Cunha de Leiradella
Entrevista por Belvedere Bruno
1) Como é que Você define este recém-lançado Apenas Questão de Gosto?
É um romance policial. Mas não é apenas um romance policial. Para além da diferença estrutural de os personagens não serem só polícias e bandidos (no meu romance todos são bandidos), há também a aventura da linguagem. Assim como cada personagem, dentro de uma narrativa, deve ter a sua própria linguagem, a sua própria forma de expressão, também cada narrativa, dentro da obra do autor, deve ter a sua própria condição de comunicabilidade. A sua forma específica de mostrar o seu universo interior. E a linguagem de Apenas Questão de Gosto é específica não só dos seus personagens como, também, da sua própria estrutura de narração. E não estou apenas falando de palavras inventadas, é, inventadas é o termo certo, para exprimir situações narrativas específicas, estou falando de um novo sentido que foi dado a expressões de foro público. Olhe só como ficou o verso famoso de Fernando Pessoa tudo vale a pena se a alma não é pequena, que o detetive Eduardo da Cunha Júnior, mesmo não sabendo quem é o autor e não se preocupando nem um pingo com isso, recria para um pragmático tudo vale a pena se a gente acorda vivo.
2) O que é que é apenas questão de gosto, neste “Apenas Questão de Gosto”?
É, justamente, um apenas questão de gosto. Um gosto absolutamente pessoal. Não há por aí gostos para tudo? Então, o homo sum, humani nihil a me alienum puto, como sempre muito bem disse D. Maricota, a ex-professora do personagem Eduardo da Cunha Júnior e gargarejadora jubilada de frases lapidares, está certíssimo. Pois, se somos humanos e nada do que é humano nos deve espantar, tem mais do que razão o detetive ao dizer cada um gosta do que quer e ninguém tem nada com isso. O que, convenhamos, é uma verdadeira verdade. Se homem gosta de homem, o que é que mulher tem com isso? E a contrapartida é a mesma. Se mulher gosta de mulher, o que é que homem tem com isso? Vamos é mudar o Código Civil e comprar gasolina na Argentina, onde é muito mais barata, e não bancar os santos de pau oco e dar foros de guerra civil ao que é apenas uma mera questão de gosto.
3) Apenas Questão de Gosto é parte de uma trilogia que se iniciou com Apenas Questão de Método, e da qual faria parte Apenas Questão de Qualidade?
Trilogia? Quem falou em trilogia? Polilogia, faz favor, pois será apenas questão de trec-trec-trec.
4) Trec-trec-trec?
Catar milho no teclado do computador. Olhe, o Apenas Questão de Qualidade já está esquentado no forno, pois é preciso ver que no inverno faz um frio danado na serra do Gerês. Mas é apenas questão de Portugal se manter com vida e saúde. Se mantiver e agüentar o tranco, já viu, os apenas continuarão.
5) Algum novo título já em vista, uma vez que o Apenas Questão de Qualidade já está no forno.?
Assunto. Por enquanto apenas assunto. Para quem não sabe, a mixórdia portuguesa só difere da mixórdia brasileira no sotaque.
6) Será que Eduardo da Cunha Júnior vai servir-se, mais uma vez, de armas como a crítica, a ironia e o sarcasmo para evidenciar o absurdo nas vidas de toda a gente?
A crítica, a ironia e o sarcasmo não são armas. São apenas verdades. Seriam armas se prendessem ou matassem. Mas, infelizmente, hoje, só é preso quem rouba uma galinha. Porque quem rouba o galinheiro vira deputado. Ou senador. Olhe, quando o Eduardo da Cunha Júnior diz, com a maior tranqüilidade, que o que mais emputeceu o heil Hitler não foi o crioulo Jesse Owens ter estraçalhado o branquelo Lutz Long nas Olimpíadas de 1936, em Berlim, foi o telegrama que recebeu do general Francisco Franco, dito Bahamonde, admirador confesso da pureza racial dos touros espanhóis: Esquenta, não, meu Führer, que faremos as próximas touradas em Madri, não o faz para causar riso. Faz, sim, porque a maioria das pessoas tem medo de dizer a verdade. De mostrar a cara e apontar a dedo os seus próprios erros e os erros dos outros. De viver a vida como ela deve ser vivida. Se assim não fosse, você acha que seriam necessárias leis específicas para defender os nossos direitos constitucionais, quando eles estão expressos na própria Constituição?
