O analista

DC Cultura – Diário Catarinense

21 de novembro de 2009 | N° 8630

ENTREVISTA

O analista

Amilcar Neves é o nono entrevistado da série de conversas com os autores de Santa Catarina

Engenheiro mecânico, analista de sistemas, consultor de empresas, colunista do DC (sempre às quartas-feiras no caderno Variedades), Amilcar Neves é o nono entrevistado da série de conversas do DC Cultura com os escritores catarinenses. Ex-líder estudantil, o autor de Relatos de sonhos e de lutas (1991) recebeu, no dia seguinte ao golpe militar de 1º de abril de 1964, na condição de presidente da União Estudantil Tubaronense, um telegrama do presidente deposto João Goulart no qual manifestava seu apreço pelas mensagens de apoio após o famoso comício na Central do Brasil, no dia 13 de março, no qual Jango anunciou as reformas de base que serviram de pretexto para a reação dos militares. O telegrama está estampado na capa de sua coletânea de crônicas publicada em 2005, Da importância de criar mancuspias, título de uma crônica que publicou no falecido jornal O Estado, em 1978, sobre a arte e os cuidados na criação dos animais fantásticos imaginados pelo argentino Julio Cortázar em seu Bestiário.

Amilcar é assim: um sonhador, um lutador, enfrentando situações e circunstâncias inacreditáveis (como vocês poderão ler nas páginas centrais deste suplemento a respeito do imbróglio sobre a sua peça escrita em parceria com Francisco Pereira, O tempo de Eduardo Dias), mas, também, um analista, não de sistemas, porque faz tempo que ele saiu da IBM, mas da condição humana. Através de seus escritos, ele extrai das mais corriqueiras situações cotidianas as emoções, os dramas e as comédias de gente comum, em narrativas em que o real e o onírico se alternam, sem que isso represente o predomínio de uma forma ou de uma fórmula. Amilcar, acima de tudo, é um experimentador que, mesmo tendo absoluto domínio do conto, explora com igual maestria as possibilidades do romance, da crônica e da dramaturgia.

Descendente de duas tradicionais famílias da outrora Desterro, os Cabral Neves e os Livramento Carvalho, o avaiano Amilcar Neves nasceu em Tubarão, no dia 24 de abril de 1947, para onde o seus pais, o promotor Ataliba e a professora Maria Celeste, haviam se mudado. Seu avô materno foi prefeito da Capital e deputado estadual em três legislaturas, e o irmão de seu pai, Archibaldo Cabral Neves, escritor e crítico de cinema, foi um dos fundadores do Grupo Sul. Ao voltar para a Capital para prestar o vestibular, escolheu a mais improvável das carreiras, a Engenharia (todos em sua cidade apostavam que o líder estudantil escolheria o Direito). Do chão de fábrica aos computadores, o engenheiro Amilcar casou com dona Vitória e criou três filhos, mas nunca deixou de escrever as suas histórias (cínicas, moralistas, eróticas, amorosas, humoradas, poéticas, ternas, sarcásticas, apaixonadas) e de receber prêmios por elas em diversos concursos literários do país e no exterior também (foi finalista do Prêmio Casa de las Américas, de Cuba, em 1991, com o até hoje inédito Livro de Max e de outros seres mais).

Para esta conversa com o DC Cultura, realizada na casa do escritor, no Bairro Córrego Grande, o avô do futuro guitarrista Caio (sete anos) e de Gabriel (a caminho) fez questão que o convidado fosse o mestre do conto catarinense João Paulo Silveira de Souza, que há 30 anos teve um importante papel na carreira literária de Amilcar ao defender o seu livro de estreia, O insidioso fato, que havia sido censurado pela editora da Udesc. Leiam, a seguir, os principais trechos da conversa com Amilcar:

DC Cultura (Silveira) – Nascido em Tubarão, em 1947, você publicou o primeiro livro, O insidioso fato – algumas historinhas cínicas e moralistas, em 1979. Fale de sua trajetória, do que houve de essencial para você entre essas datas: seus pais, sua infância, os colégios, etc.

