DEZ ANOS A MIL
(APENAS UM OLHAR REFLEXIVO DESCRITO EM LETRAS, SOBRE A LEMBRANÇA DE UM AMIGO QUE TEVE UMA MORTE VIOLENTA E MISERÁVEL, SURGIDO DA COMPARAÇÃO E REVIVIDO NOS EXEMPLOS MEMORÁVEIS DO RESSURGIMENTO DO CINEMA NACIONAL: A PARTILHA E ORFEU)
Sylvio Neto
“ - : (...) Todo mundo quer ser amado. Até o Senhor só pensa nisso. Qualquer religião em qualquer parte do mundo, o maior mandamento é amar a deus sobre todas as coisas. Até ele, só pensa em ser amado. Sem nenhuma concorrência “.
FALA DO PAI DE ORFEU NO FILME
A bastante tempo que minha memória não me lavava do presente e me levava a presença do vivido, do passado, do que já fora. Nesse passado, medalha de minha vida, revi um ilustre amigo da Sulacap de nome Luis Carlos Rodrigues Sena, o Sena, amigo da 3º Cia. do Regimento Sampaio onde prestei serviço militar. Por tempo acompanhei sua trajetória de Sd Sena a Cb Sena e assim até Sgt Sena.
Sena era um bom amigo, tivemos juntos o mesmo processo de evolução profissional nas fileiras do exército brasileiro. Pensávamos com estímulos diferentes, agíamos de formas diferentes, mas cordialmente coabitávamos o mesmo ambiente. Sena gostava de fumar maconha e amava a cocaína. O nariz de Sena sangrava durante a formatura da manhã, vítima da noite hardcore. O nariz de Sena sangrava tanto quanto seu coração que houvera perdido numa dessas trilhas da vida seu grande amor, a Beth. Sena tinha um bordão (retirado de uma música de Lobão) que seguia fielmente, e que o levaria a noumenalidade do não ser como carne dada aos vermes:
“Eu prefiro viver dez anos a mil do que mil anos a dez”
A lembrança foi provocada. Adquiri recentemente dois filmes nacionais: A Partilha que ainda não havia assistido e Orfeu, que desejava assistir novamente.
Em A Partilha vi o Sena em diversos diálogos entre as quatro irmãs que desenrolam através de um processo complicado de discussões, empurrões, mágoas, risos largos e confissões a partilha do mobiliário e do apartamento de sua mãe falecida. Uma tragicomédia de valores que sentado no sofá da casa da mãe de Sena, assisti muitas vezes, enquanto ele, o Sena, apertava ou fumava um baseado, sob o olhar conivente da mãe, irmã e avó, que preferiam que ele fumasse em casa para não correr riscos na rua.
A vida de Sena, Luis Carlinho, sangrava
mas ele ainda tinha a Beth, a mãe e a avó...
Em Orfeu, Sena está muito mais presente. Seu jeito, cheio de querer ser. Seu visual mauricinho, valorizando a “roupa de marca” e toda a estrutura de pensamento que rege esse universo. Seu papo, seu visual e sua roupa eram sua lira, assim armado, municiado e provido, caía na festa que sempre era uma uva, e descolava várias gatas (dava até inveja), quando a noite não era uma uva, ao menos um abacaxi rolava na presença e no sexo de uma puta qualquer, até mesmo da Central do Brasil – o condiloma e a blenorragia? A tecnologia gerou a vaselina a podofilina e o antibiótico para que?– E aí , como está a festa????
Ainda em Orfeu, a irresponsabilidade lúdica, poética e encantadora do próprio em desafiar o tráfico (na pessoa do chefe local – Lucinho), pelo amor de Eurídice, lembra o Sena, desafiando a gravidade ao escalar os altos muros do quartel, desafiando a guarda atenta e treinada (?), desafiando o regulamento e suas punições por abandono de serviço, para ganhar a rua, para seguir a pista, o cheiro, o colo, o beijo, o amor e o sexo da amada Beth, que protegida no andar superior de sua casa, recebia aquele desafiador de convenções, critérios e barreiras físicas.
A sua sede por outra mulher, garota, piranha. A sua ânsia por sexo, drogas e rock’n roll, levavam-no embora. Sena ia até a última estação... sempre. Perdido, cansado e perdedor, retornava ainda com força para tomar outro trem.
