MARIA DUMÁRIO - "ENTRE VISTAS"

Após incessantes tentativas de entrevistar a ficcionista Maria Dumário, o Poeta radicalizou e convidou o Zeh, seu principal personagem, para uma conversa fiada. Como todo bom poeta que gosta de uma boa prosa, entre vistas a todas as possibilidades, saiu esse rascunho:

Poeta – Você é o protagonista de “Z vs. A”. Como foi que tudo nasceu, se é que você sabe dessa história?!

Zeh – Poucos sabem, mas na verdade eu nasci “A”. Não ria, essa ordenação foi muito natural, mas como a exigência é pelo cultural, então, houve um desmembramento racional, no qual eu fui levado para o fim, para poder tornar-se uma rima perfeita.

P – E como você reagiu a isso? Essa imposição gramatical implicou em sua forma de ver a vida?

Z – Sim, com certeza. Uma coisa é ver a vida com o olho da testa, outra coisa é ver a “coisa” com esse olho coisado, coisificado, codificado para ver as coisas a partir do fundo, pela parte de trás. Não ria, por favor, pois o assunto é sério. A Maria, com certeza, não previu isso tudo quando me pariu, afinal, personagem, ao contrário da criança natural, se rebela mais cedo. A minha adolescência deu-se na terceira linha. E reconheço que não fui um filho fácil não!

P – E como foi o relacionamento com sua mãe?

Z – Minha mãe na ficção ou na vida virtual?

P – A que o criou.

Z – Como você não respondeu corretamente à minha pergunta, vou responder do meu jeito. Mãe, antes de tudo, é aquela que cria. Pô, você vai rir? Tá bom, tá bom, mas que fique bem claro, "mão" - mão, viu? - realmente é aquela que cria. Não basta botar o filho no mundo. É preciso dar carinho, roupa, brinquedo no Natal, teta na hora certa, presente no dia certo, fazer dormir na hora certa. E também educação na medida certa. Só que minha mãe tinha muitos afazeres a fazer com suas duas mãos, uma hora era prosa, outra poesia. E aí, já viu, né? Deu no que deu. Acabei criado quase só, ela dedicava-se a múltiplas tarefas e acabei por tomar corpo sozinho. Quando ela colocou o ponto final no “Z”, eu já era um Zeh criado, com barba e bigode.

P – Sinto uma certa dor, um rancor nas suas ponderações...

Z – ´magina! Minha mãe foi maravilhosa. Apesar da solidão de minhas brincadeiras, apenas do quarto branco, da sala branca, da cozinha branca, das poucas amizades, ainda assim fui muito feliz, mesmo com uma mão ausente que me afagasse, me apoquentasse... Pois assim ela revelava-se também um pai para mim, e me enchia de nuvens, metáforas, eufemismos, aliterações, prosopopéias e brinquedos com os quais me divertia à beça. O que fiz mais engraçado foi uma série de onomatopéias.

P – Mas você não sentia falta de um primo, um carrossel, uma pipa, televisão?

Z – Eu não sabia que isso tudo existia. Melhor, até sabia que havia um outro lugar, que parecia o paraíso, quando o livro ficasse pronto eu iria pra lá. Mas fui educado de uma forma agnóstica, então isso não se materializava em mim. Isso tudo parecia um sonho distante. E eu me diverti muito nos jardins com flores de letras, nas lombadas dos livros, no esconde-esconde das folhas, no escorregador da caneta. Enfim, fui feliz do jeito que eu conhecia a felicidade. Depois surgiram outras...

P – E a música, como ela chegou em sua vida? Na sua juventude você gostava de dançar?

Z – Se você observar meu registro de nascimento, vai ver que já nasci numa dança: “Naquela manhã Zeh nasceu. Era pra ser A ou Agá, era pra ter nascido à noite. Mas a dor dura, a anestesia mal aplicada, o parto difícil, só nos primeiros raios de sol puderam surpreender os olhos semicerrados e ainda turvos de Zeh.” Isso é música pura, dança intensa, baile dos bons. Nasci música, pura poesia. E aí reside um pouco de minha dor...

P – Por quê?

Z – Pois eu era outra coisa, sei lá! Talvez uma abstração, uma ficção mais impura, cheia de “por fazer”. Mas então vim assim, já durinho, engomado, vitaminado, metrificado, rimado. Nasci errado.

(continua; um dia)

x.x.x.x.x.x.x.

(mas poderia ser uma crônica, um conto...)