Amilcar Neves – Nasci em Tubarão, mas meus pais são daqui de Florianópolis. Famílias daqui; meu pai Cabral Neves, minha mãe Livramento Carvalho. Meu avô materno foi prefeito da cidade (João Pedro de Oliveira Carvalho, de 1919 a 1922) e era muito ligado ao Hercílio Luz, tão ligado que ele era o padrinho da minha mãe. Meu avô era comerciante e uma espécie de financiador das campanhas do Hercílio Luz. Ele tinha um armazém de secos e molhados, vendia produtos importados, era um armazém forte na cidade. E ele era um tremendo mão aberta. Chegava um cunhado passando mal, dizendo que precisava comprar uma casa, ele emprestava o dinheiro e nunca mais recebia de volta. E apesar de financiar as campanhas do Hercílio, ele não aceitava nada em troca, nem emprego para os filhos. Os que viraram funcionários públicos foi porque prestaram concurso. Até que (um dia) as coisas mudaram. O Hercílio morreu (em 1926), pegou fogo no armazém, e o meu avô passou a viver do salário das filhas e da venda das coisas que tinha em casa para se sustentar, até 1946, quando ele morreu, antes de eu nascer. Dizem que ele era de uma índole boníssima. Meus pais se conheceram aqui, casaram aqui, e, quando meu pai entrou para o Ministério Público, foi transferido para Tubarão e acabou fazendo toda a carreira dele lá. Fiz o primário no Grupo Escolar Hercílio Luz, pra variar. Era um prédio antigo e eu me lembro que trazia a data na frente, 1919, que é data do nascimento da minha mãe, também. Ficava pertinho de casa, na mesma calçada. O secundário eu fiz no Colégio Deon, que ficava do outro lado do rio, onde é a sede da Unisul agora. Quando terminei o colégio, o plano era ir para Porto Alegre, mas acabei vindo para Florianópolis.

DC Cultura (Silveira) – Nessa época já começou a germinar alguma coisa do escritor?

Amilcar – Sim, tudo começou nessa época. Eu comecei a ler desde cedo, com os livros que tinha em casa. Meu pai tinha um armário com um lado cheio de livros de Direito e o outro com literatura e assuntos gerais. Eu também tinha vários primos mais velhos, aqui de Florianópolis, que quando não queriam mais os seus livros infantis, mandavam lá para mim. Lia muitas histórias dos Irmãos Grimm. Até que um dia meu pai bateu lá em casa trazendo uma caixa com duas coleções, a Tesouro da Juventude e os 18 volumes, encadernados, das obras infantis do Monteiro Lobato, para mim e para o meu irmão. Eu pensei, “bem-feito, quem mandou dizer que gostava de ler”.

DC Cultura – Você ainda tem essas coleções em casa?

Amilcar – O Monteiro Lobato está comigo. Meus filhos leram, o meu neto já leu alguma coisa. Li aquilo umas três vezes cada volume, ia e voltava. Eu tinha um horário bom de aula, era das 11h às 14h. Então, antes de ir pro colégio, eu lia. Ficava lendo até umas 10 e meia, daí fazia um pequeno almoço, e ia para o grupo, que era quatro casas acima na rua. Começou com a leitura, e eu tive a pretensão de achar que aquelas histórias de reis, de fadas, de heróis, se eu quisesse, escreveria. Me achei capaz de escrever, mas evidentemente eu nunca me arrisquei a comprovar se era capaz ou não. Só achava que podia fazer e ficava por isso. E eu fui partindo, então, para uma leitura mais avançada...

DC Cultura – Você veio para Florianópolis com 17 anos e acabou se formando em engenharia. Como é que você, também um homem da matemática, dos números, lida com o seu trabalho com a palavra?

Amilcar – Na verdade, quando eu vim para cá, todo mundo (amigos e na família) achava que eu iria fazer ou jornalismo ou direito. Porque eu era envolvido no movimento estudantil secundarista em Tubarão, escrevia para os programas de rádio, tinha duas rádios lá, a Tubá e a Tabajara. Havia dois programas de rádio dos estudantes, um no sábado e outro no domingo, e eu escrevia crônicas para eles. Isso em 1963, 1964, antes do golpe. No dia do golpe, eu era presidente da União Estudantil Tubaronense. No dia 30 de abril, o senhor João Goulart manda um telegrama para mim lá do Palácio do Planalto, às 10h30min da manhã, e eu recebo aqui no dia 2 de abril. Entre o telegrama sair do Planalto e chegar na minha mão, como presidente da UET, havia acontecido um golpe de Estado e o presidente havia sido deposto.

