DO NARRADOR EM "O CIÚME".
A obra narrativa de Alain Robbe-Grillet constitui um desafio às próprias bases da análise estrutural da narrativa.
Margarida Patriota
Neste trabalho, faremos uma rápida leitura do narrador no romance “O Ciúme”, de Alain Robbe-Grillet.
A última grande onda da arte romanesca, sem dúvida, foi o chamado “Nouveau Roman”. Os autores ligados a esta linha estética objetivavam libertar o romance dos emaranhados e diretrizes presentes nos cânones estabelecidos.
Na ótica de Robbe-Grillet, o enredo há de “desembaraçar-se da intriga e abolir a motivação psicológica ou sociológica das personagens”. O universo narrativo jamais deve penetrar em dimensões “ocultas” ou “simbólicas”. Por isso mesmo, Robbe-Grillet, referindo-se a “O Ciúme”, asseverou: “É uma narrativa sem intriga”. Nas palavras do mestre Vítor Manuel de Aguiar e Silva, “o romance de Robb-Grillet confunde-se com um cerebralismo refinado e com um formalismo total”.
À luz das tipologias friedmanianas do narrador, o de “O Ciúme” se enquadra como “Câmara”, afinal, as realidades são captadas através de flashes. Não é à toa o estranhamento do leitor treinado para leituras lineares. Como diz Affonso Romano de Sant’Anna: “Estamos acostumados à estória que flui numa sucessão cronológica de episódios”.
Para não se perder na viagem, o leitor precisa, é claro, encarar o texto mediante outros óculos. No fundo, o fenômeno narrativo se constrói como que subvertendo o estabelecido. Robbe-Grillet, nos termos de Patriota, “abalou os alicerces do gênero narrativo”. As inquietações provocadas pelo romancista francês perpassam tanto pelo campo da teoria como pelo terreno espinhoso da prática textual.
“O Ciúme” não possui uma engrenagem narrativa complexa. Os acontecimentos se apresentam ao leitor pelo olhar de um marido profundamente ciumento que acompanha os passos de sua esposa, conhecida na trama apenas por A..., bem como daquele que o mesmo imagina ser amante dela, por sinal, um amigo íntimo da família. Esses movimentos, que Patriota os chama de consciência, darão todo o tom do romance.
Sob aparente desequilíbrio lógico, o narrador “robbe-grilhetano” revela ao leitor que a exigência de um plano racional da narrativa é perfeitamente dispensável, sobretudo, no que toca à unidade artística e estética. A repetição de cenas, que parece demérito, na estrutura da narrativa, conforme Patriota, “marca o início de uma estética estruturalista”.
A instância narrante não foge ao terreno de sua consciência individual presa ao raio único de sua visão. O interessante é que tal narrador se manifesta em termos paradoxais, posto inexistir, digamos, uma “entidade pronominal”.
Ao lermos um romance, convém atentarmos para estas três dimensões básicas: o tempo, o modo como a estória nos é contada e o tipo de discurso utilizado. O narrador de “O Ciúme’ parece um artista de técnica literária visual. Segundo Wilson Martins, “Robbe-Grillet trabalha sempre com uma câmara”. Destarte, o subjetivismo patente no romancista cede ante o olhar maquinal, frio, do aparelho fotográfico. Ao leitor é servido um “coquetel” ora de objetos, ora de paisagens, ora de cenas (“Mas o olhar que, vindo do fundo do quarto, passa por cima da balaustrada, só vai encontrar a terra muito mais longe, ao lado oposto do pequeno vale, entre as bananeiras de plantação” – p.8). O tempo, especificamente, é o mesmo da narração: (“Agora, a sombra da coluna se projeta sobre as lajes” – p.121), daí a afirmação de Patriota: “O emprego do tempo em O Ciúme faz com que tudo o que se passa para o narrador ao nível do discurso, se passa simultaneamente para este nível ao nível da estória”.
No que diz respeito ao ponto de vista, é irrefragável que o enredo gira a partir de uma só consciência. Há nesta obra um único narrador que, como salientamos, nunca se revela. Assim, a tese de que se trata de um marido ciumento é perfeitamente sustentável. Nesse particular, Patriota é categórica: “(...) ele não somente grava mal como é ainda péssimo observador”.
Quanto ao modo de expor sua narrativa, o narrador de “O Ciúme” é, no mínimo, sui generis. Às vezes, “parece mostrá-los, às vezes dizê-los, às vezes parece representá-los, e às vezes narrá-los”. A mistura de tudo isso num romance, como é sabido, não era nada de tão extraordinário. Aliás, tal procedimento esteve presente em narrativas anteriores. Não obstante, é mister assinalar que há “momentos em que não existe determinação de origem temática ou de enfoque narrativo que indique uma preferência lógica nem para o modo de narração nem para o modo de representação”.
Alhures, afirmamos ser a estória em “O Ciúme” deveras simples; contudo, não se trata de afirmação gratuita. Referida tese estriba-se no fato de a mesma se revelar captável, num primeiro momento, à inteligência. Ora, estamos frente a um romance e, deste modo, diante de algo verdadeiramente complexo. O fato é que “O Ciúme” é um conjunto de estórias subdividas em “macro-estória” e “micro-estórias”. Neste caso, ao menos três.
Um dado curioso se refere ao título do romance - “O Ciúme”. De onde viria a idéia de que o assunto seja este mesmo? Basta, suponho, nos reportamos à essência da estória: Franck, vizinho de A..., enfrentando uma doença da mulher, visita, amiúde, a casa de A... num momento específico (noite). A... parece estar à sua espera; ambos adoram trocar idéias sobre certo romance de conhecimento dos dois. Aos olhos do narrador, A... e Franc são íntimos demais.
Aliados a esses acontecimentos de caráter humano, se desenrolam outras ações que compõem o quadro geral. Ademais, a unidade de ação, ensina Patriota, “se manifesta na preocupação que o narrador tem em manter uma certa continuidade de informação a respeito de alguns detalhes da estória”.
O que vale mesmo demarcar é a postura do narrador enquanto sujeito observador que se posta fora da realidade viva, uma espécie de “observador desencarnado”. Aos poucos, num processo absolutamente lento, o narrador vai espalhando quadros, imagens justapostas; entretanto, como que imóveis. Nas palavras de Martins, “cristalizações de movimentos e atitudes, mas ainda não atitudes nem movimentos”. Enfim, não há desordem narrativa em “O Ciúme”. A desorientação do narrador é um jogo aparente, se olhado de perto. Justa, pois, é a assertiva de Bruce Marrissette; “Quanto mais os elementos de um romance de Robbe-Grillet nos aparecem caóticos, tanto mais a análise revela sua unidade”.
Ary Carlos Moura Cardoso
Mestre em Literatura pela UnB
Professor da UFT