O INCONSCIENTE COLETIVO E A CRIAÇÃO ARTÍSTICA

Nos países de primeiro mundo, naqueles em que até os direitos de quem está por nascer – o nascituro – estão assegurados, a vertente da inventiva e da criação se expressa na prosa, isto é, em linguagem prosaica.

Vale dizer, na fala quase coloquial, portanto pobre de metáforas e figuras de linguagem, mesmo que com algum estilo pessoal. Relata-se o mundo do dia-a-dia. Transfigura-se, também, desde que presente o talento.

Causam espécie, nos meios literários, a contundência do discurso e a violência no conto, na novela e no romance sul-americano. Isto ocorre comumente na velha Europa, na Ásia e na América do Norte, nos países que têm os mais altos índices de leitura por habitante.

Aos estudiosos de literatura destas partes do globo causa admiração também, que na América Latina, quase todas as pessoas têm uma história pessoal ligada à expressão poética.

Aqui, quase todo jovem consome ou tenta escrever a sua historieta de amor e a possível descoberta deste, em linguagem poética, velada, cifrada, portanto.

Assim ocorre nas publicações em jornais estudantis, nos alternativos culturais, nos programas de radiofonia e, atualmente, na Internet.

São incontáveis os sítios da Web que albergam o intimismo, o confessionário íntimo dos jovens e dos nem tão jovens, redutos de interatividade muito bem sucedidos.

Tentarei, mais para provocar os leitores do que para buscar explicações científicas, uma pequena reflexão sobre esta vertente.

A inquietação do espírito latino, a falta de respostas às necessidades básicas (materiais, educacionais e culturais), a histórica opressão do Estado sobre o cidadão, na América Latina - em que a regra é o golpe e a exceção é o exercício da democracia - produzem uma criação literária, que se configura na linguagem velada, produzindo, desde logo, a expressão mascarada do real.

Esta máscara sobre o real, os véus sobre a Palavra, produzem a linguagem poética do medo, a do permanente temor. A fala do terror transfigurado.

Homem e medo são parceiros na transfiguração. Poucos destes escrevem o que realmente sentem. Não relatam as comoções como elas vêm do universo do Ser. As mais das vezes, por inquietações atávicas, ficam na verbalização, na oralidade. Alguém tem de recolher o que foi dito. Palavra de terceiro, relato sobre o fato visto, ouvido.

Na ótica social, tento cogitar que há impedimentos de ordem psicológica entranhados nos criadores artísticos, principalmente na abordagem do real, e este viés se estende ao todo do universo de criação.

Só os que têm coragem, destemor, falam abertamente de seu íntimo. É preciso vencer os dragões, ou, ao menos, desafiá-los, se não, tudo fica na mesmice.

Adélia Prado, Cora Coralina, Lila Ripoll, Lara de Lemos, Hilda Hirst, Lia Luft, belas expressões do universo feminino, fizeram isto com galhardia. Só pra falar em mulheres, que suportam o peso do mundo e a opressão atávica.

Tenho para mim que na literatura, em particular na Poesia, não há influências do que foi lido e assimilado. O que ocorre, vivido, lido ou ouvido, são confluências. O pensamento conflui na cabeça do outro criador ou inventor literário. E produz o intertexto.

Do nada só pode nascer o nada. Quem não lê muito jamais produzirá algo que preste. A cada mil anos nasce um gênio em cada idioma. A lusofonia tem dois em 500 anos: Luiz Vaz de Camões e Fernando Pessoa. Na poética, estamos de parabéns.

O inconsciente coletivo é forte, premente, sempre paga o pato nas rotas desculpas dos desleixados, dos diletantes e dos vaidosos de plantão. Quem escreve paga o preço de dizer.

Mesmo assim há editores que se intrometem no universo de criação e fazem censura até nos vocábulos de obras em prosa e verso. Mesmo sendo cultos, lidos.

Uma vez, lá por 1997, tive a expressão "Foda-se!" extirpada do texto prosaico, talvez por pejos íntimos da editora, o que nunca entendi claramente. E eu apenas falava ofendendo o traidor Calabar, num imaginado episódio em que rememorava a Inconfidência Mineira, ocorrido dois séculos antes.

Imagine-se se fosse apenas uma ousada interjeição fruto da ruminação pessoal, como sói acontecer no diálogo poético!

— Quem publica originais inéditos, quaisquer que sejam, não importando o gênero literário, inscreve-se na história viva, raciocina o conservadorismo. Porque o autor passa a ter existência para o cortejo da mídia e suas especulações nem sempre louváveis e/ou generosas e vai disputar o espaço de posteridade, quer a corteje ou não.

A regra é que o editor provenha de experiências pessoais na área de criação literária e tenha deixado de pagar para publicar seus inéditos a terceiros, pra ganhar dinheiro com a ansiedade editorial de vários tipos de autores, principalmente os poetas.

O que o autor quer é ver o seu bloco na rua, a sua arte, madura ou não, sendo consumida pelo leitor.

E os editores, nunca inocentes, expressam os seus medos recalcados.

Sabem, porque nunca são ignorantes ou bobos, que a palavra tem força, e que autor novo é sempre um libertário, pois recria idealisticamente a vida real que não lhe agrada. Portanto, para alguns editores, libertários são perigosos.

— Quem assegura que amanhã não acordaremos com os soldados da ditadura do momento arrombando a porta de nossa casa?

Ditaduras de plantão e democracias sempre iniciantes nunca combinam com todos os interesses de libertários, que têm como patrão somente a liberdade de pensar e de, em alguns casos históricos, dizer. E sonhar que tenham repercussão na realidade palpável.

– Do livro, em preparo, DIÁLOGOS ENTRE A PROSA E A POESIA, 2005 / 2007.

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