DC Cultura – Essas crônicas foram a sua primeira experiência literária?

Amilcar – Sim. Precisava ter uma crônica no programa e elas não podiam ser do Rubem Braga, do Fernando Sabino. Precisava achar alguém que escrevesse algo local. Era um parto para conseguir quem escrevesse. De vez em quando um sujeito escrevia uma coisa, não havia uma continuidade, então começaram a pedir pra mim porque eu tinha notas boas em redação. Eu ia bem em português, e tive um excelente professor, Aloysio Ivo Urnau, isso foi fundamental pra mim. Conhecia a gramática, superexigente, cobrava leitura. Tive outro ótimo professor também de História e Geografia, que era padre e que foi o primeiro diretor da faculdade em Tubarão, o José Müller, conhecido por Almiro. As aulas dele eram fantásticas. Não chegava lá e despejava matéria, ele provocava o debate, a discussão. Então, a gente discutia muito, todos os assuntos, abertamente, direita e esquerda, a favor ou contra, numa postura absolutamente democrática. Isso me influenciou muito.

DC Cultura – Essa sua paixão pelo debate e pela opinião não lhe fez suspeitar que talvez você pudesse seguir a carreira de jornalista?

Amilcar – Pois é, além do meu envolvimento com a política estudantil e os programas de rádio, tinha também o jornal do colégio que saía todo mês – teve um ou dois que eu fiz praticamente inteiro; escrevia, levava para a tipografia, acompanhava a composição e a impressão do texto e depois saía com o jornal embaixo do braço para distribuir. A gente inventava júri simulado, fazia campanha eleitoral da União Estudantil, mobilizava a cidade toda. Levamos daqui de Florianópolis, numa sequência de palestras, o (geógrafo) Armen Mamigonian, o (médico e historiador) Oswaldo Rodrigues Cabral, o (geógrafo e escritor) Vítor Antônio Peluso Júnior e o (professor e historiador) Walter Piazza, todos medalhões na época. Um cara envolvido com tudo isso, quando vai fazer faculdade, ou faz jornalismo ou faz direito. Até para seguir uma carreira política depois.

DC Cultura (Silveira) – Escritores como, por exemplo, Günter Grass e Mario Vargas Llosa, sempre defenderam a participação direta do escritor na administração pública e na política. O perfil que se conhece de Amilcar Neves nos leva a crer que ele também partilha dessa opinião. Você teria alguma coisa a dizer a esse respeito?

Amilcar – Bom, para começar são dois grandes escritores, que admiro muito, a ambos. O Grass pelo O Tambor, aquela visão do nazismo através do anão, e o Vargas Llosa, que também tem obras maravilhosas, como A Casa Verde, Pantaleão e as visitadoras. O grande problema do escritor assumir uma posição política é levar essa posição para dentro de sua literatura. Ele deve assumir, pode assumir, mas..., por exemplo, eu nunca fui filiado a partido político, apesar de eu ter tido uma atividade de política estudantil, de ter sido diretor de Artes da Fundação Catarinense de Cultura, durante quatro meses (em 1995), não deu tempo de ter sido mais que isso...No momento em que eu me filiar a um partido político, a minha opinião, de certa forma, vai estar meio que comprometida. E a minha crítica também. Então, se eu critico hoje o senhor Esperidião Amin, e critico o senhor Jorge Bornhausen – inclusive, quando ele foi coroado o rei da província, em 1979, e foi recebido no aeroporto com pompa, com as duas televisões que existiam aqui transmitindo ao vivo a chegada do novo governador (biônico), o grande líder; eu fiquei tão indignado com aquilo que escrevi uma longa carta que saiu publicada no jornal O Estado. Então, se eu critico esse pessoal, eu me sinto à vontade para criticar, também, alguma coisa que o senhor Luiz Henrique (da Silveira) faça e eu não concorde, como, por exemplo, ele querer acabar com a Biblioteca Pública.

