Tchello d'Barros entrevistado no blog Haigatos | Jiddu Saldanha

Blog Haigatos

25.05.2009 - Rio de Janeiro RJ

Tchello d'Barros é entrevistado pelo poeta Jiddu Saldanha

JS – Gostaríamos de saber de você, qual a tua visão hoje a respeito dos mau-tratos com animais, você acha que o ser humano está avançando nessa relação?

T. d'B.: Ih, pergunta difícil numa hora dessas? Acho que começo logo decepcionando, pois não sei muito bem a resposta. Mas minha percepção é de que tem havido algumas conquistas em prol da proteção da fauna, apesar de nosso país abrigar um dos maiores tráficos de animais, onde muitos morrem no meio do processo todo. Recentemente proibiram animais nos circos, o que considero uma evolução real. Certa vez na Espanha acabei assistindo uma das tradicionais touradas e saí de lá quase vomitando de pena daqueles Miúras. Me disseram que ainda mantém isso porque atrai turistas, gera emprego e renda, essas coisas. Em meu próprio Estado de origem, Santa Catarina, ainda não se coibiu totalmente uma manifestação que ocorre em algumas pequenas comunidades, a tal Farra-do-Boi. E ainda ocorrem de norte a sul, apesar de proibido, as chamadas Rinhas-de-Galo, inclusive o marqueteiro do Lula foi preso numa dessas rinhas. Então, apesar dos avanços, os fatos evidenciam que há muito ainda por ser feito. Pessoalmente fico revoltado, e muito triste, mas triste de verdade, quando passo por uma casa e vejo um pássaro numa gaiola. É uma das imagens mais tristes que existe. Me dói mesmo.

JS – Tchello, você é um velho amigo da gataria então conta para nossos leitores, alguns fatos curiosos da tua história com os bichanos.

T. d'B.: Acho que começou pela palavra, com a expressão Ein Katz! Pois minha avó materna, nascida na Alemanha, nunca falou muito bem o português e essa expressão ainda é comum entre os imigrantes e descendentes germânicos no Sul. A tradução seria “Um gato!”, mas quer dizer o equivalente à “Uma ova!” ou “Uma ova que vai!” Nas muitas casas em que morei – mais de dez cidades - sempre havia algum gato, geralmente era de minha irmã. Havia também algum cachorro sempre, geralmente de meu irmão, algum papagaio e outros pássaros canoros que meu pai criava, lembro ainda de um porquinho-da-índia e até um cavalo marchador, o Zaino. Mas, o Missian, por exemplo, era um bichano branco-amarelado dos mais folgados. Com seus olhinhos azuis, esperava minha irmã pegar no sono, subia na cama como quem nada queria e se aninhava no ombro dela, veja só. Uma grande gata branca, com uma manchinha cinzenta, certa vez deu à luz três filhotes, dentro da caixa de lenhas, sob o fogão. Outro que apareceu e ficou foi um gato peludão e agressivo, que os vizinhos diziam que era cruza com gato-do-mato. Esse nunca deixou muito que o tocassem e era do tipo pegador de ratos, atacava galinheiros, enfrentava cachorros, uma fera. Como eu desenhava desde criança, esses gatos, pelo fato de ficarem quietinhos, serviam de modelo para meus desenhos muitas vezes. Mas meu preferido ainda é o Garfield, pois até fiz várias estampas dele para uma empresa de Cama Mesa e Banho. Atualmente curto um casal de gatos que vive pelos telhados ao redor da casa em que moro, aqui em Maceió. Ele, um gato grande, cinza-escuro, meio paradão, sempre na dele. Ela, cor caramelo e marrom, de olho esverdeado, muito bonita. Ela brinca mais, salta nos muros, se espreguiça, mia, entra na casa e até provoca ele de vez em quando! Nas artes, sempre curti os gatos pintados pelo mestre Aldemir Martins. Na literatura, é inesquecível O Gato Preto, de Edgar Allan Poe. E no cinema, é antológica a cena com o gato em Ghost, Do Outro Lado Da Vida. Há também um gato numa das cenas mais divertidas da história do cinema, a cena final do filme Homens de Preto, onde finalmente ficamos sabendo o que é o universo!

JS – Dizem que os gatos não estão nem aí para nós que os amamos tanto, você concorda com essa afirmação?