7) Por que é que as pessoas têm vergonha de se ser o que são? O que é que elas são? E como é que vivem não sendo elas próprias?
Porque não são o que devem ser. E não são o que devem ser por que têm medo de o ser. Complicado? Não. Veja como é simples: o Sr. Fulano não diz mal (diz mal, porque dizer a verdade é dizer mal) do Sr. Beltrano apenas para que o Sr. Beltrano não diga mal dele. E pronto. Assim, todos se satisfazem e todos tomam os tranqüilizantes da praxe. Porque a diferença entre o que as pessoas são e o que elas deviam ser difere apenas na maneira como tomam os tranqüilizantes. Uns, pedem a receita ao médico e compram -nos nas farmácias, e acham-se importantes. Outros, tomam-nos por obrigação nos hospícios e não se acham nada. Como é que as pessoas vivem não sendo elas próprias? Ora, ora, quem é que faz deste mundo um mundo de faz-de-conta? Então você acha que não se praticam abortos nem há prostituição no Brasil só porque a lei diz que é proibido? Ou que os direitos da mulher e do homem são iguais só porque a lei diz que são?
8) André Seffrin escreveu na Revista Entre Livros (São Paulo, fevereiro, 2006) Leiradella acelera novamente a sua veia satírica, sobretudo ao tratar com muita ironia o mundo político, social e literário de um tempo mais ou menos recente: o malogrado Brasil de 1985. (…) Eduardo é o protótipo do herói sem nenhum caráter, um brasileiro moldado pela realidade que o cerca, personagem cínico e debocha que o romancista converte em crítico feroz de um mundo falido… Com que espírito Você gostaria que o leitor percorresse Apenas Questão de Gosto?
Com o mesmo espírito com que o romance foi escrito. Sem o menor pudor, sem a menor hipocrisia e, acima de tudo, dando boas gargalhadas. Olhe, se o único compromisso do artista é com a sua verdade, o compromisso do leitor é igual. Vale o que ele quer que valha, não o que os outros lhe dizem que deve valer. Como autor, nunca fiz, não faço e nunca farei concessões. Moralistas ou muralistas. Escritas com “o” ou com ”u”. Porque, no momento em que as fizer, deixo de ser um ficcionista para ser apenas um copista. E com o leitor passa-se o mesmo. Ele também não pode fazer concessões e deixar-se levar pelo que lê. Ele deve interpretar e sempre questionar o que lê, pois só assim mergulhará na essência interpretativa da leitura. Só assim lerá a obra com o mesmo espírito com que ela foi escrita. Seja qual for a intencionalidade do autor.
9) Depois de Os Espelhos de Lacan, Eduardo da Cunha Júnior retomou o papel de detetive iniciado em Apenas Questão de Método. Porquê este regresso ao gênero policial? O Eduardo da Cunha Júnior está mais moderno agora?