“ (...) desafogue essa agonia/ me dê sua tristeza/ que eu te dou minha alegria (...)”
TRECHO DO SAMBA DE AUTORIA DE ORFEU NO FILME
Por todos os motivos descritos, talvez por mais outros ou simplesmente por algum que não me tenha ele falado, Sena perdeu Beth.
Himeneu, que não abençoara com argúrios favoráveis a união de Orfeu e Eurídice, na mitologia. Esteve também aqui entre nós e trouxe sua tocha a fumegar, enfumaçando a vida e fazendo lacrimejar os olhos de Sena.
Por Beth, Sena toma o pior dos trens. Talvez um trem fantasma. Um trem só de ida. Por conta de sua tristeza, por conta da baixa estima. Sena mergulha profundamente no submundo das drogas.
O nariz de Sena sangra, como sangra sua alma e sua calma.
O mundo de sena e seu corpo sangram.
A esperança de Sena sangra como sangra sua vida.
A cobra que mordeu Eurídice na mitologia e o tiro que atingiu Eurídice na adaptação para o cinema foram no deserto real que minha memória revive, o próprio Sena.
O pesar de Orfeu pela morte de Eurídice que na mitologia, canta a todos os vivos sem sucesso e resolve seguir a terra dos mortos, o Tártaro. O pesar de Orfeu no cinema que chora e clama aos assassinos de Eurídice que revelem onde está sua amada, fazendo-o descer tremendo penhasco, que lembra da mitologia a descida da gruta ao lado do promontório de Tenaro, também lembram Sena em seus desafios a gravidade quando pulava os muros do quartel ou subia ao andar superior da casa de Beth. Mas, não se igualam a sua fragmentação como ser de razão e emoção. Não se igualam a decomposição que sofreria ainda em vida.
O Tártaro, terra de Plutão e Prosérpina, lugar para onde os mortos o barqueiro Creonte conduz, em troca de uma moeda, não pode ser comparada à terra que Sena passa a freqüentar no mundo dos vivos, tal fantasma ou escravo arrastando corrente para achar sua amada, seu rumo, seu plumo. De favela em favela, escravo do vício e da irracionalidade que nele reside, Sena fecha acordo de crédito e venda, negócio que não pode cumprir por sua própria estória e trajetória. Em cada sacolé de sua carga , que ele próprio consome, Sena tenta achar Beth. Produzindo seu próprio Tártaro. Seus próprios e mortais dardos. Suas próprias e dilacerantes pedras.
Em Orfeu, a insanidade triste de Lucinho e sua preferência pelo aqui e agora, de acordo com sua própria fala no filme, interage com o bordão de Sena. “Eu prefiro viver dez anos a mil do que mil anos a dez” - Esta cena é clara em minha mente, aparece ela como um holograma (aquelas mensagens em tempo real do filme Guerra nas Estrelas).
Como na mitologia Sena foi despedaçado. Como no filme Sena foi morto. Na vida real Sena está morto...Jogado no rio do não ser e da lembrança....
...E deus nem lhe havia dado tanto quanto dera a Orfeu
Todo esse lapso de memória que guardo como tesouro e descrevo com a emoção da verdade, escorrem em letras e palavras ao som da voz de Antonio Bento, Tony, Tony Bento, Tony Garrido, interpretando a canção que Caetano Veloso, fez para o filme.
“Luz sobre o céu estrela de luz (...) / A minha voz que era da amplidão (...)”
Nessa canção, apesar de sua, já, grande obra com o Cidade Negra e solo enxergo seu melhor momento, dificilmente ouço essa música sem receber grande carga de emoção. Agora, a emoção será maior pela ligação que fiz com o fato aqui descrito.
Na tragédia mitológica de Orfeu (baseada na adaptação de Vinícius de Moraes – Orfeu da Conceição) ou na tragicomédia urbana, A Partilha (de Miguel Falabela) que me trouxeram a lembrança flashes de minha convivência e da vida do querido e saudoso amigo, revi a tragédia real de sua própria vida, vi a tragédia contida em minha própria vida e na sociedade em que vivo. Despertei para a tragédia que é a vida.
A tragédia nossa de cada dia.
...E deus nem lhe havia dado tanto quanto dera a Orfeu
“(...) Quando Hilário sair/ lá da Pedra do Sal/ é carnaval...”