Literatura comparada; um olhar sobre o episódio Inês de Castro na poesia de Garcia de Resende e Luís de Camões.
Para uma maior compreensão da produção literária, de uma forma geral, é imprescindível que se compreenda que nenhum movimento da literatura é em absoluto globalizante. O que há de fato é que certos valores predominam em um determinado período com relação a outros. Há formas e expressões que são próprias e pertinentes que nos levam a pensar que a literatura possui o seu campo próprio de análise e que não pode se limitar ao rebuscado e renegar o novo.
A partir dessa perspectiva temos em mente que o período Renascentista inspirou de um lado certas manifestações tidas como Humanistas e, mais adiante, outras voltadas fundamentalmente e de uma forma bastante profunda para clássicos precedentes que se reafirmariam num resgate constante nos III séculos seguinte.
É necessário esclarecer, a princípio, que aqui será levado em consideração apenas o que se tem produzido em Portugal a partir dessas características literárias e filosóficas respectivamente. Nesse sentido, partiremos do universal para o particular, isto é, de uma caracterização geral para nos concentrarmos na poesia de Garcia de Resende e Luís de Camões.
Na época do Humanismo, marcada por uma profunda renovação da cultura portuguesa no que se refere à poesia é, indubitavelmente, Garcia de Resende o seu maior destaque. Nota-se a partir desse poeta, que começa a se processar uma tentativa de desligamento do formalismo trovadoresco, até então característica predominante nas manifestações poéticas. No Cancioneiro Geral – obra de poesia organizada por esse poeta (1516), pode-se ressaltar suas “Trovas à morte de Inês de Castro”.
O tema que perpassa essa poesia também serve de inspiração posteriormente para os versos de Luís de Camões. Poeta por excelência, Camões figura no período tido como Classicismo. Pode-se definir o Classicismo como uma concepção de arte baseada na imitação dos clássicos gregos e latinos, que são tomados como modelos perfeitos. Esse conceito de imitação deve ser encarado não como cópia, mas sim como uma expressão própria fundamentada nas fórmulas e nos modelos antigos.
Nesse paralelo – entre a poesia de Resende e Camões – podemos observar que embora estes dois poetas tratassem de um mesmo tema, há características distinguidoras, mas interligadas entre si. Talvez num primeiro momento, essa distinção e entrelaçamento se caracterize como um aspecto inquiridor e necessário, para uma maior compreensão da produção literária do que parece ser de duas grandezas da literatura portuguesa com objetivações próprias e não menos específicas.
É que o terceiro canto de os Lusíadas de Camões, onde também versa sobre o episódio Inês de Castro apresenta um lirismo mais comedido e descritivo. Nesses versos há, indubitavelmente, uma aproximação mais viva e sugestiva que se processa entra as pessoas e a natureza.
Se já nas brutas feras, cuja mente
Natura fez cruel de nascimento,
E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas tem o intento.
Podemos observar, sem muito esforço, que evidentemente essa característica não define nem uma inclinação, nem uma prioridade na poesia de Resende. Em as “Trovas à morte de Inês de Castro” parece ocorrer exatamente o contrário. Parte-se da individualidade, isto é, da consciência de si próprio para o reconhecimento dos outros e do meio.
Narrado na primeira pessoa, Resende parece se objetivar em dar ao poema subsídios psicológicos e pertinentes. Essa evidenciação parte do reconhecimento de Inês pela própria Inês e do espaço em que se encontra e que por isso se firma na posição dos personagens num entrecruzar de vozes e movimentos.
Era uma moça, menina
Por nome Dona Inês
De Castro, e de tal doutrina
E virtudes, que era dina.
E estes outros:
E quando vi descia,
Saí à porta da sala;
Devinhando o que queria,
Com grã choro e cortesia
Lhe fiz uma triste fala.
Para que essa análise possa ser um tanto quanto esclarecedora, na medida do possível, devemos dizer também que esse traço tão vivo e tão lúcido da poesia de Resende não parece ser a definição mais correta para que dela possamos delimitar a verdadeira intenção de Camões.
Nessa distinção e entrelaçamento, como já fora dito, Camões se apresenta como uma espécie de artífice distante tendo como pano de fundo apenas um relato trágico e marcante. Resende por outro lado, assume uma postura de observador imaginário, revendo calmamente as cenas assustadoras que suprimiam a verdadeira intenção do sentimento. É que mesmo os dois não estando presentes no momento verídico que aconteceu a morte de Inês de Castro, se aproximam bastante ainda que sob distintos posicionamentos.
De qualquer forma, talvez possa ser dito que Resende tenha exercido alguma influência em Camões pelo fato de que em Garcia de Resende observamos um delineamento poético o que em Luís de Camões aparece de uma forma ainda mais profunda.
A exemplo disso podemos observar esses versos de Resende:
Que se m’ele defendera
Qu’a seu filho não amasse,
E lh’eu não obedecera,
Então com razão pudera
Dar-m’ a morte que ordenasse.
Observemos também o tratamento poético com que Camões reserva assim como Resende ao amor e a morte.
Tais contra Inês os brutos matadores,
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que amor matou de amores.
Há, indubitavelmente, uma ligação precípua entre esses dois poetas como também não podemos discordar que há elementos distinguidores que asseguram a ambos qualidades essenciais nada passageiras. O fato é que rompendo com o formalismo de seu tempo, Resende se posiciona numa tentativa de ruptura com a dependência trovadoresca ainda que trazendo alguns resquícios das cantigas de amor e de amigo.
Quando Camões escreveu seus versos esse fato parecia já estar resolvido. Então era preciso retornar definitivamente aos clássicos afim de que se produzisse uma literatura de qualidade e de alcance. O classicismo foi o desfecho de toda essa objetivação.
De qualquer forma, Garcia de Resende e Luís de Camões embora separados pelo tempo apenas, escreveram seus nomes na história das letras, de Portugal para o mundo e do mundo para a essência dos versos escritos e pensados por todas as gerações incansáveis do inefável e do sublime.
Referência bibliográfica
Moisés, Massaud. A Literatura Portuguesa Através dos Textos. 25ª edição. São Paulo; Cultrix, 1997.