A entrevista
A entrevista
- Hum, hum... - (limpando a garganta) - estamos aqui no Morro do Querosene, onde se dará a entrevista com o autor...
- Me dá aqui essa pomba de microfone e vai pra sua cadeira.
- Então deixa eu corrigir...
- Meu, cê tá louco? A entrevista é nos moldes do programa Ensaio. Senta lá e vê se te enquadra.
Depois de 5 minutos de fios se esgueirando pelo chão, como procissão, mais o murmúrio de técnicos e assistentes e uma ou outra exclamação, chega vossa majestade, o entrevistador, saudando a equipe embora salientado que o câmera, por exemplo, era xarope.
Meu assistente, cujo nome não posso pronunciar por questões contratuais, me sinaliza com o dedo indicador o sinal do silêncio.
Respiro fundo. No programa Ensaio, da TV Cultura, uma jóia da TV brasileira, a gente não ouve a pergunta, a gente adivinha. E é um formato bem legal, que me pediram para reproduzir nesse texto, e assim tentarei.
Tem inicio a sessão.
Hum, hum mental, tentando entender a pergunta do entrevistador, mais uma pequena pausa para o teatro do raciocínio.
- Felicidade completa? Olha, vou te dizer uma coisa, daqui há dois ou três anos, olharei para trás e reconhecerei esse instante como “felicidade completa”. Assim como, nesse instante, vejo no espelho do tempo dois ou três anos atrás e digo, puxa, aquilo foi felicidade completa. Tem dias que eu não me incomodo, pois pelo visto vai ser assim a vida inteira. Acho que é um defeito de fabricação, ou, muito provavelmente, me falta a consciência completa, o que, no final de contas, dá no mesmo.
Mmmmmmmmm silencioso, encenando inteligência. Meu assistente, que se comunica comigo entre parênteses e que vamos chamar de MA, pra encurtar, se manifesta (acorda, imbecil, ele tá falando).
- Seria mais fácil responder com qual figura histórica eu não me identifico, isso porque, me identifico com várias, mas...esse negócio de entrevista deixa a pessoa nervosa, não estou acostumado com isso, então, devo ser honesto para te dizer que essa resposta é a resposta que me vem à mente agora. Me identifico com o Arjuna. Ora, o cara tava no meio de um fogo cerrado, decisivo, e o que ele mais faz é perguntar. Ele pergunta o tempo todo, porque no fundo não está entendendo nada, não está se negando a lutar, se não fosse um guerreiro, Krishna não o teria escolhido, mas ele tem indagações, para ele são sérias, mais sérias do que matar ou morrer.
MA: (Você não tá vendo que o cara tá de saco cheio? Que você não fala coisa com coisa?)
O entrevistador pede uma pequena pausa para tomar água. Expressa que eu falei tanto que ele ficou com sede.
- A pessoa que eu mais admiro é absolutamente circunstancial. Acho humanamente impossível responder essa pergunta. Admiro os que não se entregam, assim como admiro também os que se entregam, por aceitarem suas limitações. Tudo é muito momentâneo. Na minha família muita gente me inspirou, para um lado e para outro. Daí veio o corredor polonês, e é no frigir dos ovos que se vê a fibra. Talvez a resposta te frustre, mas acho que é como estou apreendendo o momento pelo qual estou passando. Que mais ou menos pode ser assim entendido: tudo mundo é bacana, e todo mundo tem um calo. Para mim, isso não é mais um chavão, mas uma ferramenta de radiografia diária. Meu avô materno foi uma grande bússola na minha vida. Mas também tinha suas mazelas. Meu avô paterno poderia ter sido uma grande bússola, se eu tivesse sabido antes de seus feitos formidáveis. A questão é, pouco convivemos, e acho que só uns 30 anos depois de seu, hã, passamento, é que me falaram de seus ideais e realizações.
MA me faz um sinal para calar a boca. O entrevistador pede uma pausa para comer empadas, tomar café e coca cola. Ninguém me ofereceu coisa nenhuma. Permaneci em contato com meus botões, que no caso é um, o da calça jeans, que por sinal era, que agora está presa por um barbante sob a camiseta, para que ninguém repare. Permaneci, pois, em contato com o barbante, engolindo a vontade da empada.
Consumido o tempo correto da ingestão de Vsa., prosseguimos.
- Característica mais marcante? Você quer dizer, física?
Nesse instante há um pequeno burburinho na platéia, algumas pessoas se levantam e saem.
- Ah...entendi. Cara, não saberia te dizer. Esse negócio do auto conhecimento funciona muito bem, mas acho que não tem surtido muito efeito comigo. Depois, acho que uma parte de nós não nos pertence, pertence a quem nos enxerga. Mas, acho que a prolixidade faz parte do meu quadro.
- A mais deplorável? Que tal, falta de percebimento? E acho que não vai ter jeito nunca – dessa vez respondi de bate pronto – eu sou isso aí mesmo. Olhando pra trás, qualquer normal estaria se lamentando...
- Deploro nos outros a covardia. Mas veja, não no contexto covarde consigo mesmo, covarde porque não teve coragem de atravessar aquela avenida, covarde por não ter agido...pois isso é uma questão pessoal, onde o único prejudicado é o próprio detentor da sua fraqueza. A covardia a que me refiro é a daquele, ou daquela, que usa bala de canhão para matar passarinho, simplesmente porque a situação permite. O covarde atira pelas costas, bate no corpo que já está no chão, esbofeteia quem está de mãos atadas e injuria quem está amordaçado. Isso eu deploro. E tenho dito.
- Minha maior extravagância foi me posicionar. Aconteceu dos 45 para os 46 anos, e nem eu entendia direito o que estava se passando comigo. A análise pelo retrovisor é, às vezes, reveladora.