Eu gosto de livros policiais, embora muitos puristas de plantão digam que o género policial é um género literário menor. A esses guardiães da dita pureza intelectual eu indicaria a leitura apenas de dois autores: Dashiell Hammett e Georges Simenon. E o Eduardo da Cunha Júnior não está mais moderno agora. O Eduardo da Cunha Júnior, que já foi um vendedor de livros em Inúteis Como os Mortos, que já foi um executivo em O Longo Tempo de Eduardo da Cunha Júnior, que já foi um dramaturgo em Guerrilha Urbana, que já foi um jornalista em Cinco Dias de Sagração, que já foi um engenheiro em O Circo das Qualidades Humanas, que já foi tantas e tantas coisas em tantos e tantos outros textos, não está agora mais moderno. E não está mais moderno porque ele sempre foi um homem do seu tempo. Sempre viveu e sempre interpretou a realidade que o cerca. E, o que é muito importante, sempre a viveu e sempre a interpretou sem o menor pudor e sem a menor hipocrisia. E, o que é mais importante ainda, sem fazer, jamais, a menor concessão fosse ao que fosse ou a quem quer que fosse. A ele, aos outros ou às imposições dogmáticas. Na verdade, o Eduardo da Cunha Júnior é exatamente como eu. Isto, que fique bem claro, apesar de eu não ser como ele. E eu não sou como ele porque ele consegue ser, ao mesmo tempo, tudo que eu não gosto de ser e sou, e tudo que gostaria de ser e não sou. Coisa simples de entender, dado que o criador, apesar de criar a criatura, não se pode criar a si mesmo. Infelizmente.
10) Em 1987, Você deu início à saga do Eduardo com o romance O Longo Tempo de Eduardo da Cunha Júnior. Como foi elaborado este personagem, que muitos críticos dizem ser o seu alter-ego?
Dizem. Mas olhe que não é. E não é porque, como já lhe disse, ele consegue ser, ao mesmo tempo, tudo que eu não gosto de ser e sou, e tudo que gostaria de ser e não sou. No capítulo mulheres, então, Deus do céu! Eu sou pior do que a noite e ele é melhor do que o dia. Como foi criado? Bom. Como foi criada a maior parte das coisas que andam por aí. Por acaso. Lá pelos idos de 80, comecei a escrever o Longo Tempo. E não tinha personagem nenhum chamado Eduardo da Cunha Júnior. O personagem chamava-se Jorge. Jorge Mitra, algo assim. Quando terminei o primeiro capítulo, começou a lufa-lufa dos ensaios de As Pulgas, lá em Belo Horizonte. Aí, já viu. O Longo Tempo entrou na gaveta e lá ficou. Estreado o espetáculo, voltei ao romance e, coisa curiosa, quando fui fazer a primeira revisão, a partir do terceiro capítulo, nunca mais esqueci, o Jorge tinha sumido e aparecia o Eduardo. E devidamente cadastrado: Eduardo da Cunha Júnior, brasileiro, maior etc. etc. etc. Como gosto das coisas que apenas aparecem e o Eduardo pintou sem eu saber como, já viu, deixei ficar. E ficou. E continuará. Agora, que já somos inimigos íntimos, mudar para quê?
11) Foi dito que Guerrilha Urbana, Cinco Dias de Sagração e A Solidão da Verdade podem ser destacados entre o que se produziu de melhor no romance brasileiro das últimas décadas. Considera-se um escritor realizado?
Satisfeito. Claro que satisfeitíssimo. Mas realizado, ainda não bati à porta do cemitério.
12) Em Os Espelhos de Lacan é um romance profundamente psicológico e Você compõe os seus personagens de uma forma inovadora. Tem intenção de retomar essa temática?
Por partes. Primeiro, não há nada inovador na construção dos personagens. Apenas, quando muito, poderia ser dito que o modo não é muito usual. Todos são chamados a falar de um mas, no fundo, no fundo, todos falam é de si próprios. E, segundo, como Os Espelhos de Lacan trata de seres humanos e eu só escrevo sobre seres humanos, seja sob que aspecto for, claro que vou retomar essa temática.
13) Você é um autor muito premiado. E tem recebido prêmios nas mais diversas modalidades: romance, conto, ensaio, cinema, teatro. Qual é a sua modalidade preferida, afinal?
Todas. Mas é claro que prefiro aquelas cujos prêmios me possam pagar melhor as dívidas.
14) Você entra nos concursos apenas pelo dinheiro?
Apenas. Ou você pensava que era pela glória? A Glória, pode até ser Misse Universo, mas pagar dívidas não é com ela.
