Uma entrevista esclarecedora

Reproduzo abaixo entrevista de alto nível com um dos deputados que renunciaram ao Conselho de Ética da Câmara dos Deputados em protesto contra as "pizzas"

"10/04/2006

Se o regime fosse parlamentarista, este Congresso já teria sido dissolvido

A absolvição de João Paulo Cunha (PT-SP) pelo plenário da Câmara na última quarta-feira foi a gota d’água para alguns membros do Conselho de Ética. Pelo menos cinco anunciaram sua renúncia. O primeiro deles foi Júlio Delgado (PSB-MG), relator do processo que terminou com a cassação do mandato do ex-deputado José Dirceu.

Em entrevista para este blog concedida aos jornalistas Tânia Fusco e Leandro Colon, Delgado conta os motivos que o levaram a tomar tal decisão. Afirma que há acordos para salvar deputados e diz que vem sendo discriminado pelos colegas de Câmara.

Blog: O que o levou a renunciar ao Conselho de Ética?

Não tivemos outro caminho. Isso já tinha sido levantado logo depois da absolvição do Roberto Brant (PFL-MG) e do Professor Luizinho (PT-SP). O caso do João Paulo (PT-SP) foi a gota d’ água.

Temos a dignidade de recuperar a instituição. Mas isso foi transformado num corporativismo e a Casa virou um grupo de amigos onde as relações pessoais falam mais alto do que as provas. Vale o discurso, a emoção, o favor, o acordo. Todos eles encobertos no véu do voto secreto.

E nosso papel no Conselho de Ética virou encenatório. Não vou fazer parte de nenhuma cena dantesca nem oferecer ingrediente para a pizza que está se formando a cada dia no parlamento.

Blog: O senhor não teme ser discriminado dentro da Câmara por falar em acordo e corporativismo?

Já somos. Nós estamos estigmatizados como aqueles que querem perseguir os colegas. Um exemplo é que nós fazíamos um futebol toda terça-feira à noite, organizado por mim e outros colegas. Até isso acabou. Parece que a nossa presença pode trazer mau agouro ou algo de ruim para imagem do Poder Legislativo. O que deveria ser o contrário.

Blog: Quando começou isso?

Quando fui escolhido relator do caso do (José) Dirceu, a maioria me procurou para dizer que não deveria ter pego isso. E eu não pedi para ser, fui sorteado e comunicado. Vi que houve um afastamento natural. Mas depois o acirramento foi muito grande.

Uma das coisas que me faz falta em Brasília é o futebol. E não conseguimos retomar nossa pelada. A gente jogava no Iate Clube. Quando surgiu a crise, o Sebastião Buani, ex-dono do restaurante da Câmara, jogava com a gente. O Iate então cortou a pelada. E passamos para a Ascad. E tentamos retomar. Na semana passada, por exemplo, fomos eu e o Marcelo Ortiz. Ninguém mais apareceu.

E mais do que a pelada, era no plenário. Tinha companheiro que tocava a minha barriga e falava: temos que acabar com esse dedo-duro aqui. Muitos falavam: vocês querem acabar com a Casa? Vai acontecer um dia com vocês também.

(Participavam da tal pelada: Jovair Arantes (PTB-GO), Zico Bronzeado (PT-AC), Humberto Michiles (PL-AM), Íris Simões (PTB-PR), Dr. Francisco (PPS-MG), Almir Moura (PFL-RJ), Pedro Chaves (PMDB-GO), entre outros).

Blog: O senhor já usou caixa dois em suas campanhas?

Eu não usei caixa dois. Podemos falar em doações de material. Eu, por exemplo, tive um amigo que me mandou aquelas carteiras de pôr título eleitoral com meu número. E se você perguntar se declarei, nem sei quanto foi porque ele me mandou pronto.

Agora, doações de recursos financeiros, todos aqueles que recebi, eu declarei. Não tive nenhum dinheiro não declarado. Eu acho que temos que modernizar porque temos uma legislação que cuida do caixa um, mas não do caixa dois, uma coisa cultural na política.

Blog: O que mudou no plenário depois da cassação de José Dirceu que permitiu a absolvição dos demais?

Espírito de corpo e trabalho para os acordos, violentamente. No caso específico do João Paulo, pesou até o fato de ele ter sido presidente da Casa. E no caso dos outros deputados, foram os acordos selados. E por trás disso, um pano de fundo muito grande...