Significa que eu não podia, e na verdade não conseguia mais continuar sendo o que eu não era, porque nunca fui. Sabe, aconteceu numa tarde, passeando sob as árvores. Falei comigo: fona-se! Eu sou isso aí, é pegar ou largar. Fez todo o sentido da existência. Foi uma espécie de libertação. Peguei. E paguei um preço caro por isso, e olhe que as prestações continuam chegando.
Mas acho que o preço teria sido insuportável, se não fosse desse jeito. E dou os trâmites por findos.
Nisso, uma voz chorosa de mulher invade a sala. mais a mulher, que exclamava – Fulano, fulano, que bom te ver, ai, fulano, minha mãe está com (não deu para entender), meu sogro também, meu sogro está sendo operado agora e...
Ela falava aos prantos, e de repente gargalhava, a voz de choro revelou sílabas pastosas, etilicamente pastosas, e quando um dos membros da equipe tentou livrar o fulano, no caso, o entrevistador, da voz e sua dona, ela esbravejou um palavrão direto e reto. A propósito, o rosário familiar da mulher, em termos por assim dizer científicos, dá pano para um seriado inteiro do tipo Plantão Médico. O entrevistador ouvia com muita paciência. Alguém me traz um copo d’água. Agora ela sussurra pra ele, enquanto tenta abraçar o mesmo sujeito que, segundos atrás, fora alvo de palavrões. Ele se esquiva. O pessoal que tinha saído agora voltou, para assistir ao espetáculo. A turma do Deixa Disso, afinada como uma orquestra, faz a sua parte sem cerimônia. Sinto cansaço e fome. Pedi uma empada ao garçom e ele replicou que as empadas são do entrevistador, só com a permissão dele, e que para mim, no máximo, uma coca zero. Isso tem a duração exata de não sei quantos minutos. Ninguém sabe como a mulher entrou no estúdio. Mas foi encaminhada para fora, ah isso foi. Não sem antes simular um desmaio, um soluço e um riso, com a mesma destreza daqueles sujeitos que deixam vários pratos rodopiando sobre varetas, ao mesmo tempo.
Da platéia, alguém gritou: ela sempre faz isso, o nome dela é tal, ou algo do gênero.
- Viagem predileta pode ser daqui até a sorveteria, desde que seja de mãos dadas com ela, não, não com essa moça que acabou de sair, com outra, ainda não sei o nome... a vida fica sem sentido sem isso. Ah, fica.
- O que eu lamento não ter feito? Você só pode estar brincando, não é? Ok, obrigado. Igualmente para você. O amor da minha vida?
De qual vida? Lógico que temos muitas vidas, nesta vida. Ora...
MA (meu assistente), me olhava furiosamente por trás da cortina.
- Onde e quando fui mais feliz? Como responder essa questão num ano como esse? Repare, estamos em 30/10/2012, ou seja, em 12/12/12 iremos todos para o ...
MA saiu de trás da cortina, cochichou algo no ouvido do entrevistador e me indicou o caminho do camarim. Algumas pessoas na platéia bocejavam.
- Você tá louco ou que? Então eu te arrumo essa oportunidade e você só fala xaropice? Só falou bobagem até agora, tá me causando um bruta constrangimento, eu não vou passar por idiota por sua causa, por mim a gente encerra essa porcaria agora. Entendeu?
“Tem nada não”, pensei comigo, e depois assoviei: “hoje você é quem manda, falou tá falado, não tem discussão”. Antes dele sair perguntei se eu podia comer uma empada. Me impediram de transcrever a resposta.
Quando chego ao palco, o entrevistador, está conversando com platéia. Todo mundo ria muito de uma piada que ele fizera. Daí ele explica que a minha demora em retornar foi devida a um certo nervosismo de minha parte, por causa da interrupção da tal mulher. Bueno, prestemos atenção, porque lá vem chumbo.
Só que o chumbo partiu de mim, porque paciência tem limite e a minha já havia se esgotado.
Falei, alto e bom som, que aquele questionário era um absurdo, que ninguém em sã consciência consegue responder isso com o mundo desabando, que estamos na contagem mais que regressiva, que faltam apenas quarenta e tantos dias para que a Terra inteira seja abduzida por uma inteligência superior, (nesse instante MA e dois seguranças tentam me conter, inclusive tentando tapar a minha boca).
- Vocês estão todos loucos – bradava eu – Nada disso tem mais sentido. Provamos nossa incompetência enquanto administradores deste planeta, os poucos de nós que restarem serão internados em hospitais psiquiátricos, para ver se se adaptam à Invasão! Ei, tira a mão daí! Porque é que ninguém fala sobre o apagão que houve em Brasília, uns anos atrás? E sobre as fotografias tiradas pela Quarta Frota, em Ilha Bela? E o Relatório 21? E as palestras no Cultura Artística com o ...
* * *
- Então, doutor, o senhor acredita em mim agora? Porque já é a décima vez que o senhor me pede para contar essa história.
Doutor, ei doutor, onde o senhor vai? Ei, me tirem daqui!
* * *
Lá fora, os médicos debatem o caso. Uns acreditam, pois acham que os tempos estão esquisitos, e muitos são os boatos. Já haviam visto a gravação várias vezes, estavam até para me dar alta, quando MA aparece com a relação impressa das perguntas.
E são elas:
1. Quantos anos você tem? 2. Qual o seu signo? E o seu ascendente? 3. Qual a sua cor favorita? 4. Qual o seu prato predileto? 5. Para que time você torce? 6. Já viajou para a Disney?
7. Você tem algum bicho de estimação?