15) A sua peça As Pulgas recebeu um dos maiores prêmios da dramaturgia brasileira e roteiro de longa-metragem O Circo das Qualidades Humanas também foi premiado. Pretende fazer novas incursões nestas áreas?
Claro. Depende das encomendas. Neste momento tenho encomenda de um roteiro para longa-metragem.
16) Trabalha por encomenda?
Se um bufê trabalha por encomenda porquê que um escritor não pode trabalhar?
17) Você viveu 45 anos no Brasil. Chegou em 1958 e regressou a Portugal em 2003. Como está sendo o processo de readaptação ?
Vivido dia a dia. Depois dos sessenta cada dia que se vive já é troco. Mas, embora Portugal, hoje, esteja muito diferente daquele Portugal eu deixei, ainda cai neve na erra do Gerês e um que outro lobo ainda uiva pelas quebradas.
18) Você acha que ainda há espaço para heróis nestas nossas vidas de todos os dias? Alguma vez houve?
Claro que há. Sempre houve e sempre haverá. Você quer um herói mais herói do que aquele Zé Imbirra que escuta falar do mensalão mas não sai por aí com vontade de matar quem lhe prometeu e não cumpriu, e continua no batente, preocupado com a sua vida que tem mais mês do que salário? O ato de maior heroísmo não é ser condecorado pela Pátria. É apenas ser verdadeiro.
19) Por quê?
Porque todo mundo tem medo da verdade. Já pensou se todo mundo dissesse a verdade acerca de todo mundo? Não ia sobrar ninguém pra contar a verdade. Por isso, como a verdade nunca é dita, mais vale todo mundo ficar vivo e fazer de conta que, do que não fazer as contas à vida e morrer todo mundo.
20) Você pode me dizer quem é este ser que habita o planeta, o ser humano?
É o sujeito que inventou a linguagem mas teve o cuidado de fazer da palavra a guarda do pensamento. Assim como o que todo mundo vê é apenas o que todo mundo quer que seja visto, também o que todo mundo fala é apenas o que todo quer que seja conhecido. Até prova em contrário o homem é o único animal que mente.
Entrevista por Belvedere Bruno
1) Como é que Você define este recém-lançado Apenas Questão de Gosto?
É um romance policial. Mas não é apenas um romance policial. Para além da diferença estrutural de os personagens não serem só polícias e bandidos (no meu romance todos são bandidos), há também a aventura da linguagem. Assim como cada personagem, dentro de uma narrativa, deve ter a sua própria linguagem, a sua própria forma de expressão, também cada narrativa, dentro da obra do autor, deve ter a sua própria condição de comunicabilidade. A sua forma específica de mostrar o seu universo interior. E a linguagem de Apenas Questão de Gosto é específica não só dos seus personagens como, também, da sua própria estrutura de narração. E não estou apenas falando de palavras inventadas, é, inventadas é o termo certo, para exprimir situações narrativas específicas, estou falando de um novo sentido que foi dado a expressões de foro público. Olhe só como ficou o verso famoso de Fernando Pessoa tudo vale a pena se a alma não é pequena, que o detetive Eduardo da Cunha Júnior, mesmo não sabendo quem é o autor e não se preocupando nem um pingo com isso, recria para um pragmático tudo vale a pena se a gente acorda vivo.
2) O que é que é apenas questão de gosto, neste “Apenas Questão de Gosto”?
É, justamente, um apenas questão de gosto. Um gosto absolutamente pessoal. Não há por aí gostos para tudo? Então, o homo sum, humani nihil a me alienum puto, como sempre muito bem disse D. Maricota, a ex-professora do personagem Eduardo da Cunha Júnior e gargarejadora jubilada de frases lapidares, está certíssimo. Pois, se somos humanos e nada do que é humano nos deve espantar, tem mais do que razão o detetive ao dizer cada um gosta do que quer e ninguém tem nada com isso. O que, convenhamos, é uma verdadeira verdade. Se homem gosta de homem, o que é que mulher tem com isso? E a contrapartida é a mesma. Se mulher gosta de mulher, o que é que homem tem com isso? Vamos é mudar o Código Civil e comprar gasolina na Argentina, onde é muito mais barata, e não bancar os santos de pau oco e dar foros de guerra civil ao que é apenas uma mera questão de gosto.