T. d'B.: Essa frase deve ter sido dita por algum cachorro ciumento! Ou alguém que estava tendo um dia de cão! Bem, vou fazer de conta que entendo do que estou falando, respondendo o seguinte: ora, nossa relação com os bichanos vem de milênios e eles estão presentes em quase todas as culturas. O fato é que nossos amiguinhos felinos foram se achegando e criaram essa relação afetiva, mas de contida cumplicidade. E já pensou que sem graça seria se eles chegassem miando alto, babando e abanando o rabo! A questão é que devemos respeitar sua natureza de animal territorial, devemos aprender com sua postura reservada, com sua atitude discreta e sua indefectível elegância. E são sim muito afetivos. A gatona branca, acima citada, adotou nossa família quando moramos em Celso Ramos, quase na fronteira do Rio Grande do Sul. Naqueles invernos com frio abaixo de zero, costumávamos tomar chimarrão, junto ao fogão-à-lenha, e ela vinha se recostar em nosso pés, como que pedindo um carinho, ou, sem a menor cerimônia, pulava no colo e por ali ficava, numa boa e adorava uns afagos. E exatamente porque não tem nada a ver com a pergunta, acabo de lembrar agora do Romero, um músico argentino e muçulmano que vive em Blumenau, e criava no sótão do estúdio mais de trinta gatos. Uma beleza aquela gatalhada toda! E em certas literaturas esotéricas, dizem que os gatos são o estágio mais alto na evolução animal e o gato siamês, o mais evoluído de todos.

JS – Aproveitando para falar de gatos e haicais, fale um pouco da tua relação com essa forma de poesia.

T. d'B.: Meu contato com o haicai foi quase inevitável, pois morei muitos anos na germânica cidade catarinense de Blumenau, uma cidade infestada de haicaístas, por incrível que pareça. Alguns dos meus prediletos são Nassau de Souza, Teresinha Manczak, Suzana Mafra, Margit Didjurgeit, Edith Kormann, Luiz Eduardo Caminha e Isnelda Weise, que é também dona da belíssima gata Sarah. Mas o destaque mesmo fica por conta de Martinho Bruning (em memória), com mais de dez livros publicados, extraordinário haicaísta, filósofo zen, foi amigo de Mário Quintana, mas hoje está injustamente esquecido e ainda com vasta produção inédita. Além disso, quando estudei as formas-fixas de poemas (isso foi no milênio passado, viu!, mas bem depois de Bashô!), tive que estudar também o haicai, pois ministrava oficinas literárias. Daí a praticá-lo foi um pulo, o pulo do gato, ou o salto de uma rã... Em 2.000 d. C. publiquei Olho Zen, meu livro de haicais. Minha opção foi e continua sendo pelo haicai tradicional, com direito a kigô e tudo mais, pois tenho origens rurais, digamos assim, vim de Brunópolis, planalto catarinense, terra da neve, e na infância principalmente, tive muito contato com a terra, a fauna e a flora, e essas vivências telúricas de alguma forma aparecem em meus haicais. Concluo essa com uma imagem para haicai, o haicai que não escrevi: indo para a escola numa manhã nívea, com neve quase na altura dos joelhos, a rua toda branca, encontro um gato branco que ficou me fitando, fitando...

JS – Na tua percepção, quem são os haicaístas que você aprecia e recomenda para os leitores do blog Haigatos?

T. d'B.: Bashô, Issa e Buson são fundamentais. Digo isso pois releio esses caras e sempre aprendo com Bashô um pouco mais da essência do haicai. Issa ensina que a emoção pode e deve estar nesses versos e Buson nos avisa da possibilidade de brincarmos com a linguagem, uma coisa, aliás, bem brasileira. E gosto da turma de Curitiba, cidade em que morei também: Helena Kolody, Paulo Leminski, Alice Ruiz, Andréa Motta, Marilda Confortim e até um pseudo-curitiboca que morou por lá e hoje tem um blog de haigatos... Mas leio também Teruko Oda, Masuda Goga, Paulo Franchetti, Aníbal Beça, Nenpuku Sato, Leila Míccolis, Benedita Azevedo, Débora Novaes de Castro, Ricardo Silvestrim e aquela galera dos grêmios de haicais em São Paulo. Depois tem toda uma turma que a gente vai trombando nos blogs e comunidades da vida, a maioria muito fraquinhos ainda, mas estão praticando e desenvolvendo os haicais urbanos, com outras temáticas e inovações... Nessas leituras vamos encontrando pepitas inesperadas, como o haicai de Mário Quintana, sobre um grilo. Um haicai de Octávio Paz, sobre um peixe, para mim, o mais belo haicai já escrito. E, surpresa das surpresas, lendo a obra completa de meu autor preferido, Jorge Luís Borges, dou de cara com uma série de haicais dele. Mas como o haicai tem dezessete sílabas, Borges, que era chegado em matemáticas e simetrias, escreveu então exatos dezessete haicais! Menciono esses caras porque o haicai algumas vezes sofreu algumas invencionices aqui nos tristes trópicos, já tendo chegado com título e rima, pelas mãos do modernista Guilherme de Almeida. O Leminski também cometeu uns rimados, mania que ainda encontra adeptos. E há o estranho caso da transcriação concretista que o Haroldo de Campos fez do haicai da rã, o mais famoso dos haicais. Penso que isso tudo tem a ver com nossa vocação antropofágica, assimilamos, devoramos, o que é de fora e reapresentamos de uma forma mais interessante. Como as pizzas brasileiras, que dão um show nas italianas. Agora, esse papo de recomendar autores não é comigo não, recomendo logo então que leiam o ótimo livro sobre haicais escrito pela Olga Savary ou façam uma oficina com a Alice Ruiz. Não recomendo autores especificamente porque acho que essas coisas são sempre uma descoberta pessoal, prefiro apenas desejar que cada um tenha boas surpresas pelo caminho, até porque era isso um pouco do que Bashô buscava em suas peregrinações.