DC Cultura – Mas, voltando ao tema da engenharia, por que a escolha?

Amilcar – Na época, havia três profissões que as famílias gostariam que seus filhos seguissem: medicina, direito e engenharia. Fora disso, só o Banco do Brasil. Era a única exceção que era colocada. E eu também não ia mal em matemática e em física. Achei que poderia fazer engenharia sem deixar de escrever, até porque são poucos os que conseguem ser escritor em tempo integral. Viver apenas de escrever é muito difícil. Então eu optei por algo que proporcionasse uma base.

DC Cultura (Silveira) – Profissão e literatura são atividades estanques ou existe um vínculo saudável e construtivo entre elas?

Amilcar – Bom, o engenheiro, de repente, depois de fazer a faculdade e depois de fazer a pós-graduação na área de fabricação, ele acabou indo trabalhar numa área completamente diferente, a de informática. Com os computadores que, na época, eram chamados de “cérebros eletrônicos”. Mas eu sempre procurei usar a literatura, lendo, e depois escrevendo, como contraponto a essa atividade muito centrada no conhecimento tecnológico em detrimento do ser humano. Eu tentava equilibrar esses dois lados. Eu sempre procurei evitar esse mergulho total numa área em que eu via as pessoas se alienarem com muita facilidade. Eu me formei na UFSC em 1969, fiz a minha pós-graduação em 1970. Eu dava aula de geometria descritiva na antiga Escola Técnica Federal, em cursinhos e também na universidade. Dei aula durante um ano, depois eu saí para trabalhar com informática. Fiquei na IBM durante 21 anos, de 1971 a 1992, em Curitiba, em Londrina e, por fim, aqui em Florianópolis.

DC Cultura (Silveira) – Você conquistou vários prêmios literários importantes, tanto no Brasil quanto no exterior (México e Cuba). Gostaria que você nos falasse desses prêmios e das respectivas obras premiadas.

Amilcar – Curiosamente, ou coincidentemente, quase todos os meus livros foram premiados. O insidioso fato, o meu primeiro livro, tem um culpado por sua existência. Eu tinha ficado 10 anos sem escrever literatura, os cinco anos de faculdade e mais cinco anos no Paraná. Quando voltei, eu resolvi tentar fazer aquilo que eu havia planejado um dia, que era escrever ficção, escrever conto. O meu objetivo, desde o tempo de Tubarão, era ter um livro publicado. Mas eu não conhecia, pessoalmente, nenhum escritor ou gente ligada à área. O único que eu conhecia era o João Nicolau Carvalho, que tinha sido meu colega de lides estudantis em Tubarão. Fiquei uns três anos escrevendo, e daí fui ver com alguém se aquilo que eu estava fazendo prestava, tinha algum valor. Procurei o João Nicolau, que na época era reitor da Udesc, ele disse que leu os contos e achou que havia uma possibilidade de publicar. Disse para eu encaminhar os contos para o conselho da editora da Udesc, e eu acho que eles escolheram muito mal o relator, porque ele fez uma apreciação aprovando o livro, um cidadão chamado João Paulo Silveira de Souza, ele é o culpado.

DC Cultura (Silveira) – Não fui eu o relator. Foi o Silveira Júnior, ele fez o primeiro parecer e recusou o livro por motivos ideológicos. Daí eu pedi vista. Eu já conhecia o livro e, na época eu lhe conhecia também

Amilcar – Nesse tempo, eu comecei a escrever crônica também, ofereci algumas para o jornal O Estado, e acho que foi aí que nos conhecemos.

DC Cultura (Silveira) – Daí eu pedi vista e fiz uma defesa do livro, analisei toda a obra e o meu relatório venceu a questão. O livro foi publicado.