3) Apenas Questão de Gosto é parte de uma trilogia que se iniciou com Apenas Questão de Método, e da qual faria parte Apenas Questão de Qualidade?
Trilogia? Quem falou em trilogia? Polilogia, faz favor, pois será apenas questão de trec-trec-trec.
4) Trec-trec-trec?
Catar milho no teclado do computador. Olhe, o Apenas Questão de Qualidade já está esquentado no forno, pois é preciso ver que no inverno faz um frio danado na serra do Gerês. Mas é apenas questão de Portugal se manter com vida e saúde. Se mantiver e agüentar o tranco, já viu, os apenas continuarão.
5) Algum novo título já em vista, uma vez que o Apenas Questão de Qualidade já está no forno.?
Assunto. Por enquanto apenas assunto. Para quem não sabe, a mixórdia portuguesa só difere da mixórdia brasileira no sotaque.
6) Será que Eduardo da Cunha Júnior vai servir-se, mais uma vez, de armas como a crítica, a ironia e o sarcasmo para evidenciar o absurdo nas vidas de toda a gente?
A crítica, a ironia e o sarcasmo não são armas. São apenas verdades. Seriam armas se prendessem ou matassem. Mas, infelizmente, hoje, só é preso quem rouba uma galinha. Porque quem rouba o galinheiro vira deputado. Ou senador. Olhe, quando o Eduardo da Cunha Júnior diz, com a maior tranqüilidade, que o que mais emputeceu o heil Hitler não foi o crioulo Jesse Owens ter estraçalhado o branquelo Lutz Long nas Olimpíadas de 1936, em Berlim, foi o telegrama que recebeu do general Francisco Franco, dito Bahamonde, admirador confesso da pureza racial dos touros espanhóis: Esquenta, não, meu Führer, que faremos as próximas touradas em Madri, não o faz para causar riso. Faz, sim, porque a maioria das pessoas tem medo de dizer a verdade. De mostrar a cara e apontar a dedo os seus próprios erros e os erros dos outros. De viver a vida como ela deve ser vivida. Se assim não fosse, você acha que seriam necessárias leis específicas para defender os nossos direitos constitucionais, quando eles estão expressos na própria Constituição?
7) Por que é que as pessoas têm vergonha de se ser o que são? O que é que elas são? E como é que vivem não sendo elas próprias?
Porque não são o que devem ser. E não são o que devem ser por que têm medo de o ser. Complicado? Não. Veja como é simples: o Sr. Fulano não diz mal (diz mal, porque dizer a verdade é dizer mal) do Sr. Beltrano apenas para que o Sr. Beltrano não diga mal dele. E pronto. Assim, todos se satisfazem e todos tomam os tranqüilizantes da praxe. Porque a diferença entre o que as pessoas são e o que elas deviam ser difere apenas na maneira como tomam os tranqüilizantes. Uns, pedem a receita ao médico e compram -nos nas farmácias, e acham-se importantes. Outros, tomam-nos por obrigação nos hospícios e não se acham nada. Como é que as pessoas vivem não sendo elas próprias? Ora, ora, quem é que faz deste mundo um mundo de faz-de-conta? Então você acha que não se praticam abortos nem há prostituição no Brasil só porque a lei diz que é proibido? Ou que os direitos da mulher e do homem são iguais só porque a lei diz que são?
8) André Seffrin escreveu na Revista Entre Livros (São Paulo, fevereiro, 2006) Leiradella acelera novamente a sua veia satírica, sobretudo ao tratar com muita ironia o mundo político, social e literário de um tempo mais ou menos recente: o malogrado Brasil de 1985. (…) Eduardo é o protótipo do herói sem nenhum caráter, um brasileiro moldado pela realidade que o cerca, personagem cínico e debocha que o romancista converte em crítico feroz de um mundo falido… Com que espírito Você gostaria que o leitor percorresse Apenas Questão de Gosto?