JS – Nós percebemos em você, um verdadeiro mestre da concisão e da limpeza estética. Você levou isso ao haicai ou o haicai é que te deu essa percepção?

T. d'B.: Se essa concisão toda fosse mesmo verdade, não teríamos aqui essas respostas tão prolixas, hehe! Mas para os que aturam minhas tagarelices verborrágicas e acompanharam até aqui, posso dizer que de fato essas são características que algumas pessoas identificam em minha obra visual e também na produção literária. Vez em quando me dizem ou escrevem coisas assim. O fato é que quando o haicai apareceu na minha vida, eu já vinha desenvolvido uma linguagem em desenho, pintura e um pouco de fotografia experimental, sendo que essa concisão, a idéia de síntese, ou o rigor, como prefiro dizer, já apareciam nesses trabalhos, não como premissa, mas como resultado. Talvez por isso a identificação com esse poemeto nipônico tenha sido imediata. Foi amor ao primeiro verso com essa japinha! Nessas questões de concisão, também abordadas por vários grandes escritores, penso que há um conceito que serve para todas as expressões estéticas: o ideal não é o barroquismo, ou o minimalismo, nem dizer o máximo com o mínimo, digo que o ideal é apenas dizer o necessário. Fácil de dizer, difícil de fazer, como se vê nessas respostas! Aliás, equilíbrio, em suas várias possibilidades, é outra lição que a gente aprende com nosso amiguinhos felinos.

JS – Como você funde na tua linguagem estética, tantas técnicas variadas em uma produção que parece não linear. Isso é inquietação?

T. d'B.: De fato essa produção variada não parece linear e a boa notícia é que de fato nunca pretendeu ser e espero que nunca seja. Antes eu até tinha uma desculpinha meio esfarrapada: o fato de ter começado como desenhista têxtil e ilustrador em agências de publicidade. Essas atividades pedem que nos tornemos versáteis. Meus trabalhos no mundo da moda sempre exigiram polivalência. Embora na produção artística, por ser mais lúdica e não compromissada com resultados comerciais, nada me impede de variar, de desafiar meus próprios limites, que são muitos. A gente sempre quer saber o que há por detrás do horizonte. No meu caso, sempre trabalho muito o conceito de alguma proposta estética e depois é que parto para a técnica, o suporte, a forma, o meio. E nessa parte procuro estudar e aprender ao máximo, para que a criação em si, seja visual ou literária, encontre o veículo adequado para ser apresentado ao público. Acho que é por isso que os trabalhos em geral acabam sendo seriados. Quando estudei labirintos, não fiz apenas um, fiz trinta. Quando desenvolvi meu primeiro ideograma, acabei fazendo mais de cinquenta. Mesmo assim, há um fio condutor que liga todos os trabalhos, há uma identidade que transcende as técnicas e linguagens e amarra toda essa produção. Se não for essa inquietação, mencionada na pergunta, talvez seja falta de acomodação. De qualquer forma acho que tem a ver com esse nosso tempo de tantas pluralidades. Se a gente não pode ter sete vidas, nada impede de tentarmos diversificar a única que temos. Ops, acho que vi um gatinho...

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Haigatos de Tchello d’Barros

silêncio no bosque

o quê estão a sonhar

os gatos da Edith?

Nota: primeiro haigato de Tchello d’Barros, publicado em seu livro de haicais “Olho Zen” (Ed. Multi-prisma – Blumenau-SC – 2000 d. C.)

Trata-se de um pequeno horto florestal atrás da biblioteca pública em Blumenau, onde há alguns túmulos dos gatos da atriz blumenauense Edith Gaertner (1882 – 1967 d. C.), que fez carreira nos palcos da Alemanha. Edith tinha grande afeto pelos gatos. Ao morrerem, os felinos eram enterrados com direito a funeral e cortejo fúnebre. Estão enterrados ali os gatos: Pepito, Mirko, Bum, Peterle, Musch, Schnurr, Sittah, Putze e Mirl.

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E aqui, Jiddu, 7 haigatos p/ as sete vidas das sete perguntas:

miados na rua

enfrenta um cachorro preto

o gato valente

uma gata preta

namora um gato branco

numa tarde cinza

dois gatos pintados

desafinam violinos

concerto noturno

neve na cidade

miava o gato branco

e ninguém o via

na caixa-de-lenhas

a gata branca deu cria

gatinhos em cores

numa colcha azul

fecham-se uns olhinhos verdes

gatinho amarelo

um gato gorducho

ignora o rato que passa

felino feliz

Tchello d’Barros

www.tchello.art.br

Tchello d Barros
Enviado por Tchello d Barros em 03/08/2009
Reeditado em 03/08/2009
Código do texto: T1733997
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