Blog: Que pano de fundo é esse, deputado?

O PTB trabalhou violentamente com o PT no caso da absolvição do João Paulo, do Luizinho e do João Magno (PT-MG), dando de volta a absolvição que foi concedida ao Romeu Queiroz (PTB-MG). E da mesma forma o PL e o PP. E no caso do Brant, foi um acordo selado naquele dia entre Brant e Luizinho. E aí houve uma participação desses partidos.

Se for feita uma radiografia das votações, ficará nítido que os acordos foram estabelecidos. Apesar de que nunca poderemos comprovar isso porque o voto é secreto.

Blog: O senhor acha mesmo que nunca será possível provar que houve acordo?

Você sempre acredita na capacidade das pessoas falarem a verdade. Quem achava que o Francenildo falaria da casa de Ribeirão? Quem sabe se lá na frente alguém, que tenha participado desses acordos, diga que teve mesmo, que era combinado e era uma troca de favores: salva o meu que salva o seu.

Blog: Em algum momento o senhor foi procurado para acordos?

Diretamente, não. Mas sondagem muitas. E imagino as pressões que os colegas sofreram.

Blog: Que tipo de sondagem, que tipo pressão?

Gente que sondou sobre meu relatório, no meu caso. Nos outros processos, eu fui procurado não pelos envolvidos, mas por pessoas que, sabendo da minha posição, propuseram que eu me ausentasse das votações: você não topa pelo menos sair?

Blog: O senhor foi ameaçado?

Não gosto muito de falar disso. Mas meu carro foi baleado, eu fiz registro na Polícia Rodoviária Federal. Quando eu estava saindo do Rio (indo para Juiz de Fora)... Mas eu era relator e meu carro foi baleado com um tiro. Parei mais a frente e fiz um registro na Polícia Federal. Vocês são os primeiros a saber disso.

Não quero fazer nenhuma analogia, mas aconteceu no período em que eu era relator. E também teve o episódio dos meus computadores em que os arquivos foram apagados.

Blog: O senhor teve medo?

Medo não, mas um receio pela minha família... as pessoas mais próximas. Fiquei mais cuidadoso. Mas eu rezava, pedia proteção a Deus.

Blog: Na Câmara o senhor é tratado como traidor. E fora dela?

É o inverso. De ontem (quinta-feira, dia 6) para hoje, eu recebi um e-mail de um petista dizendo: “Aplausos para Ângela Guadagnin”. Um único. Agora, recebi mais de 300 e-mails, sendo uns 200 me parabenizando pela decisão de deixar o Conselho e outros pedindo pelo amor de Deus para eu rever a posição.

Blog: Fora de Brasília, qual é a imagem que vocês sentem que a população tem hoje do Congresso?

A Câmara não é mais a casa representativa do povo. Não existe mais isso. Se estivéssemos num sistema parlamentarista, esse Congresso já teria caído há muito tempo. E teriam sido convocadas eleições para daqui a 30 dias.

Blog: O senhor não acha que a renúncia de vocês pode acabar com o único foco de resistência na Câmara a favor das cassações?

Continuamos sendo foco de resistência, defendendo o voto aberto. Agora, com as vagas que vamos abrir, saberemos se o acordo está selado. Isso vai ficar claro. Quem ocupará a vaga do Chico Alencar e do Orlando Fantazzini é o PT. E aí o PT vai ter que julgar deputados do PP.

Mostramos para a sociedade quem está participando disso. E se pretendem deixar a conta dessa crise, exclusivamente, com o Poder Legislativo. Como se o Marcos Valério freqüentasse os gabinetes de todos nós. Não. O Marcos Valério freqüentou o gabinete da Câmara no período do João Paulo na presidência.

E foi vitorioso (na licitação) com sua empresa na época do João Paulo. O Valério freqüentava muito mais o terceiro andar do Palácio do Planalto do que a Câmara. E existiu um trabalho forte para transferir essa lama para Câmara. Com as absolvições, estão todos se afundando na lama ao levar o Legislativo a uma derrocada que pode não ter retorno.

Blog: O senhor defende uma revisão no modelo de julgamento de cassação? Cogita-se passar a missão ao Supremo Tribunal Federal...