Amilcar – Houve até um episódio antes. Eu fui chamado lá na Udesc. O João Nicolau disse que tinha quatro contos que poderiam dar confusão, estávamos em plena ditadura, em 1978 (o livro saiu em 1979). Sugeriram que eu trocasse os quatro, porque a Udesc era uma instituição pública e os contos tratavam de sexo, de política, tinham críticas à ditadura, inclusive. Aí eu fiquei naquela situação: primeiro livro, e ninguém me pediu para amenizar, mudar alguma coisa, não era um romance que podia ser prejudicado em sua estrutura. E eu acabei trocando quatro daqueles contos e coloquei quatro que sairiam no A revolução vista do aeroporto, que está inédito até hoje. O que acabou sendo positivo, porque desses quatro contos retirados, um deles, intitulado O caminho de volta da figueira, saiu na revista Status, com destaque, uma bela ilustração. E depois outro, chamado Dia de independência, entrou num concurso da Fundação Franklin Cascaes e foi o primeiro colocado. Uma história de um desfile do Dia da Independência e, também, de uma menina que acaba tendo um caso com um pedreiro de uma construção; enfim, uma independência dela em relação à família. Também a revista Status premiou a minha novela Movimentos automáticos. Eles sempre faziam concurso de contos eróticos, e um ano resolveram fazer um Prêmio Status de Literatura Latino-americana. Eu tinha um começo de história, e não sabia se iria ser um conto. E depois que saiu o anúncio do concurso, eu desenvolvi a narrativa e mandei para lá. Era uma quantidade absurda de concorrentes, mais de 800, tinha até gente de fora do país. A comissão julgadora era o Gilberto Mansur, que era o editor da revista, o Jorge Amado e mais um que eu não lembro o nome. Depois eles publicaram uma prévia, com os 13 finalistas, e estava lá o meu nome. Quem ganhou foi o Alberto Salvá, cineasta espanhol, radicado em São Paulo. Ele tinha transformado um roteiro de um filme em uma novela. Depois ele retomou o roteiro e fez o A Menina do Lado (em 1987, com Reginaldo Faria e Flávia Monteiro). O que me surpreendeu foi que, no Movimentos Automáticos, o elemento erótico é mais sugerido. Mas eles gostaram e pediram se eu podia mandar alguns contos naquela linha. Mandei uns três que eu tinha e eles babaram. No final do ano, era 1982, eles publicaram junto com a revista um livrinho com quatro daquelas 12 novelas que haviam sobrado, inclusive a minha. E, curiosamente, a minha era a primeira. Isso foi em dezembro. E na edição de janeiro saiu o conto O caminho de volta da figueira. A (novela) Movimentos automáticos saiu depois, em 1988, numa edição da Associação dos Escritores de Santa Catarina com a Massao Ohno de São Paulo. E, logo depois, eu publiquei o meu segundo livro, o Dança de fantasmas, premiado no concurso Virgília Várzea, da Fundação Catarinense de Cultura, que tem como subtítulo Contos de amor. É um livro que eu gosto muito. São cinco contos, apenas, mas o amor deles não é nada água com açúcar. O quarto livro foi o Relato de sonhos e de lutas, de 1991, que ano passado foi indicado para o vestibular da UFSC e da Udesc, e saiu numa nova edição pela Record.

DC Cultura – Você tem vários livros premiados e ainda inéditos, por que isso? Depois disso você foi premiado pela União Brasileira dos Escritores, com com um livro que continua inédito. Por que isso?

Amilcar – O primeiro deles foi o A revolução vista do aeroporto, que ganhou o o Prêmio Fernando Chinaglia da União Brasileira dos Escritores do Rio de Janeiro. A mesma coisa aconteceu com o romance Desterro, Brasil, que venceu o Concurso Nacional do Paraná, em 1990. Esse do Paraná eu também pedi para não ser publicado. Porque sairia aquela edição oficial da secretaria de Cultura do Estado, iriam fazer os livros para circular nas bibliotecas deles, a gente sabe como é com os daqui. Os livros ficam invisíveis. Não sei se fiz certo ou não, mas ainda penso em publicá-lo. O mesmo romance, com o mesmo título, foi finalista do Concurso Cruz e Sousa no ano passado. E tem o Livro de Max e de outros seres mais, que foi finalista do Casa de las Américas de Cuba, em 1991, e ganhou o Grande Prêmio Minas de Cultura, o Prêmio Guimarães Rosa de 1990, e que continua inédito pelo mesmo motivo.

DC Cultura – Você pode falar sobre o caso do livro sobre o pintor Eduardo Dias?

