SAIU NA TV RECORD

Hoje foi um dia feliz para mim, como tem sido todos os outros. Apenas, um pouco diferente, em que o entusiasmo e a espera do novo afagavam-me o coração, fazendo-o agitar-se dentro do peito.

Permaneci na cama por mais tempo. Hoje é domingo. Mesmo porque, ontem fomos a uma festa junina na Associação Brasileira de Odontologia. O meu marido é também odontólogo. A festa estava ótima, animadíssima, com quadrilha e um touro eletrônico que fazia a festa da meninada e dos adultos, com direito a prêmios.

Ao acordar, com o sol, em raios brilhantes, acariciando-me o rosto através da vidraça, e o Alfredo a cumprimentar-me, com faz todas as manhãs, com um sorriso terno de gente que ama, conferi o relógio e lembrei-me: A entrevista! (Havia sido gravada em minha casa, há mais de semana.) Seria exibida às nove horas na TV Record. Programa “Nossa gente nossas coisas". Poucos minutos faltavam. Às 9h em ponto, postamo-nos defronte da televisão. Eu e minha família. Muitas expectativas. Afinal quem não gosta de se ver no espelho, de receber carinhos, elogios de aprovação? Quem não gosta de sentir-se bem, produtivo e solicitado? Faz parte da vida, impulsiona o caminhar. Isso é se gostar. E eu não sou diferente. Tenho as minhas carências, os meus defeitos e muitas qualidades...

E, vamos às imagens, agora exibidas num telão.

Para melhor efeito fechamos as cortinas.

Um clic e a mágica se fez.

Em nossa casa, o apresentador, Dr. Salvador Farina, um senhor simpático, bonito e agradável. O cavanhaque, o sorriso aberto, com uma mistura de seriedade e mistério emprestavam encanto à sua mais de meia idade, além da elegância, estampada em tratos e trajes. Dr. Farina, é mesmo um ´gentleman´.

Após os cumprimentos, sentamo-nos à pequena mesa de vidro, a um canto de uma saleta, contígua à sala de visitas, utilizada para pequenas reflexões, leituras, um joguinho de baralho e outros que a criatividade apontar.

Antes, porém, numa manobra magistral: um passeio das câmeras pelo ambiente, deixando-se ficar no meu sorriso terno dirigido ao filho Flávio que acabava de entrar, o qual foi logo entrevistado.

Fiquei encantada, enamorada de ver e sentir, pela tela da TV, o sorriso largo do meu filho e as respostas amorosas, principalmente sabendo que eu era o motivo maior de todo aquele carinho. Sou uma mãe chorona, mas privilegiada. Todos os nossos filhos deslancharam em valores morais, além de haverem conquistado asas para alçar aos sonhos.

O cenário continuou. Uma paisagem colorida, realçando minha blusa rosa-choque que me diminuía os anos vividos.

Como num daqueles programas “Essa é a sua vida”, começou o passeio, uma retrospectiva no tempo.

A câmera focalizou o retrato de minha bisavó, que não cheguei a conhecer, mas que simboliza a gênese da minha família. E as fotos foram se exibindo marotas, ingênuas, voltando-me no tempo. Meus avós, meus pais, eu menina, as raízes na fazenda, quando a inocência fazia-me dona do meu tempo e senhora de todos os sonhos... Depois, o colégio de freiras, os quinze anos, o primeiro emprego, o namoro com o Alfredo (colega de labor), a formatura do Curso Técnico de Contabilidade, o casamento, os filhos pequenos, grandes, formados...

Pareceu-me um poema em aquarela, mostrado em fotos ao telespectador, acompanhado de minhas palavras explicativas, sempre cheias de saudades.

O curso de direito, feito juntamente com o Alfredo, embora ele já fosse graduado em Odontologia.

Um ano e meio depois de formada em Direito, eis que a vida leva-me as pernas. O meu caminhar ligeiro, faceiro... Era possível o registro dessa grande guinada de vida, por meio de recortes de jornais, revistas, o concurso, de maneira inusitada, para o cargo de delegado de polícia, mesmo sem o comando dos passos. A aprovação em 4º lugar (sorte é que eu estava preparada para um outro concurso, que não pude fazer, tendo em vista os passos haverem sido recolhidos antes. No dia, eu estava no Hospital, fazendo a prova para enfrentar-me numa cadeira de rodas), a nomeação e a decisão superior de aposentadoria por invalidez, o que eu não aceitei, sob protesto de entrar com mandado de segurança para garantir-me um direito líquido e certo, pois havia-me habilitado em concurso.

Gostei do posicionamento do Alfredo frente às câmeras. Não preciso voltar ao passado para reconhecer que sem o seu apoio eu não teria ousado tanto. E ouso ainda hoje. O suporte, o afeto, a certeza de que somos amados, produzem milagres. Transforma derrotas em verdadeiras conquistas.

O telão colorido exibia-se sem parar. Era o filme da minha vida. E eu ali, assistindo extasiada. As aventuras, estampadas em fotos, nadando, velejando, voando de ultra-leve, dirigindo trator... Admirava essa coragem. Os recortes de jornais, estampas, títulos, saltavam das mãos do apresentador.

Será que hoje teria a mesma disposição para fazer tudo de novo? Nos meandros da mente recordava as muitas dificuldades com o meu corpo, com a liberdade tolhida de ir-e-vir, a mudança de hábitos, de amigos, de tudo. Nova vida com muitos entraves e a responsabilidade de agüentá-los, e mais ainda, transformá-los.

Como delegada aprovada em concurso, fui nomeada. Quis servir numa delegacia, sinônimo do meu cargo. As fotos comprovavam o que eu verbalizava ao apresentador. Delegacias distritais, da Mulher, para a qual os jornais cogitaram o meu nome em primeira mão, como ajunta. Delegacia de Vigilância e proteção de Menores, da qual fui nomeada titular. E assim eu ia ascendendo... Muitos diplomas, certificados, congressos feitos, sucesso no trabalho, lançamento dos meus livros, Pássaro sem Asas e Apenas uma Flor, até que o tempo legou-me a aposentadoria por tempo de serviço.

Não podia entregar-me à paraplegia, numa indolente aposentadoria. Novo concurso. Dessa vez para o Judiciário Federal, onde, atualmente, exerço o meu cargo de Analista Judiciário, na Diretoria de Serviço Recursos e Distribuição do TRT/GO. Os impasses, as vitórias, o diploma de servidor padrão, mais certificados de cursos, tentando qualificar-me para melhor servir, justificando o meu ingresso ali.

Finalmente, as despedidas. Uma mensagem ao público que me assistia. Embora sendo de uma hora o programa, o tempo esgotou-se. Ah! Tempo, tempo meu! Tempo que me roubou os passos, mas que me legou muita segurança, muitas experiências, muitos valores aprendidos com a dor. Sinto-me uma nova mulher e gosto-me assim. Embora o meu caminhar tenha sido substituído pelas rodas de uma cadeira, não me sinto paraplégica. A vida ainda acontece inteira no meu coração e eu cumpro e assumo o direito de ser MULHER em toda a sua plenitude.

Genaura Tormin
Enviado por Genaura Tormin em 27/02/2006
Reeditado em 24/09/2009
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