, eu falo muitas vezes através da poesia, dos meus pensamentos escritos. Eu falo através de um conto.
Jb: Então também é uma ferramenta de autoconhecimento.
GC: Podemos dizer que a arte é uma ramificação da vida. [pensa] É a vida sendo contada de diversas formas. Por ser ramificação da vida, dentro dela temos a essência do TODO, algo divino e que se expressa num ser, porque ela só é vista através do artista ou de um olho artístico.
Jb: Então você relaciona a percepção artística a algo divino?
GC: Sim, claro, acredito que vem de um ser maior esta força ou forma de comunicação. A inspiração é algo espiritual, ao meu ver.
Jb: Qual a diferença entre escrever rap e escrever "literatura"?
GC: É muito diferente. Quando escrevo rap, já tenho um público-alvo [definido]. Por mais que música seja universal, dentro deste universo temos estilos e denominações, as letras são focadas para esse público, têm um cunho social pesado. Agora quando faço literatura e julgo meu trabalho como trabalho literário, acredito eu que a cobrança é maior. Estou escrevendo para pessoas que gostam de ler, que vão interagir com aquilo, vão conversar com o autor, irão questionar. Acredito que é diferente a forma que o autor se comporta com seu trabalho para dois públicos distintos.
Jb: Por que no caso do rap as pessoas não iriam interagir, conversar com, ou questionar o autor?
GC: Acredito que no rap o público massa não se preoculpa tanto em procurar saber o por que quelas palavras estão sendo escritas ou cantadas, não digo todos, existe um público pequeno do rap que faz isso, mas a maioria está ali para dançar no ritmo da batida e se dizer parte daquele clã.
Jb: Certo. Aí a gente volta à relação da arte com o espectador, ao seu aspecto comunicativo.
GC: Acredito que o artista fala e fala muito, o problema está no ouvinte. No rap são poucos os que valorizam o que o artista está dizendo. Se existe esta relação entre arte e espectador, acredito que esteja bem pobre tudo isso.
Jb: Se arte é comunicação, essa relação é pré-requisito.
GC: Não necessariamente. Posso me comunicar sem ser escutado, o outro não me anula.
Jb: Há uma pergunta antiga que diz: Se uma árvore cai no meio da floresta, e ninguém está lá para ouvir, ela fez mesmo barulho?
GC: Legal essa pergunta. Sim, acredito que ela fez. O fato de não ter ninguem para ouvir a queda dela não anula o ato.
Jb: Mas então você acha que é necessária uma percepção, uma consciência "artística", por assim dizer, da parte tanto do artista quanto do espectador?
GC: Tem um poeta taubateano, Claudio Pena, que diz a arte é algo inútil.
Jb: Acho que ele é gaúcho.
GC: Risos
Jb: Você mencionou que muitos no rap estão lá na cena para sentirem-se parte de um clã.
Isso me remete à função tribal dos primórdios da arte.
GC: Sim.
Jb: Nas cavernas.
GC: Hum.
Jb: Nos rituais. O que teria relação com o tal caráter divino mencionado.
GC: Como assim, Saulo? [pensa] Talvez a música seria a relação. A dança.
Jb: Sim. Mas também os desenhos, que são os ancestrais da escrita.
GC: Claro.
Jb: Os símbolos. E também as histórias contadas oralmente.
GC: Sim, a tradição do diálogo nasce através dos contos contados.
Jb: Pois é.
GC: Da história do povo.
Jb: Outra função que se associa à arte primitiva é incitar os espíritos à guerra e à caça.
GC: Sim, claro, acho por isso que ela é uma ramificação da vida, pois em tudo a encontramos.
Jb: O que você pensa do crack como fonte de inspiração?
GC: Acho que não tem nada a ver com fonte de inspiração, acho que o crack é a fonte da perdição. Risos
Jb: E a arte da perdição?
GC: Temos este poder, do trágico extrair arte.
Jb: Nesse sentido arte não é apenas algo divino.
GC: Meio William Blake, né? Ela habita os dois universos.
Jb: Ele procura reconciliar corpo e alma.
GC: Inferno com o céu.
Jb: O que você acha que leva as pessoas a fazerem uso de sedativos e substâncias que alteram a percepção da realidade?
GC: Hoje vejo que está ligado a uma fuga dos sentimentos, sabe? Uma falta de habilidade para lidar com alguns sentimentos, frustrações, aceitação, essas coisas. Fora isso temos a questão social, e essa aborda outros tópicos, cultura, pobreza, essas coisas. Acho que cada caso é um caso e precisa se ver o porquê, sabe?
Jb: Mas também é possível generalizar.
GC: Não sei, não. Generalizar sempre é perigoso.
Jb: Você conhece o livro Admirável mundo novo?
GC: Não.
Jb: Em Admirável mundo novo, Aldous Huxley descreve um mundo no qual a sociedade é toda controlada e estratificada, os nascimentos das crianças são todos feitos em laboratório, e as pessoas vivem em um ambiente como de fábricas, submetidas a uma ordem imposta, inclusive com referências nominais a Ford. Tudo é organizado em função da produção, estilo linha de montagem. Para manter as pessoas sob controle, o governo fornece soma, uma droga para as pessoas.
GC: Retrata bem o mundo atual. Na verdade é vantajoso para a elite dominadora ter pessoas dopadas e anestesiadas de tudo, que se tornam escravos deles de uma forma ou de outra. Por mais que a droga tenha o poder de anular a pessoa como produtiva na sociedade, ela também tem o poder de calar o talento que esta pessoa pode ter.
