POESIA E REALIDADE

A propósito de minha obra: os poemas não são de interpretação fácil. Todos exigem um maior ou menor grau de reflexão. Aliás, se, ao pegares um texto pela vez primeira, ao lê-lo de cabo a rabo, e, ao final da leitura tiveres entendido tudo, sem restar nenhuma dúvida, o texto pode ser qualquer coisa, menos Poesia. Porque esta não tem este condão: o de passar fácil na cabeça do leitor. Ela mexe com o íntimo, leva-te a viagens imprevistas e inusitadas, sugere vida e morte. É para quem quer ser praticante de exercícios incomuns. Serve ao autoconhecimento e nos deixa em forma para entender melhor a desgraça e a dor. Com ela e por ela também se valorizam os dias alegres e a beleza de uma flor ou o orvalho sobre a folha derramado, num dia gélido de inverno, em que tudo é hostil, mas a flor ilumina a paisagem rude com os raios da Beleza. Vês o que é o cacoete? Já estou fazendo poesia, fugindo ao objetivo de uma simples e despretensiosa cartinha de amigo. Mas, como falo a uma poetisa sazonal, mas não apenas bissexta, sei que não semeio no deserto. Voltemos ao objetivo. A propósito de versos: conheço as regras, mas não os organizo em formas clássicas. Sonetos, trovas, haicais, acrósticos, enfim, versos metrificados não são a minha praia. Evito suas publicações, apesar de haver feito alguns por necessidade de ofício. Por questão de gosto pessoal, sempre fiquei com a estética atual – o poema da contemporaneidade, em versos brancos, sem métrica e rimas. Entendo que o verso metrificado é a estética do passado. Reproduzia, em arte literária, o andamento da vida até meados do século XX. Se a vida mudou, se a cabeça das pessoas mudou, se tudo se tornou diferente, menos formal, e se a arte copia a vida, como acredito ser verdade, não há como fugir do verso branco, sem rima, debochado e desajeitado. O contemporâneo poético debocha da vida e traz em si a criticidade pertinente aos tempos atuais. Uma poesia amarrada ao passado, com o andamento das ruas e dos salões de Paris, ou da política dos cafés literários e saraus à moda antiga, cheia de cochichos ao pé do ouvido das amadas é um contra-senso aos modos de amar da atualidade. Como entender os salamaleques dos jogos de amar de 1930, se hoje a mulher aos 12 anos já sabe da necessidade de usar os contraceptivos e a televisão escancara o uso da "camisinha" masculina e feminina aos olhos e ouvidos das crianças? Temos um lirismo novo, malcomportado? Ou seria a vida em suas constantes transformações? O humano é o mesmo, mas os seus hábitos e ações são diferentes. O jogo do amar é mais livre, menos comportado aos olhos do tempo passado. A liberdade dos toques, afetos explícitos, tende a produzir uma literatura desenvolta, às vezes até licenciosa, desavergonhada... Mas é o humano em sua caminhada até o Armagedon, diriam os que vêem o pecado em tudo. Ou os hipócritas e saudosistas. Fico com o verso livre, copiando a vida, para que a poesia não se esfume na cabeça dos jovens, estes que carregam as explosões e impulsos dos desejos do amar em todos os tempos. Que buscam a felicidade em todas as suas nuanças e formatos. E nessa busca se afundam nos meandros das drogas lícitas e ilícitas. Na observação dos atos da juventude atual o que seria mais nocivo, destruidor da esperança e dos sonhos dos pais... O vício da drogadição sob todas as suas fórmulas e requintes? Ou cenas explícitas de "blogs" e portais na grande rede em que aparecem as descobertas – novos jogos do amar – o olho indiscreto da webcam centrado nas partes genitais revelando atos e intimidades sexuais no monitor do computador? Será que os jovens conseguirão entender que a Poesia é a transfiguração da matéria da vida – o produto da arte que copia a vida – acaso os versos (escritos ou falados) contenham uma expressão do amar que em nada sugere os tempos em que vivem? Que amar é este que não existe a não ser na expressão poética? É o que me fala a maioria dos jovens com quem convivo em palestras e eventos literários: – Tio, não entendo como estes versos são tão babacas! São lindos, mas não é o real! Ou seria porque o jovem ainda não viveu o amor retratado na poesia de todos os tempos? Eis que ligo o aparelho de TV e tudo o que vejo em manchete são os atentados à vida e ao patrimônio, terrorismo, homens-bombas, seqüestros a tiros e granadas e tropas de elite do Estado a responder aos fogos da injustiça social com os estrondosos canhões da boçalidade brasileira sob os aplausos das autoridades públicas e de grande parte da população burguesa acossada. Para estes temas há sempre espaço na mídia. Para o pensamento poético, no Brasil, sequer há janelas como os tais “Cadernos de Cultura” ou “Suplementos Culturais” existentes até a década de oitenta, nos jornais mais importantes do país. Hoje em dia nem nos jornais tidos como “Cult” há espaços à altura da dignidade da Poesia. Bem, deixemos que o tempo e os ferretes de minha condenação marquem a angústia de tentar solidariedade em tempos de amor sem lirismo e numa realidade em que a vida e o desamor conduzem à angústia e à perplexidade. Voltemos à realidade objetiva...

– Do livro inédito DICAS SOBRE POESIA, 2006/2018.

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