Com o mesmo espírito com que o romance foi escrito. Sem o menor pudor, sem a menor hipocrisia e, acima de tudo, dando boas gargalhadas. Olhe, se o único compromisso do artista é com a sua verdade, o compromisso do leitor é igual. Vale o que ele quer que valha, não o que os outros lhe dizem que deve valer. Como autor, nunca fiz, não faço e nunca farei concessões. Moralistas ou muralistas. Escritas com “o” ou com ”u”. Porque, no momento em que as fizer, deixo de ser um ficcionista para ser apenas um copista. E com o leitor passa-se o mesmo. Ele também não pode fazer concessões e deixar-se levar pelo que lê. Ele deve interpretar e sempre questionar o que lê, pois só assim mergulhará na essência interpretativa da leitura. Só assim lerá a obra com o mesmo espírito com que ela foi escrita. Seja qual for a intencionalidade do autor.
9) Depois de Os Espelhos de Lacan, Eduardo da Cunha Júnior retomou o papel de detetive iniciado em Apenas Questão de Método. Porquê este regresso ao gênero policial? O Eduardo da Cunha Júnior está mais moderno agora?
Eu gosto de livros policiais, embora muitos puristas de plantão digam que o género policial é um género literário menor. A esses guardiães da dita pureza intelectual eu indicaria a leitura apenas de dois autores: Dashiell Hammett e Georges Simenon. E o Eduardo da Cunha Júnior não está mais moderno agora. O Eduardo da Cunha Júnior, que já foi um vendedor de livros em Inúteis Como os Mortos, que já foi um executivo em O Longo Tempo de Eduardo da Cunha Júnior, que já foi um dramaturgo em Guerrilha Urbana, que já foi um jornalista em Cinco Dias de Sagração, que já foi um engenheiro em O Circo das Qualidades Humanas, que já foi tantas e tantas coisas em tantos e tantos outros textos, não está agora mais moderno. E não está mais moderno porque ele sempre foi um homem do seu tempo. Sempre viveu e sempre interpretou a realidade que o cerca. E, o que é muito importante, sempre a viveu e sempre a interpretou sem o menor pudor e sem a menor hipocrisia. E, o que é mais importante ainda, sem fazer, jamais, a menor concessão fosse ao que fosse ou a quem quer que fosse. A ele, aos outros ou às imposições dogmáticas. Na verdade, o Eduardo da Cunha Júnior é exatamente como eu. Isto, que fique bem claro, apesar de eu não ser como ele. E eu não sou como ele porque ele consegue ser, ao mesmo tempo, tudo que eu não gosto de ser e sou, e tudo que gostaria de ser e não sou. Coisa simples de entender, dado que o criador, apesar de criar a criatura, não se pode criar a si mesmo. Infelizmente.
10) Em 1987, Você deu início à saga do Eduardo com o romance O Longo Tempo de Eduardo da Cunha Júnior. Como foi elaborado este personagem, que muitos críticos dizem ser o seu alter-ego?
Dizem. Mas olhe que não é. E não é porque, como já lhe disse, ele consegue ser, ao mesmo tempo, tudo que eu não gosto de ser e sou, e tudo que gostaria de ser e não sou. No capítulo mulheres, então, Deus do céu! Eu sou pior do que a noite e ele é melhor do que o dia. Como foi criado? Bom. Como foi criada a maior parte das coisas que andam por aí. Por acaso. Lá pelos idos de 80, comecei a escrever o Longo Tempo. E não tinha personagem nenhum chamado Eduardo da Cunha Júnior. O personagem chamava-se Jorge. Jorge Mitra, algo assim. Quando terminei o primeiro capítulo, começou a lufa-lufa dos ensaios de As Pulgas, lá em Belo Horizonte. Aí, já viu. O Longo Tempo entrou na gaveta e lá ficou. Estreado o espetáculo, voltei ao romance e, coisa curiosa, quando fui fazer a primeira revisão, a partir do terceiro capítulo, nunca mais esqueci, o Jorge tinha sumido e aparecia o Eduardo. E devidamente cadastrado: Eduardo da Cunha Júnior, brasileiro, maior etc. etc. etc. Como gosto das coisas que apenas aparecem e o Eduardo pintou sem eu saber como, já viu, deixei ficar. E ficou. E continuará. Agora, que já somos inimigos íntimos, mudar para quê?