Jb: Na Antiguidade, os romanos ofereciam o pão e o circo. Hoje em dia, a televisão e a mídia mantém um suprimento constante de estímulos sensoriais para a população, igrejas evangélicas pipocam em grande número oferecendo a salvação, e o comércio de drogas (tanto do narcotráfico quanto da indústria farmacêutica, de bebidas e tabagista) abastece grandes massas mundialmente.
GC: Sim, poder paralelo.
Jb: Paralelo ao governo oficial, você diz?
GC: Sim.
Jb: Na Idade Média a Igreja detinha o monopólio da verdade e da fé na Europa e mantinha a população sob controle utilizando-se de símbolos sagrados e rituais.
GC: Onde você quer chegar?
Jb: Você acha que a civilização, conforme foi sendo criada pelo homem, o fez afastar-se da natureza e de si mesmo, criando uma necessidade de recorrer a anestésicos a fim de aliviar o contato com a realidade, para que o homem se mantenha afastado de si mesmo, de seu potencial mais sublime, e da natureza?
GC: Acredito que na verdade antes tinham a ideia de se dopar para transcender, era uma forma de transcender, mas depois a indústria, o homem moderno, viu que também dava para ganhar dinheiro com isso, acho que a evolução trouxe isso, o homem é curioso, e tem um ditado que diz a curiosidade matou o gato.
Jb: Você acha que a civilização é fruto da curiosidade?
GC: Acho que a civilização é fruto da evolução, e esta surgiu através de um olhar curioso.
Jb: Desenvolva isso.
GC: Acho que o homem quando morava em árvores teve curiosidade de descer delas e ver o que o sustentava, e desceu, ganhou outra forma de visão. Isso lhe deu capacidade de raciocínio, uma vez que seu cérebro se posicionou de outra forma e daí foi...
Jb: Muito interessante, talvez metaforicamente...
GC: Então agora a pergunta é: será que descemos realmente das árvores?
Jb: Essa hipótese do homem morar nas árvores não implica em que ele nunca pisasse no chão.
GC: Falo no sentido da arrogância do homem, sabe? Eu apenas fiz uma metáfora.
Jb: É, mas depois que o homem desceu da árvore dizem que foi para as cavernas, e também andava em bandos, em tribos...
GC: A sociedade nasce assim.
Jb: E colhia os alimentos na floresta, o que a natureza oferecia para ele.
GC: Depois veio o estoque.
Jb: Exato.
GC: E depois a troca...
Jb: Mas antes do estoque, houve uma tentativa de controlar o ambiente para que produzisse o alimento.
GC: Hum.
Jb: A necessidade de controle externo origina-se da negação do presente eterno, do medo, da ansiedade, e da ânsia por conforto e facilidades. Que acha disso?
GC: Acredito que está certo, o controle traz para o homem um sentimento de divindade, e isto o homem busca desde os primórdios, busca entender o universo, a criação de Deus. É a busca pelo entendimento de DEUS, saca?
Jb: O controle seria talvez o fruto da árvore do conhecimento. Cuja ingestão levou metaforicamente à queda.
GC: Sim, claro, existe essa briga.
Jb: Que briga?
GC: Pela busca do poder. Tem o lado do conhecimento. Existe aquela frase, acho que nasceu no positivismo, "conhecimento é poder".
Jb: Poder e controle sobre o ambiente externo. Essa é do Francis Bacon.
GC: Hum. Onde chegamos até aqui?
Jb: Coloco essa associação da metáfora da ingestão do fruto da árvore do conhecimento com o controle sobre o ambiente externo pois ambos representam a negação do que simplesmente é oferecido ao homem. Antes, no Paraíso, o homem não tinha que trabalhar, comia o que a natureza oferecia. Depois, com a agricultura, é necessário trabalhar pelo sustento.
GC: Sim...
Jb: Você acha que os chamados anestésicos visam, de maneira geral, suprimir os medos e os impulsos primordiais do homem?
GC: Acho que o objetivo é anular o homem como um todo.
Jb: E mantê-lo afastado de si e imerso na loucura.
GC: Sim, claro. O homem que não se introduz, não se questiona, está morto espiritualmente.
Jb: Como assim não se introduz?
GC: Não faz uma reflexão sobre si mesmo.
Jb: Então toda a construção social em que vivemos é essencialmente fundamentada na loucura?
GC: Não sei dizer se é, o que sei dizer é que hoje viver é uma loucura.
Jb: De que forma seus estudos teológicos se relacionam com a sua produção escrita?
GC: Quando vou escrever algo que esteja relacionado a espiritualidade, hoje tenho maturidade para distinguir bem o que é céu e o que é inferno.
Jb: Quer dizer que você experimentou o fruto da árvore do conhecimento?
GC: Acho que fazer literatura marginal tem tudo a haver com teologia, sabe? Teologia pode estar classificada como ciência, mas antes de mais nada é algo que nasce do povo, da ânsia de entender o DIVINO, e muitas vezes isso é marginalizado numa passeata num dia santo, sabe? E por aí vai, falar do cotidiano e do humano me fascina, por isso tenho em mãos um arsenal pesado, que exige responsabilidade. Porque quem faz a história não é Jesus, e sim o povo que fala dele, então eu tenho a missão de contar sobre os que fazem a história, o POVO.