Eu vejo com dificuldade um poder julgar o outro. Tenho um projeto de um Conselho (de Ética) misto entre Câmara e Senado, com quinze senadores e quinze deputados. As votações serão feitas pela Casa em que o parlamentar pertencer, no voto aberto. Essa seria uma forma de democratizar e combater o espírito de corpo que o voto secreto permite.

Blog: O senhor mudou do PPS para o PSB. E o PSB é da base aliada. Se não fizer uma aliança formal, deve, pelo menos declarar apoio informal à reeleição de Lula. O senhor não está no partido errado, não?

Acho que estou. Mas infelizmente a gente não tem a mesma opção dos juízes que podem se filiar a um partido seis meses antes e disputar as eleições. Se tivesse, talvez eu fizesse outra opção agora.

O PSB podia aproveitar esse momento para ser uma alternativa à sociedade brasileira, ser algo para discutir a política como vem sendo exercida. Mas o partido não se manifestou na crise do Palocci, na quebra do sigilo do caseiro, nem na CPI dos Correios.

Eu vi na quarta-feira (da semana passada) vários membros do partido aplaudindo o discurso vitimizado do João Paulo. A vítima disso tudo não é o João Paulo. É a sociedade brasileira.

Blog: O senhor está arranjando encrenca no PSB com essas declarações....

Fiz a opção de falar isso abertamente com vocês. E não vejo que o partido tenha tomado posturas corretas. E acho que há tempo de resgate. Eu não tenho insatisfação com o PSB em Minas. Eu tenho de certa forma ficado contrariado com posições que o PSB tem tomado em Brasília. Mas a direção é autônoma. Eu não quero mais uma vez ser dissidente de propostas políticas dentro do partido.

Blog: O que o senhor leva de experiência dessa Legislatura e da crise?

Eu exerci a liderança do PPS em 2004 e aprendi que as coisas são pautadas pelos líderes, e que essas coisas são fechadas mesmo. Acordos existem, composições de lados opostos existem. Reconheço que foi uma legislatura de profunda crise e muito desmoralizada, que culminou com absolvição daqueles que participaram do esquema de obtenção de recursos de forma irregular. Isso foi violento e vai ficar marcado como a legislatura do mensalão e da dança da pizza.

Blog: O que seriam essas “coisas fechadas” que o senhor mencionou?

Os projetos. A gente chega lá com prioridades, mas é o colégio de lideres quem define o que será votado de acordo com interesses regionais, dos governadores, do governo. Os líderes, o presidente e a Mesa têm uma força muito grande sobre os outros 450 parlamentares que estão lá acompanhando a indicação partidária e votando. A gente tem que fazer uma representação mais direta. O parlamentar tem que saber que, ao ser diplomado, não recebe um salvo-conduto ou um passe livre para agir da forma que quiser. Aquele diploma é uma procuração para representar quem votou nele.

Blog: O senhor já escolheu seu candidato a presidente?

Eu já. Mas estou esperando outras opções. Quanto mais opções tivermos para fugir da polarização PT e PSDB, tanto melhor. O que posso dizer que tenho certeza em quem não vou votar.

Blog: Em quem?

Vocês já sabem...

Blog: No cenário nacional quais as figuras de sua maior admiração, vivas e mortas?

Como homenagem eu cito Miguel Arraes e Mário Covas. São exemplos de postura ética por onde passaram.

Blog: E entre os vivos?

Hum... (demora a responder.) Deixa eu pensar...

Blog: Está difícil deputado? O senhor citaria o presidente Lula de antes da crise?

Não, nunca. Porque ele nunca foi exemplo de admiração minha. Nunca foi exemplo de político. Ele foi um grande sindicalista. Nunca foi exemplo de homem público. Um líder sindical que teve uma trajetória brilhante.

Blog: Ninguém entre os vivos, nenhum mineiro?

É... Eu citaria meu pai, Tarcísio Delgado (ex-deputado), que é um homem íntegro, um político correto. Tenho um orgulho de ser seu filho e ter seguido a carreira política por causa dele.

Blog: O senhor diz que se protege rezando... Qual seu santo protetor, de fé?

Não tenho um santo protetor. Mas faço minhas orações. Acredito muito no exemplo na postura de (São) Paulo de Tarso e acompanho muito os salmos. São Francisco de Assis também foi um exemplo forte. Mas não carrego nenhum amuleto. Tenho uma irmã que pede para eu rezar para Santo Expedito (das causas impossíveis).

Nelson Oliveira
Enviado por Nelson Oliveira em 10/04/2006
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