11) Foi dito que Guerrilha Urbana, Cinco Dias de Sagração e A Solidão da Verdade podem ser destacados entre o que se produziu de melhor no romance brasileiro das últimas décadas. Considera-se um escritor realizado?
Satisfeito. Claro que satisfeitíssimo. Mas realizado, ainda não bati à porta do cemitério.
12) Em Os Espelhos de Lacan é um romance profundamente psicológico e Você compõe os seus personagens de uma forma inovadora. Tem intenção de retomar essa temática?
Por partes. Primeiro, não há nada inovador na construção dos personagens. Apenas, quando muito, poderia ser dito que o modo não é muito usual. Todos são chamados a falar de um mas, no fundo, no fundo, todos falam é de si próprios. E, segundo, como Os Espelhos de Lacan trata de seres humanos e eu só escrevo sobre seres humanos, seja sob que aspecto for, claro que vou retomar essa temática.
13) Você é um autor muito premiado. E tem recebido prêmios nas mais diversas modalidades: romance, conto, ensaio, cinema, teatro. Qual é a sua modalidade preferida, afinal?
Todas. Mas é claro que prefiro aquelas cujos prêmios me possam pagar melhor as dívidas.
14) Você entra nos concursos apenas pelo dinheiro?
Apenas. Ou você pensava que era pela glória? A Glória, pode até ser Misse Universo, mas pagar dívidas não é com ela.
15) A sua peça As Pulgas recebeu um dos maiores prêmios da dramaturgia brasileira e roteiro de longa-metragem O Circo das Qualidades Humanas também foi premiado. Pretende fazer novas incursões nestas áreas?
Claro. Depende das encomendas. Neste momento tenho encomenda de um roteiro para longa-metragem.
16) Trabalha por encomenda?
Se um bufê trabalha por encomenda porquê que um escritor não pode trabalhar?
17) Você viveu 45 anos no Brasil. Chegou em 1958 e regressou a Portugal em 2003. Como está sendo o processo de readaptação ?
Vivido dia a dia. Depois dos sessenta cada dia que se vive já é troco. Mas, embora Portugal, hoje, esteja muito diferente daquele Portugal eu deixei, ainda cai neve na erra do Gerês e um que outro lobo ainda uiva pelas quebradas.
18) Você acha que ainda há espaço para heróis nestas nossas vidas de todos os dias? Alguma vez houve?
Claro que há. Sempre houve e sempre haverá. Você quer um herói mais herói do que aquele Zé Imbirra que escuta falar do mensalão mas não sai por aí com vontade de matar quem lhe prometeu e não cumpriu, e continua no batente, preocupado com a sua vida que tem mais mês do que salário? O ato de maior heroísmo não é ser condecorado pela Pátria. É apenas ser verdadeiro.
19) Por quê?
Porque todo mundo tem medo da verdade. Já pensou se todo mundo dissesse a verdade acerca de todo mundo? Não ia sobrar ninguém pra contar a verdade. Por isso, como a verdade nunca é dita, mais vale todo mundo ficar vivo e fazer de conta que, do que não fazer as contas à vida e morrer todo mundo.
20) Você pode me dizer quem é este ser que habita o planeta, o ser humano?
É o sujeito que inventou a linguagem mas teve o cuidado de fazer da palavra a guarda do pensamento. Assim como o que todo mundo vê é apenas o que todo mundo quer que seja visto, também o que todo mundo fala é apenas o que todo quer que seja conhecido. Até prova em contrário o homem é o único animal que mente.