Amilcar – Esse livro O tempo de Eduardo Dias – uma tragédia em 4 tempos não ganhou nenhum prêmio, mas em compensação rendeu três processos judiciais. É uma situação muito curiosa. Eu levei o Eduardo Dias agora para a Feira do Livro de Porto Alegre, e lá questionaram por eu estar levando um livro que está proibido de circular. Expliquei que o livro não está proibido de circular, eu não faria uma coisa dessas com uma instituição oficial do governo do Estado. Quando houve a primeira ação judicial, o juiz só concedeu a liminar para a suspensão do lançamento, e não para a venda do livro, com o queriam. Nós (eu e o Chico Pereira) levamos uns 20 dias para ter certeza de que era isso, e depois colocamos o livro à venda. Só que essa imagem ficou marcada como se o livro estivesse proibido. Até hoje, lá se vão mais de quatro anos. Nós tivemos uma sentença em contrário, no terceiro processo, nos condenando a pagar indenização e nos mandando refazer aqueles textos ofensivos, segundo considera o neto, à memória de um pintor que é citado na peça. Eu tenho que corrigir ou suprimir aquilo do livro, ou seja, na prática isso tira o livro de circulação. E seu eu mal consigo fazer um livro (neste país), como é que eu vou refazer. No caso do lançamento, nós começamos às 19h30min e, às 20h10min, entra o oficial de Justiça com a determinação do juiz mandando suspender sem que a autoria do pedido (a historiadora Sandra Regina Pyares dos Reis, sobrinha de Oswaldo Rodrigues Cabral) e o próprio juiz tivessem visto o livro. Porque eu e o Chico seguramos o livro até o último momento. Ela quis barrar o livro com base nas matérias que saíram no DC e na Notícia, um texto assinado pela Deluana Buss. Em duas frases, ela cita o episódio envolvendo o nosso historiador aqui, tio da dona Sandra Regina. Ela me ligou às 8h da manhã, me destratando, e exigindo que eu fizesse uma nota corrigindo as informações que haviam saído no jornal. Eu respondi que nem tinha visto o jornal, que a gente dá a entrevista, dá o livro, e não tem responsabilidade sobre o que o que vai sair. Que eu não podia exigir que o jornal publicasse qualquer nota. Ela disse que se não saísse uma retratação na edição seguinte, ela iria entrar com um processo. Só que ela não esperou o dia seguinte, foi no juiz e conseguiu a liminar sem ter tido acesso ao livro. Uma situação absolutamente surreal.

DC Cultura (Silveira) – A que você atribui essa espécie de “caveira de burro” enterrada em nosso minifúndio literário, que, com raríssimas exceções, não permite que os valores daqui sejam mostrado ao julgamento e à crítica do restante do país.

Amilcar – Acho que existe um componente sociológico com relação a isso. Começa com a história de darmos costas ao mar. Nós não queremos estar cercados de água, queremos estar voltados para dentro. Temos o exemplo dos nossos políticos. O Nereu Ramos chegou à Presidência da República por acaso. Ele era o quarto na linha de sucessão. O Getúlio (Vargas) se matou, o Café Filho foi deposto, o Carlos Luz não aguentou a pressão e o Brasil caiu no colo do Nereu, que era presidente do Senado. Não há essa ambição dos nossos políticos, que são ambiciosos por natureza. Eles querem é fazer política aqui dentro. Todo político do Nordeste quer ser o dono do seu Estado, mas faz isso através de uma projeção nacional. E com isso acabam levando alguns valores junto. Talvez por isso não tenhamos ninguém na Academia Brasileira de Letras. E também existem as nossas diferenças internas, temos muita rivalidade. Eu vejo em conversas dos nossos escritores mais jovens que estão aparecendo por aí, você conversa com um e ele esculhamba a obra dos outros todos. Você conversa com o segundo, ele esculhamba a obra do primeiro e dos outros todos. Entre nós há essa depreciação mútua da obra. Como a gente quer conseguir atingir um patamar se acabamos fazendo esse trabalho contra nós mesmos?

DORVA REZENDE

Amilcar Neves
Enviado por Amilcar Neves em 26/11/2009
Reeditado em 26/11/2009
Código do texto: T1944583
Classificação de conteúdo: seguro
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